quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Ressurreição

Todo dia, me surpreendo com a capacidade e dedicação que as pessoas têm em causar dor. Seja em outras ou em si mesmas, minha impressão é temos um dispositivo desconhecido, programado para tomar decisões das quais vamos nos arrepender mais tarde. Várias vezes. Apesar de já ter uma ideia dos efeitos que repercutirão, ainda assim, optamos pelo caminho errado. Cabeça dura, fraqueza, emoções mais fortes do que a razão; tantas razões para o fracasso. E, ao mesmo tempo, tantas desculpas. Tentar botar a culpa em algum elemento incontrolável não nos livra do fato de que, no final das contas, fomos nós os agentes diretos do ato que nos transformou em vítimas. O fato é que errar constantemente nos dá a certeza de que somos humanos. É com o sofrimento que percebemos nossa vulnerabilidade. E, assim, nos preparamos para a morte. Quanto mais dor acumulamos, a morte perde seu atmosfera cruel e injusta. Morrer se torna um final inevitável. A consequência para uma série de acontecimentos que não foram como imaginávamos. Pode soar sombrio, mas não é tanto. Quando menciono “acontecimentos que não foram como imaginávamos”, também me refiro a coisas boas. Cada vez mais, acredito que a vida nada mais é que a acumulação de acidentes sobre os quais não temos controle. A maioria das pessoas não gosta de acreditar nisso. Eu próprio gosto de pensar que tenho controle sobre minha vida, o que, no fundo, sei tratar de uma mentira deslavada. Será, então, a revolta por saber somos folhas ao vento que nos faz provocar acontecimentos cujos eventos já sabemos como prosseguirão? Ou será que o desejo de não temer mais a morte nos faz cair num espiral de culpa e violências? Nesse caso, o tal dispositivo não seria autodestrutivo, mas um mecanismo de preservação. Ao mesmo tempo, como uma droga sintética, nos dá a ilusão artística de podemos criar uma realidade. A única forma que teríamos de nos preparar e a outros para o inevitável, também seria uma forma de auto- afirmação. A dor é como uma droga: terapêutica, enganadora, incrivelmente disseminada, viciante e fora de controle. A dor não seria um mal, mas até uma necessidade. Isso me faz lembrar uma história sobre Alexandre, o Grande: um dia, ele olhou para seu reino e chorou, pois não havia mais nada para conquistar. Qual é razão para estar vivo quando todos os seus objetivos se cumpriram? Chorar se torna uma redenção. Ele provou que ainda estava vivo.



Pensando sobre a dor, temos que mencionar sobre o depois. Quando a dor se passa, o que ocorre? Lembro da Páscoa, considerado dia da ressurreição. Finalmente, na cruz, o homem que se diz o filho de Deus sente- se mais homem do que nunca, pois sente- se abandonado e machucado. Física e espiritualmente. Três dias depois, ele ressuscita: mais forte, transformado e vencedor. Esta história me remete ao clichê de Nietzsche: “O que não nos mata, nos fortalece.” Não é estranho ver o anti-cristão filósofo alemão e o Salvador serem coincidentes num determinado ponto. A dor é que nos faz perder o medo e sua propagação nos faz sentir menos impotentes. O pós-dor, por sua vez, nos dá mais força para seguir em frente. As cicatrizes nos estimulam a vencer. A rir da cara da morte, como se gritássemos para ela: “Pelo menos, algo eu consegui! Nossas feridas nos deixam determinados. Já tivemos uma pequena mostra da morte, mas continuamos aqui. Se continuamos, é porque somos fortes o suficiente para tentar outra vez. E ser ousados. Já experimentei, aguentei e, agora, me aguardem, pois estou mais preparado do que na última vez.” A imagem que me vem à mente, é como se estivesse no fundo do mar ou de um lago, nadando até a superfície, quase sem fôlego, achando que vou morrer. Finalmente chego a superfície e respiro longamente. A pergunta que fazemos após o retorno é: “E agora? O que vamos fazer?” Pode ser agoniante, mas, enquanto tivermos a capacidade de sentir, saberemos que nosso trabalho ainda não está pronto e que temos uma razão para continuar. Mesmo que você tenha conquistado todo o mundo conhecido. Você não está morto. Mas não lhe isenta dos corpos que deixa pelo caminho. Algumas coisas se perdem. As outras esperamos esbarrar pelo caminho. Ninguém volta da morte o mesmo. Que seja, então, sublime.
Daniel Russell Ribas

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