Uma tarefa gigantesca. O livro é uma obra consistente sob qualquer ângulo que venha a ser observado. A conclusão de Castro Rocha é precisa: “Sergei Guriev e Daniel Treisman realizaram uma anatomia brilhante das ditaduras do spin, revelando suas entranhas. O primeiro passo foi dado, mas não há garantia alguma no êxito na tarefa (infinita) de fortalecer instituições democráticas. Por isso mesmo, Democracia Fake é um ensaio urgente. Não perca tempo: comece agora mesmo a leitura”.
(Um parêntesis para a nota do tradutor: “a expressão ‘spin doctor’ não possui equivalente satisfatório em português. Este termo é utilizado para se referir a um lobista [….] com o intuito de manipular e distorcer informações desvantajosas […] pode ser entendido como um ‘mestre em manipulação’”).
No título original, o fake substitui a expressão spin e, ao longo da narrativa, é utilizada a expressão manipulação e, algumas vezes, o vocábulo enganação.
Para facilitar o mergulho na leitura densa de quase quinhentas páginas e a consulta na variedade de dados, tabelas, gráficos sobre ideias-chaves, este material encontra-se no fechamento de cada capítulo. Por sua vez, a apresentação e o prefácio dão a dimensão da amplitude do trabalho que abrange uma realidade global resultante de distintos contextos históricos, conjunturas e diferentes padrões culturais.
Tomando como ponto de partida o início do século XXI, o panorama político apresentava uma situação inédita: o número de democracias ultrapassava a contagem de estados autoritários (fonte: V-Dem versão 10). Não durou muito. Em 2019, o número de democracias havia caído para 87 enquanto o de ditaduras voltou a subir para 92. A “recessão democrática” mostrou sua face ameaçadora.
A aguda percepção dos autores usa o olhar comparativo e constroem a hipótese de que o século XX testemunhou o fortalecimento das ditaduras do medo enquanto o século XXI inovou na forma de ditaduras da manipulação (spin).
Em que se assentavam as categorias na percepção e nas evidências empíricas? Embora existam sinais de um certo hibridismo, há diferenças evidentes: as ditaduras do medo flertavam e flertam com o totalitarismo, aplicam um manual perverso para se manter no poder que se manifesta na repressão violenta, ostensiva, pública, truculenta para gerar tremor e terror, bem como dissuadir uma forma de pensar ou agir que contrarie o tirano. Acresce que a ostentação do poder revela os efeitos da tortura, da perversidade que negam totalmente o valor dos direitos humanos. A vida real é a réplica perfeita da “sociedade orwelliana”.
Por sua vez, a ditadura da manipulação ou da enganação é centrada na mentira, no faz-de-conta que esconde a monstruosidade explícita por uma opressão que busca se associar a mecanismos de feição liberal a exemplo dos sepulcros caiados, aparentando uma limpeza externa que encobre a podridão dos porões ditatoriais. Os adversários, em geral, são acusados de outros crimes que não políticos e a eliminação é seletiva com métodos cruéis. Asfixiam, liquidam por inanição qualquer resistência política, dialética, cooptando as mídias e usando o “estado profundo” com arma eficaz da repressão.
Outro forte vetor da ditadura da manipulação é o verniz da popularidade que mascara o espírito ditatorial. A arma é o discurso populista cuja mensagem recheada de emoções, frustrações e rancores vem superando a capacidade de mobilização do centro-direita/centro-esquerda que parece não empolgar o eleitorado. São fatos que estimulam a aventura autocrática, mentindo sobre eleições livres e equilíbrio entre poderes, especialmente, o Judiciário que é sistematicamente cooptado e devidamente aparelhado.
Neste sentido, o mais grave sintoma aparece quando o manipulador sequestra de tal maneira seus seguidores que os contaminam com o sério risco de uma crescente dissonância cognitiva a ponto de embarcar na canoa furada do negacionismo das evidências científicas e no delírio mitológico do líder que salva.
No crescente extremismo político, seja pelo uso do terror ou pela maquinação manipuladora, o espertíssimo Viktor Orban é um exemplo conspícuo do autocrata manipulador. Inventou, com sucesso, que a Hungria é uma “democracia iliberal”. Haja dissonância!
E o que fazer? Uma luta desigual e sem bala de prata. Os autores mencionam, como possível antídoto, a figura dos “bem-informados”, ou formadores de opinião de modo a usar tenazmente a capacidade crítica para mobilizar e enfrentar, não poucas vezes, a popularidade do autocrata.
No enfrentamento, é preciso unir a força das convicções em torno de lideranças firmes e comprometidas com a defesa da democracia liberal que, apesar de seus defeitos, construiu, alicerçada em valores, a grandeza do mundo ocidental.
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