terça-feira, 2 de abril de 2024

Pensamento do Dia

 


A arrogância dos 'povos escolhidos'

Agradecemos a Deus pela bomba atômica
ter vindo para nós, e não para os nossos inimigos;
e oramos para que Ele possa nos guiar
para usá-la em Seus caminhos,
e para Seus propósitos.
Harry, S. Truman, citado in Perry Anderson, “A política externa norte-americana e seus teóricos”


Do ponto de vista estritamente lógico, é impossível de imaginar um Deus que seja único e absoluto, e que ao mesmo tempo faça escolhas de qualquer tipo que seja. Mas esta ideia da monopolização unilateral da “vontade divina” por alguns povos parece ser muito antiga e persistente, sobretudo entre os que professam religiões monoteístas. O exemplo mais conhecido talvez seja o do povo hebreu, como aparece descrito num dos cinco livros de Moises, o Êxodo: “Então Javé chamou a Moisés e lhe disse: agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos, porque a terra é minha. Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Êxodo, 19). Mas esta mesma convicção pode ser encontrada no Zoroastrismo, e na relação preferencial de Ahura Mazda com o povo persa e com o Império Aquemênida, de Ciro, Dario e seus descendentes; na relação de Alá com os sucessivos impérios islâmicos, desde o século VII d.C; ou na relação do Deus cristão com os povos europeus e seu projeto de expansão e conversão do mundo, a partir do século XVI. E esta mesma ideia está por trás da certeza norte-americana a respeito do seu “destino manifesto” a liderar a humanidade. Uma visão construída pelos seus founding fathers, e que permanece viva até hoje, como se pode ler na epígrafe do presidente Truman, acima; ou na idéia do presidente Kennedy, de que “os EUA deviam seguir em frente para liderar a terra… sabedores de que aqui na Terra a obra de Deus deve, em verdade, ser obra nossa” (op cit p 43); ou ainda, na certeza do presidente Bush, de que “a nação americana foi escolhida por Deus e comissionada pela história para ser um modelo para o mundo” (idem, p:43).

Esta monopolização da “verdade divina” pode ser absurda do ponto de vista lógico, mas de fato se transformou numa “ideia-força” que cumpriu um papel decisivo através de toda a história humana, tanto dos “povos escolhidos”, como dos “povos não escolhidos” por Deus. Sem esta imagem de si mesmo, talvez o povo hebreu não tivesse conseguido resistir ao assédio dos assírios, dos romanos e de tantos outros povos mais poderosos, superando seu sentimento milenar de inferioridade e de cerco; os persas não tivessem conquistado seu gigantesco império de oito milhões de quilômetros quadrados, na África, Europa e Ásia; o Islã não tivesse se expandido de forma tão continua e vitoriosa, a partir do século VII; e os europeus não tivessem conseguido impor sua dominação colonial ao redor do mundo, a partir do século XVI. Sempre movidos pela mesma certeza ética que levou George Kennan a afirmar, olhando para a destruição alemã, depois da II Guerra Mundial, “que ele se tranquilizava com o fato de que os EUA tivessem sido os escolhidos pelo Todo-Poderoso para ser os agentes daquela destruição”. (op cit, p:42)

Nesta história, entretanto, é fundamental distinguir o papel decisivo das religiões na construção das civilizações humanas, da sua monopolização e instrumentalização pelos poderes territoriais e pelos grupos humanos que se autoproclamam superiores e com o direito exclusivo a impor os seus valores aos demais que forem sendo submetidos, convertidos, ou exterminadas pelo avanço e pela “tranquilidade ética” dos “povos escolhidos”. Esta visão unilateral e monopolista da “escolha divina” sempre esteve – e segue estando – por trás de todos os fundamentalismos religiosos responsáveis pela demonização, pela desqualificação, pela humilhação e pela exclusão de todos os que pensam diferente. Uma radicalização que parece se repetir através da história, em todos os grandes momentos de ruptura e “perda de horizonte” por parte da humanidade, como está acontecendo de novo, neste início do século XXI.

Depois do fim da Guerra Fria, e em particular nesta terceira década do século XXI, os EUA estão vivendo um momento sem precedente de fragmentação do seu establishment, do seu sistema político e da sua sociedade mobilizada por um fundamentalismo religioso cada vez mais agressivo e excludente. E o mesmo está acontecendo na Europa, onde o esvaziamento ideológico do projeto de unificação abriu portas para um aumento contínuo da intolerância dentro do seu próprio território e dentro de toda sua antiga zona de dominação colonial, em particular no Grande Oriente Médio. Um panorama regional que se agrava ainda mais com o distanciamento recente entre EUA e Israel, dois povos que se consideram “escolhidos” e que compartilham a mesma genealogia divina. Mas esta fragmentação e esta radicalização não se restringem mais a estes pontos estratégicos da geopolítica mundial, e tem avançado mesmo em sociedades que pareciam imunes a este tipo de fundamentalismo e que agora aparecem divididas pela intolerância e pela proposta explicita de negação do diálogo e da convivência, e de exclusão – muitas vezes – da própria pessoa física dos adversários. Como é o caso mais recente da sociedade brasileira, que até hoje se considerava “cordial”, e apenas “abençoada por Deus”. Frente a esta situação que tende a se agravar em todo mundo só cabe resistir à intolerância com a tolerância, à irracionalidade com a razão, ao fanatismo com a tranquilidade dos que sabem que não existem os “escolhidos” nem existem pessoas superiores aos demais. Junto com a defesa intransigente, no plano internacional, de que chegou a hora de enterrar de uma vez por todas, na relação entre as nações, a fantasia arrogante e absurda dos “povos escolhidos” por Deus.

Nunca esqueça


Há no nosso passado histórias muito dolorosas. Lembrar é construir valores para o futuro
Míriam Leitão, "O país que não sabe lembrar"

Algo de podre perceptível de forma aguda no Rio de Janeiro

"Há algo de podre no reino da Dinamarca". A célebre frase de Marcellus (em "Hamlet", de Shakespeare) não conota nenhuma sensação física, mas moral, relativa a um mal oculto e manifestado em homicídios e traições. É o tempo de incubação da violência, de cuja regra maléfica se alimentam feras à espreita de vítimas. Há algo de podre no Estado brasileiro, agora perceptível de forma aguda no Rio de Janeiro, no episódio do assassinato de Marielle, em que os fios da meada criminosa, separados na aparência, se entrelaçam.

Esse odor já feria narinas sensíveis depois do crime, quando em palanque público se quebrou uma placa de rua que homenageava a vereadora. Como num pesadelo delirante, pessoas distantes da materialidade da execução, exultavam em pisotear a memória da morta. Um ato tão torpe quanto a motivação do atentado. Mas elegeu deputados e um governador de estado. Se alguma explicação racional para o crime se obtém com a prisão dos mandantes, a anomalia da placa permanece, para além da razão, como puro sintoma de apodrecimento.

Esse olfato crítico ancora numa paisagem política que relega os mais pobres a guetos desemparados. Como formigas que convivem com pulgões para torná-los reservas de proteínas, as classes dirigentes segregam pobres e pretos, rareando a presença do Estado e confinando-os a formas marginais de poder. Acontece no Rio, também em São Paulo, onde atualmente a polícia tem licença para matar.


Por perversa simbiose, essa marginalidade pactua com dispositivos oficiais de controle da população, como administrações e polícia, encarregadas de impostos e penalizações. Bicheiros, traficantes e milicianos transformam o pacto em extorsão, constituindo um tipo de poder capaz de competir pelo domínio territorial e pela oferta de serviços na cidade.

Não à toa, o ex-presidente, em plena febre do poder, disse que não renunciaria à indicação de um superintendente da Polícia Federal no Rio. Atraído pelo odor, claro, mas moldado pelas características vantajosas do estado aberto à ampliação como reduto da ultradireita. Um bolo de padaria confeitado com leite condensado e sobrevoado por moscas varejeiras.

"Toda família tem uma hora em que começa a apodrecer", descortina o espírito penetrante de Nelson Rodrigues (em "Flor de Obsessão"). A boutade retórica enseja um paralelo realista com o Estado. Recentes governadores cariocas pareciam inspirar-se em Bokassa, o esdrúxulo e corrupto imperador da República Centro-Africana: um deles, sem pudor, importou por 100 mil reais um vaso sanitário polonês que aquece as partes pudendas. À sua sombra, expandiu-se e se entranhou nas instituições a cultura do crime. Esse pútrido aparelho burocrático, carta branca para a morte de Marielle, continua corrompendo e matando.

As ditaduras do medo e as ditaduras da manipulação

Escritor, historiador, professor de literatura comparada, João César de Castro Rocha (1965), destacado intelectual brasileiro é o autor da apresentação do recém-lançado livro dos coautores Serguei Guriev&Daniel Treisman, "Democracia Fake: a metamorfose da tirania no século XXI".

Uma tarefa gigantesca. O livro é uma obra consistente sob qualquer ângulo que venha a ser observado. A conclusão de Castro Rocha é precisa: “Sergei Guriev e Daniel Treisman realizaram uma anatomia brilhante das ditaduras do spin, revelando suas entranhas. O primeiro passo foi dado, mas não há garantia alguma no êxito na tarefa (infinita) de fortalecer instituições democráticas. Por isso mesmo, Democracia Fake é um ensaio urgente. Não perca tempo: comece agora mesmo a leitura”.

(Um parêntesis para a nota do tradutor: “a expressão ‘spin doctor’ não possui equivalente satisfatório em português. Este termo é utilizado para se referir a um lobista [….] com o intuito de manipular e distorcer informações desvantajosas […] pode ser entendido como um ‘mestre em manipulação’”).

No título original, o fake substitui a expressão spin e, ao longo da narrativa, é utilizada a expressão manipulação e, algumas vezes, o vocábulo enganação.

Para facilitar o mergulho na leitura densa de quase quinhentas páginas e a consulta na variedade de dados, tabelas, gráficos sobre ideias-chaves, este material encontra-se no fechamento de cada capítulo. Por sua vez, a apresentação e o prefácio dão a dimensão da amplitude do trabalho que abrange uma realidade global resultante de distintos contextos históricos, conjunturas e diferentes padrões culturais.


Tomando como ponto de partida o início do século XXI, o panorama político apresentava uma situação inédita: o número de democracias ultrapassava a contagem de estados autoritários (fonte: V-Dem versão 10). Não durou muito. Em 2019, o número de democracias havia caído para 87 enquanto o de ditaduras voltou a subir para 92. A “recessão democrática” mostrou sua face ameaçadora.

A aguda percepção dos autores usa o olhar comparativo e constroem a hipótese de que o século XX testemunhou o fortalecimento das ditaduras do medo enquanto o século XXI inovou na forma de ditaduras da manipulação (spin).

Em que se assentavam as categorias na percepção e nas evidências empíricas? Embora existam sinais de um certo hibridismo, há diferenças evidentes: as ditaduras do medo flertavam e flertam com o totalitarismo, aplicam um manual perverso para se manter no poder que se manifesta na repressão violenta, ostensiva, pública, truculenta para gerar tremor e terror, bem como dissuadir uma forma de pensar ou agir que contrarie o tirano. Acresce que a ostentação do poder revela os efeitos da tortura, da perversidade que negam totalmente o valor dos direitos humanos. A vida real é a réplica perfeita da “sociedade orwelliana”.

Por sua vez, a ditadura da manipulação ou da enganação é centrada na mentira, no faz-de-conta que esconde a monstruosidade explícita por uma opressão que busca se associar a mecanismos de feição liberal a exemplo dos sepulcros caiados, aparentando uma limpeza externa que encobre a podridão dos porões ditatoriais. Os adversários, em geral, são acusados de outros crimes que não políticos e a eliminação é seletiva com métodos cruéis. Asfixiam, liquidam por inanição qualquer resistência política, dialética, cooptando as mídias e usando o “estado profundo” com arma eficaz da repressão.

Outro forte vetor da ditadura da manipulação é o verniz da popularidade que mascara o espírito ditatorial. A arma é o discurso populista cuja mensagem recheada de emoções, frustrações e rancores vem superando a capacidade de mobilização do centro-direita/centro-esquerda que parece não empolgar o eleitorado. São fatos que estimulam a aventura autocrática, mentindo sobre eleições livres e equilíbrio entre poderes, especialmente, o Judiciário que é sistematicamente cooptado e devidamente aparelhado.

Neste sentido, o mais grave sintoma aparece quando o manipulador sequestra de tal maneira seus seguidores que os contaminam com o sério risco de uma crescente dissonância cognitiva a ponto de embarcar na canoa furada do negacionismo das evidências científicas e no delírio mitológico do líder que salva.

No crescente extremismo político, seja pelo uso do terror ou pela maquinação manipuladora, o espertíssimo Viktor Orban é um exemplo conspícuo do autocrata manipulador. Inventou, com sucesso, que a Hungria é uma “democracia iliberal”. Haja dissonância!

E o que fazer? Uma luta desigual e sem bala de prata. Os autores mencionam, como possível antídoto, a figura dos “bem-informados”, ou formadores de opinião de modo a usar tenazmente a capacidade crítica para mobilizar e enfrentar, não poucas vezes, a popularidade do autocrata.

No enfrentamento, é preciso unir a força das convicções em torno de lideranças firmes e comprometidas com a defesa da democracia liberal que, apesar de seus defeitos, construiu, alicerçada em valores, a grandeza do mundo ocidental.

Percebendo-se numa 'fake'

Os eleitores de 2022 começam a perceber a "fake" em que entraram, ao votar naquele pleito, que oferecia apenas dois candidatos com ampla visibilidade, e que, segundo avaliação do experiente jornalista e editor Carlos Brickmann, um era louco e o outro corrupto. Passadas as eleições, declarado o vencedor, os cidadãos começaram a cair na real, ao tomarem conhecimento de veladas intenções do vencedor .

O circo foi se esvaziando. Aos poucos, a população desapareceu das manifestações de rua convocadas pelo vitorioso, e passou a receber mal as visitas e exposições do casal presidencial. As redes digitais reproduziam entre si , amplamente ,as críticas severas às leviandades públicas cometidas pelo eleito contra pessoas internamente e países em conflito sem qualquer relação com a governabilidade no Brasil . Sem qualquer pejo ou ética, os governantes tentam transformar, em inimigos da população, adversários pessoais ou partidários, estratégia que repete na história alguns regimes ditatoriais longevos, e que, percebida, vem sendo rechaçada, interna e externamente.Os empresariado e as categorias médias estão assustados com as mudanças inesperadas na política brasileira, sem se enxergar nada sendo colocado no lugar. Há uma repetição sistemática do já conhecido e, de algumas coisas até fracassadas no passado. Descrentes de um futuro ainda não anunciado, as empresas convivem inseguras com os indicadores da economia divulgados por vozes oficiais: crescimento de 2,9 do PIB em 2023; redução do desemprego no primeiro trimestre de 2024 para 7,8% (8 milhões de trabalhadores), sem referência ao tão criticado emprego informal - "Todo mundo vai ter carteira de trabalho assinada" -, representado hoje por perto de 25 milhões de trabalhadores, número e condição omitido nas estatísticas de governo. Evita-se comentar ainda sobre o encerramento das atividades produtivas de centenas de empresas , confundindo -o com com a história da oneração e da desoneração fiscal das empresas. Não se fala também muito sobre os investimentos, tanto internos quanto externos. O que surge aí , vez por outra, vem, virá ou veio da China .

Ambiguamente, recolocando o desemprego no cenário da economia, o ministro Luiz Marinho, do Trabalho, alimenta-se da hipótese de um orçamento de R$ 111.9 bilhões, em 2024, para o Fundo de Apoio ao Trabalhador - FAT . Concorda, entretanto, que desse valor, quase imaginário, R$ 78.9 bilhões seriam destinados ao pagamento do seguro- desemprego e do abono salarial, esta ajuda direta às famílias sem renda própria: um crescimento contraditório.

O Ministério prenuncia a expansão do emprego, e faz de conta de que desconhece dados mais reais . Confia, sem entrar em detalhes, que as eleições municipais deste ano vão abrir muitas vagas de trabalho. É verdade. só que serão de trabalho temporário, sem carteira assinada. Provavelmente, esses empregos surgirão nos meses de agosto e setembro, que antecedem às eleições.


Poucos são os dirigentes empresariais que acreditam e manuseiam com seguranças os indicadores macroeconômicos divulgados oficialmente, em que pese a seriedade histórica das instituições que os calculam e configuram: IBGE, FGV, IPERJ, IPEA. Inseguros, questionam a sua validade para o planejamento de expansão dos negócios. Alguns chegam a projetar uma crise econômica para o período pós eleitoral. Um terceiro grupo fecha as portas, muda de atividade, e demite o pessoal. Os estrangeiros, a exceção da China, não desembarcam por aqui. O Banco Central teme, inclusive, que a redução da SELIC (taxa básica de juros), de 10,75 hoje, não vá se sustentar mesmo, e já está falando em uma retomada da dos níveis anteriores.

Estão todos receosos de avançar nas gastanças, como recomenda o governo. Os estrangeiros inclusive. Não há no horizonte nenhuma preocupação do governo com a possibilidade de um déficit fiscal avantajado. Os dados do IBGE parecem estar revestidos de uma roupagem populista, quase vazia, marquetologicamente institucionalizada. Não se deve dar um tostão para as falas de Macron, Presidente da França, que veio passar três dias no Brasil para corrigir algumas disfunções retóricas. Mas, parece ter seguido o cinismo corrente. O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Lavrov, também passou rápido e sorrateiro por aqui.

A máquina do Estado revela a cada dia a carência de profissionais e técnicos habilitados para formular e administrar o conjunto das políticas públicas , todas submetidas , artificiosamente, a contingenciamentos e cortes orçamentários mesmo . Os cargos de gestão, com raras exceções, estão sendo ocupados vagarosamente por representantes partidários, nem sempre qualificados. Os concursos públicos arrastam-se retoricamente no tempo, desde a campanha eleitoral de 2022, frustrando a esperança de emprego de milhões de jovens recém saídos das universidades.

Os descrédito das iniciativas discursivas vem maculando inclusive até as decisões do Poder Judiciário, com credibilidade baixíssima. Servidores mais antigos , sobretudo no Executivo, reivindicam, sem sucesso, reajustes de salários, ameaçados de congelamentos. Percebe-se que o governo está adotando uma política de arrocho no serviço público. Nada impede que, a partir do segundo semestre, o funcionalismo publico comece a fazer paralizações de advertência e greves mesmo.

Outro problema grave são as viagens presidenciais com o propósito, propagado amplamente, de situar o Brasil como ator no cenário mundial. Opiniões pessoais, altamente contraditórias, às vezes sem sentido, são emitidas em nome da Nação. Essas tiradas inconsequentes e sem a legitimidade - que viria do Congresso - estão aparentemente desconstruindo a imagem carismática construídas pelo atual governante. "Ele mente ", já advertia, na oposição, Geraldo Alkmin - essa personalidade claudicante - há dez ou quinze anos atrás A imagem do País e dos brasileiros piorou sensivelmente depois dessas aventuras oficiais , de caráter quase nupciais. Parece que a Nação vem caindo numa "fake".

Lima Barreto e o mar de lama

Em "O Único Assassinato de Cazuza" Lima Barreto, faz através de um de seus personagens uma afirmação de grande atualidade: "Penso, ao ler tais notícias, que a fortuna dessa gente que está na Câmara, no Senado, nos ministérios, até na presidência da República se alicerça no crime, no assassinato, que acha você?". Ao que seu interlocutor retruca:

- Já houve quem dissesse que, quem não mandou um mortal deste para o outro mundo, não faz carreira na política do Rio de Janeiro.

Mas o ponto que escolhi para uma análise mais detida vem depois:

- Você sabe o que dizem esses políticos que sobem às alturas com dezenas de assassinatos nas costas?

- Não.

- Que todos nós matamos.

A primeira reação do autor de um crime é a negação; a segunda, que todos fazem o mesmo. A crença de que a fortuna e a carreira política assentam-se no crime não é sem consequências. Se todos acham que a corrupção é a regra do jogo, estamos em uma armadilha. Quando práticas escusas são percebidas como a regra, o ator que joga limpo se verá como um "otário". Os incentivos nessa situação são para jogar sujo (recorrendo à violência ou a corrupção), esperando que os demais também o façam.


Há forte correlação entre a crença de que "a corrupção é generalizada" e a de se considerar que "pagar propina é justificável". Um estudo experimental mostrou que a exposição à informação sobre o aumento da corrupção na Costa Rica produzia aumento de 28% na propensão a pagar propina em relação a um grupo de controle.

A cientista política Nara Pavão em estudo experimental mostrou que quando todas as alternativas são vistas como corruptas, o efeito da corrupção desaparece. O impacto da informação que um gerente da Petrobras havia devolvido meio bilhão de reais e que a Odebrecht tinha um departamento inteiro, com servidor na Suíça, dedicado a propinas foi avassalador. Após o caso JBS-Aécio a crença em um mar de lama se generalizou. A ascensão de Bolsonaro e a renovação parlamentar em 2018 não são consistentes, no curto prazo, com a ideia do efeito "mar de lama".

A atual reação contra a Lava Jato é marcada pela negação. Mais importante, vai contra as crenças do eleitorado e mostra a resiliência da aversão à corrupção. Em nosso país, o hiato entre expectativas normativas e crença sobre a prevalência da corrupção política é o maior da região. Enquanto apenas 10,1% dos entrevistados do LAPOP 2023 afirmam que é admissível pagar uma propina, o menor percentual da região (México, 22%; Uruguai 11,4%; Chile, 12.5%); só somos superados na percepção da corrupção entre os políticos pelo Peru (78.8%). A Argentina (71%) e Chile (70%) têm percentuais próximos ao nosso (75%).