segunda-feira, 15 de abril de 2024

Relatório liga crimes no Cerrado a gigantes da moda europeus

Até chegarem nas vitrines de gigantes como Zara e H&M, calças, bermudas, camisetas e meias de algodão deixam para trás um rastro de desmatamento, grilagem de terras e violação de direitos humanos no Brasil. Para o consumidor, as peças parecem acima de qualquer suspeita: a maioria estampa um selo de produção sustentável.

A denúncia faz parte do relatório Fashion Crimes da organização Earthsight, publicado na quinta-feira. Ao longo de um ano, uma investigação detalhada focou nos negócios que conectam as lavouras do Brasil, quarto maior produtor da commodity no globo, às marcas europeias.

A ONG analisou o caminho percorrido por 816 mil toneladas de algodão com a ajuda de imagens de satélite, registros de envios de mercadoria, arquivos públicos e visitas às regiões produtoras.

Segundo o relatório, essa matéria-prima foi destinada especialmente a oito empresas asiáticas que, entre 2014 e 2023, fabricaram cerca de 250 milhões de itens para as lojas. Muitos deles, alega a investigação, abasteceram marcas como H&M e Zara, entre outras.

"É chocante ver estas ligações entre marcas globais muito reconhecidas, mas que, ao que tudo indica, não se esforçam o suficiente para ter controle sobre estas cadeias de fornecimento, para saber de onde vem o algodão e quais tipos de impacto ele provoca", diz Rubens Carvalho, chefe de Pesquisa sobre Desmatamento da Earthsight, à DW.


O problema, afirma a ONG baseada no Reino Unido, está na origem da matéria-prima. O algodão exportado sai principalmente do oeste da Bahia, região imersa no Cerrado brasileiro muitas vezes desmatado ilegalmente para ampliar o cultivo. Em alta, o corte desta vegetação dobrou nos últimos cinco anos, segundo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Dentre os casos analisados no relatório, está o grupo SLC Agrícola. Fundado em 1977 no Rio Grande do Sul, o grupo diz ser responsável por 11% do algodão brasileiro exportado (safra 2019/2020).

O estudo da Earthsight também diz que, nos últimos 12 anos, estima-se que 40 mil campos de futebol de Cerrado tenham sido destruídos dentro das fazendas do SLC. Em 2020, a empresa, que também planta soja, foi apontada como a maior desmatadora do bioma, calculam pesquisadores do Chain Reaction Research.

Em 2021, o SLC se comprometeu junto a fornecedores com uma política de desmatamento zero. Um ano após a promessa, um relatório da Aidenvironment identificou o corte de 1.365 hectares de Cerrado dentro das propriedades que cultivam algodão, o equivalente a 1.300 campos de futebol. Quase metade estava dentro da reserva legal.

Uma consulta feita pela Earthsight no banco de dados do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) mostra mais de R$ 1,2 milhão de multas aplicadas por infrações ambientais desde 2008 nas fazendas do grupo no oeste da Bahia.

Uma das acionistas da SLC é a britânica Odey Asset Management. Em 2020, em uma entrevista para o diário britânico Financial Times, o fundador da empresa disse que arcar com as penalidades ambientais no Brasil era algo corriqueiro como "pagar multas de trânsito".

Questionado, o grupo afirmou por meio de nota à DW que "todas as conversões de área com vegetação nativa da SLC seguiram os limites estabelecidos por lei". Especificamente sobre a área desmatada em 2022 apontada no relatório da Aidenvironment, a empresa diz que a destruição se deu por "um incêndio natural, não ocasionado para a abertura de novas áreas para produção".

Sobre as multas aplicadas pelo Ibama, a SLC Agrícola diz ter recorrido administrativamente de todas as autuações. "As multas que foram objeto de recurso estão em tramitação e não houve, até o momento, um julgamento definitivo", diz a nota.

Outro grupo analisado em detalhes é o Horita, original do Paraná e atuante na Bahia desde a década de 1980. Dentre as várias denúncias feitas pela Earthsight está a chamada grilagem verde: imposição de reservas legais, ou áreas de preservação de propriedade privada, em zonas onde vivem comunidades tradicionais. A manobra impede que famílias realizem atividades de subsistência e, nos piores casos, permaneçam nas terras.

O conflito fundiário entre as famílias geraizeiras, como se identificam essas comunidades tradicionais na região, e fazendeiros data de 1970. Na década seguinte, a companhia Delfin Rio compra terras e registra o empreendimento como Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo. Segundo a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais do estado (AATR), o grupo Horita é um dos sócios do complexo de fazendas.

Em 2017, as famílias geraizeiras da zona rural de Formosa do Rio Preto, no oeste baiano, ajuizaram uma ação contra a Estrondo por grilagem de terra e ganharam, em caráter liminar, a posse coletiva de 43 mil hectares que o empreendimento dizia ter comprado. A maior parte está no coração da Matopiba, zona de expansão do agronegócio que integra os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, habitada há mais de 200 anos pelos geraizeiros.

Issa Gira, de 67 anos, planta algodão há vários anos em Burkina Faso, mas continua lucrando menos de um dólar por dia. Toda a família tem de ajudá-lo na lavoura, inclusive o garoto da foto. O consumidor final nem toma conhecimento das precárias condições em que vivem essas pessoas.

Após a colheita, os agricultores de Burkina Faso trazem o produto para os postos de coleta na vila mais próxima. Antes disso, uns ajudam os outros a comprimir o algodão em grandes fardos, para pesá-lo. "Ninguém se preocupa com o cultivo, o primeiro elo da cadeia de produção de roupas", adverte o fotógrafo.

Mais de quatro milhões de pessoas trabalham na produção de algodão em Burkina Faso. O algodão é a segunda matéria-prima burquinense mais valiosa, depois do ouro. A Sofitex é uma das três empresas no país que compram o algodão dos agricultores e lhes dá empréstimos. A Sofitex exporta cerca de 540 mil toneladas de algodão por ano. 

"Os subsídios do Ocidente para a produção de algodão levam a dumping nos preços, causando altos prejuízos aos países pobres", afirma Franko. Para ele, a produção de algodão e de roupas nos países pobres é só outra forma de colonialismo. "As pequenas empresas muitas vezes trabalham como contratadas de empresas maiores. O aluguel é caro para os trabalhadores, por isso eles também dormem no local."

Trabalhadoras cortam tecido em uma fábrica em Daca, Bangladesh, coração mundial da indústria têxtil barata, onde elas ganham em média 2,20 euros por dia. Empresas como H&M, Walt Disney e Lidl têm seus produtos fabricados aqui. A região foi manchete em 24 de abril de 2013, quando o prédio Rana Plaza desabou, causando a morte de 1.129 pessoas.

"É difícil falar de condições justas de produção mesmo em marcas caras", diz Franko sobre esta foto, que mostra trabalhadores romenos. "As condições de trabalho nas fábricas de roupas da Romênia são muito melhores que na maioria dos países asiáticos e africanos, mas os salários, de no máximo 200 euros, ainda são extremamente baixos, em certos casos menores que na China. E essa é a União Europeia!".

A indústria da moda passa por uma estagnação em termos de tendências. Por isso, muitas peças de roupa podem ser usadas por mais tempo. Mesmo assim, a cada ano são vendidas mais de 80 bilhões de peças em todo o mundo. A má qualidade e o baixo preço facilitam o descarte. Só nos Estados Unidos surgem a cada ano mais de 15 milhões de toneladas de lixo têxtil.

"O algodão tem uma história obscura, e, na minha opinião, os problemas decorrentes de seu comércio nunca foram resolvidos", lamenta o fotógrafo Jost Franko. Embora se fale muito disso, os consumidores parecem não se preocupar: "Acho que é mais fácil fechar os olhos. Os problemas têm raízes profundas e não são só da indústria têxtil."

Fashion Revolution é um movimento global que exige maior transparência, sustentabilidade e ética na indústria da moda. A semana em que se lembra o desabamento do Rana Plaza em Bangladesh foi declarada Semana da Revolução da Moda, com a campanha #whomademyclothes, em que o consumidor é encorajado a questionar "Quem fez minhas roupas" e exigir maior transparência na cadeia de produção de têxteis.Foto: www.fashionrevolution.org.

Em 2019, a Operação Faroeste da Polícia Federal revelou um conluio do alto escalão do magistrado baiano para favorecer fazendeiros na mesma região. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), um esquema de compra de sentenças teria movimentado cifras bilionárias em disputas de terras e tinha participação de magistrados, empresários, advogados e servidores públicos. Walter Horita, um dos fundadores do grupo, é um dos réus no processo, ainda em julgamento.

Um dos magistrados acusado de vender sentença para grileiros, segundo a Operação Faroeste, atuou na ação que julgava a posse coletiva dos geraizeiros. Segundo a AATR, a liminar a favor das comunidades só passou a ser cumprida após o afastamento e prisão do juiz.

Procurado pela DW, o Grupo Horita declarou nesta quarta-feira que "aguardará a divulgação do relatório para qualquer nova manifestação, para além das que já foram proferidas pelo seu departamento jurídico, em resposta às acusações da ONG".

"Todas as alegações negativas contra o Grupo Horita constantes da Carta da Earthsight, datada de 23/08/2023, como supostos 'achados', não correspondem à verdade", diz um trecho da resposta enviada à ONG.

Durante a investigação, a Earthsight seguiu a rota de 816 mil toneladas de exportações de algodão que saíram da SLC Agrícola e Grupo Horita entre 2014 e 2023 para os principais destinos: China, Vietnã, Indonésia, Turquia, Bangladesh e Paquistão. Com base em dados que permitem rastreio – o que não ocorre no caso chinês –, as pistas levaram a oito fabricantes de roupas na Ásia.

Todas as intermediárias identificadas (PT Kahatex, na Indonésia; Noam Group e Jamuna Group, em Bagladesh; Nisha, Interloop, YBG, Sapphire, Mtmt, no Paquistão) fornecem produtos acabados a marcas como Zara e H&M, segundo aponta a ONG.

"O algodão que associamos aos abusos de direitos à terra e ambientais na Bahia tem certificação Better Cotton. Essa iniciativa falhou em impedir que este algodão chegasse aos consumidores preocupados", afirma o relatório da Earthsight.

Criada em 2009 pela indústria e outras organizações, incluindo a WWF, a iniciativa criou um selo para atestar a origem da matéria-prima no intuito de garantir qualidade e respeito ao meio ambiente. No Brasil, segundo dados da Better Cotton, há 370 fazendas certificadas em parceria com a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa).

Em 2018, uma análise feita pela Changing Markets Foundation, organização que visa alinhar mercados a padrões de sustentabilidade com sede na Holanda, sobre certificadoras apontou problemas na Better Cotton. "Em geral, os padrões para o algodão certificado são baixos e aplicam-se apenas ao início da cadeia de abastecimento de algodão. Considerar o certificado uma garantia de sustentabilidade é enganoso", dizia o levantamento.

A Better Cotton, sediada em Genebra, disse à DW que acaba de concluir uma auditoria aprimorada feita por terceiros das fazendas envolvidas e que precisa de tempo para analisar as conclusões e implementar mudanças, caso sejam necessárias. "As questões levantadas [pelo relatório] demonstram a necessidade premente de apoio governamental na abordagem das questões trazidas à luz e na garantia de uma implementação justa e eficaz do Estado de direito", diz o e-mail da iniciativa.

À DW, a H&M afirmou que "as conclusões do relatório são altamente preocupantes" e que encaram a questão com muita seriedade. "Estamos em estreito diálogo com a Better Cotton para acompanhar o resultado da investigação e os próximos passos que serão dados para fortalecer e revisar seu padrão", respondeu a varejista, também por e-mail.

A Zara disse à DW que leva "as acusações contra a Better Cotton extremamente a sério" e exige que a certificadora compartilhe o resultado de sua investigação o mais rápido possível.

"Além disso, solicitamos com urgência as providências tomadas pela Better Cotton para garantir a certificação de algodão sustentável nos mais altos padrões", disse a varejista por meio de nota.

Na quarta-feira, a Inditex, proprietária da Zara, exigiu mais transparência da Better Cotton após anúncio da divulgação do relatório para esta quinta. A Inditex enviou uma carta à iniciativa com data de 8 de abril, pedindo esclarecimentos sobre o processo de certificação e progressos em práticas de rastreamento de cadeias produtivas. A Inditex não compra o algodão diretamente dos fornecedores, mas as empresas produtoras são auditadas por certificadoras como a Better Cotton.

Para Rubens Carvalho, da Earthsight, responsabilizar os europeus é parte da solução para acabar com o desmatamento e violações de direitos nos centros produtores de commodities, como o Brasil.

"O algodão ainda é pouco regulamentado nos mercados europeus. Eles precisam regular seu consumo e desvinculá-lo de impactos negativos ambientais e humanos. É preciso uma regulamentação séria, que puna em caso de descumprimento. Isso aumenta a pressão sobre os produtores", defende Carvalho.
Nádia Pontes

Musk é o garoto-propaganda da taxação global dos super-ricos

No livro "Power and Progress", Daron Acemoglu e Simon Johnson mostram como a excessiva confiança de empresários em suas próprias visões pode produzir grandes desastres. Citam o caso de Ferdinand de Lesseps, diplomata francês responsável pela construção do canal de Suez.

Com a confiança inflada, Lesseps convenceu investidores a construir o canal do Panamá no fim do século 19, apesar das condições adversas e perigosas do novo terreno. O projeto falhou sob sua supervisão, com muitos trabalhadores feridos ou mortos.

Esse parece ser o caso de Elon Musk. Reportagem do jornal The New York Times de 2022 retrata-o como um magnata que "age por impulso e acreditando que está absolutamente certo". Sua fortuna o torna ainda mais perigoso.

Ao adquirir a plataforma Twitter, ao final de 2022, Musk fechou o capital da empresa para evitar a pressão que sofre dos acionistas na Tesla (fora o elevado número de mortes registradas nos veículos "autônomos"). Empresas de capital fechado não precisam divulgar resultados trimestrais nem se sujeitam à regulação ostensiva de autoridades.

Sem essas amarras, Musk fez do Twitter um passatempo que lhe custou US$ 44 bilhões, sendo US$ 12,5 bilhões em dívida bancária. Musk demitiu metade dos funcionários e deu passe livre ao discurso de ódio e à desinformação na plataforma. A queda na captação de novos usuários e no faturamento da empresa levou o fundo de investimento Fidelity —que investiu US$ 300 milhões na operação— a estimar perda de 71% do valor da X Holding desde sua aquisição.

Bilionário falastrão e engajado politicamente em causas próprias, Musk tem usado seu novo brinquedo para ameaçar governos, promover criptomoedas e desafiar anunciantes no X. De onde vem tanto poder?

A fortuna de Elon Musk —estimada em US$ 195 bilhões— é maior que o PIB de mais de 130 países em 2023. Ademais, ele detém um complexo industrial em setores estratégicos: transportes terrestre e aeroespacial, telecomunicações e inteligência artificial. Tais poder e influência geram preocupações.

A Nasa alertou sobre a exposição de tecnologia e informação críticas ao controle da SpaceX e da Starlink. Outros países já emitiram alertas similares e estão trabalhando para substituir o sistema de posicionamento global (GPS) dos EUA por similares nacionais (na Rússia, Glonass; na União Europeia, Galileo; na Índia, IRNSS; na China, Beidou/BDS). Até quando o Brasil vai dormir no ponto?

Além disso, a Tesla já perdeu a liderança no mercado de veículos elétricos, com a implacável avalanche de carros chineses. Musk agora pede proteção tarifária e se esbalda nos pesados subsídios e incentivos do governo dos EUA, que permitiram à Tesla reduzir seus preços.

Se somarmos a tudo isso a promessa de taxação global dos lucros das grandes corporações —a Tesla não paga um centavo de tributo federal, por registrar seus lucros em paraísos fiscais—, há motivos de sobra para Musk salivar pelo retorno de Donald Trump.

É nesse contexto que se dão os ataques contra Alexandre de Moraes. O Brasil vem fechando portas às suas investidas —com a revisão dos contratos que beneficiavam a Starlink e a perda da mineradora canadense Sigma Lithium para a chinesa BYD, o país se torna o lugar ideal para testar um mote da campanha presidencial de Trump. Lá, como aqui, a morosidade do Legislativo em definir o marco regulatório das redes sociais deixa à Suprema Corte a deliberação sobre o tema. Daí nasce a alegação de que o Judiciário viola a liberdade de expressão.

Além da regulação das mídias digitais, o caso Musk revela a necessidade de os Estados nacionais desenvolverem suas tecnologias críticas (como satélites e outras tecnologias da informação) e, sobretudo, a urgência de limitar o acúmulo de riqueza dos bilionários.

Musk é o garoto-propaganda do imposto mínimo global. Que seus ataques ao Judiciário brasileiro unam as nações em torno dessa inadiável agenda.
André Roncaglia

Algoritmo da morte: IA gerou 36 mil alvos humanos a eliminar na Faixa de Gaza

Até pouco tempo atrás o jornalismo independente da revista on-line +972, com sede em Tel Aviv, era pouco conhecido fora das fronteiras do Oriente Médio. Publicada em língua inglesa desde sua fundação, em 2010, ela tem direção e corpo editorial composto de israelenses e palestinos. Seu nome esdrúxulo deriva do código de telefonia usado tanto para Israel como para a Cisjordânia ocupada. No espectro ideológico que estraçalha a profissão, a +972 pode ser definida como francamente de esquerda. É respeitadíssima junto a entidades internacionais de jornalismo investigativo e inversamente incômoda para o governo de extrema direita de Benjamin Netanyahu. Sobretudo em tempos de guerra.

Em novembro último, quando a +972 publicou um inquietante relato sobre o afrouxamento das normas militares que permitiam o bombardeio de alvos não militares por parte das Forças de Defesa de Israel (FDI), houve pouco alvoroço mundial. Uma lástima, pois a investigação, assinada pelo veterano Yuval Abraham, se baseava no depoimento inédito sob sigilo de sete integrantes da ativa e da reserva dos serviços de inteligência israelenses — todos com atuação direta na campanha contra Gaza.



Agora, nos primeiros dias de abril, Abraham e a +972 voltaram à carga, em conjunto com o site em hebraico Sichá Mekomit (Chamada Local). Sempre alicerçado no testemunho de oficiais das FDI, a investigação detalha o funcionamento de dois sistemas de inteligência artificial usados na retaliação militar ao traumático ataque terrorista sofrido em 7 de outubro. O primeiro, batizado “Lavender” (Lavanda), elabora listas de alvos inimigos a ser assassinados na Faixa de Gaza, praticamente sem verificação humana. De que forma? O software analisa informações recolhidas sobre a maioria da população de Gaza (2,3 milhões), monitorada em permanência por Israel, e avalia a probabilidade de cada um ser agente do Hamas. Ao mastigar características de agentes terroristas conhecidos por Israel, o programa busca semelhanças na população. Disso brota a lista de alvos potenciais para assassinatos, produzida pelo algoritmo. As autorizações para o bombardeio passaram a ser quase automáticas, roubando em média 20 segundos de atenção humana.

O segundo programa desenvolvido para a ação militar contra Gaza tem nome com interrogação: “Onde está papai?”. Destina-se a rastrear alvos para bombardeá-los especificamente em casas, apartamentos ou propriedades rurais familiares. “Não estávamos interessados em matar agentes do Hamas apenas quando estivessem em instalação militar ou em confronto”, explicou um dos entrevistados. “Ao contrário. Como primeira opção e sem hesitação, as FDI bombardeavam o alvo em família.” O que explica o altíssimo índice de mulheres e crianças despedaçadas e o apagamento de famílias inteiras.

Segundo entrevistados ouvidos na reportagem, o comando militar de Israel tomou a decisão fatal de tolerar a morte de 15 a 20 civis palestinos para a eliminação de cada militante de pouca relevância. O “dano colateral”. Quando o alvo inimigo fosse um oficial graduado do Hamas, a tolerância aumentava para cem civis mortos. Ou mais. Para eliminar o comandante da Brigada Central de Gaza, Ayman Nofal, o Exército autorizou, segundo a reportagem, um dano colateral de 300 pessoas. Foi uma carnificina e tanto no campo de refugiados de Al-Bureij naquele 17 de outubro. “As regras naquela fase inicial e feroz da campanha eram muito lenientes”, contou um dos informantes. “Arrasavam-se quatro edifícios inteiros, mesmo sabendo que o alvo estava em apenas um — se é que estava. Era muito louco.”

Tão louco que, antes da pressão mundial para a matança ser suspensa, as FDI trabalhavam com margem de erro de 10% nos alvos humanos marcados para morrer. Um horror. Os critérios da “Lavender” eram fluidos, mudavam a toda hora. Funcionários da Defesa Civil de Gaza ou pequenos burocratas deveriam ser considerados militantes do Hamas? Ou simpatizantes? E quem já pertenceu ao grupo, mas se desligou? Um único denominador comum foi mantido com rigor: os alvos primários sempre deveriam ser homens, pois nem a ala militar do Hamas nem o grupo terrorista Jihad Islâmica Palestina tem mulheres em suas fileiras.

Foi nessa toada que a inteligência artificial gerou um catatau de 36 mil alvos humanos a ser eliminados na Faixa de Gaza, o que explica a criminosa mortandade indiscriminada das seis primeiras semanas da guerra: mais de 15 mil palestinos mortos, quase metade do total de 33 mil vítimas computadas até agora. Sem falar no uso maciço das “bombas burras” de arrasa-quarteirão (sem componentes de precisão), responsáveis por danos colaterais infinitamente mais graves que mísseis guiados. “Não é aconselhável desperdiçar bombas caras com pessoas sem importância”, explica um dos ouvidos na investigação.

Recomenda-se a leitura na íntegra dessa investigação. Um Estado militarizado e de vanguarda tecnológica, em que algoritmos calculam em escala industrial quem deve morrer, precisa ser chamado à razão. A sorte de Israel é ter cidadãos dispostos a jogar luz sobre a desumanidade.

Fascismo e democracia: o verme na maçã

Em 1967, em uma conferência realizada em Viena, Theodor W. Adorno apresentou ao seu público observações de uma notável relevância para o nosso tempo, apesar das enormes diferenças que nos separam daquela época. Embora o fascismo oficialmente tivesse colapsado, as condições para os movimentos fascistas, ele afirmou, ainda estavam ativas na sociedade. O principal culpado era a tendência de concentração de capital, uma tendência ainda prevalente, que continua a criar “a possibilidade de desclassificação, de degradação, de camadas sociais que, de acordo com sua consciência subjetiva de classe, eram totalmente burguesas e desejavam manter seus privilégios e status social, e até mesmo reforçá-los”. São os mesmos grupos burgueses que estão caindo de categoria os que desenvolvem um “ódio ao socialismo ou ao que eles chamam de socialismo, ou seja, não culpam a sua potencial desclassificação a todo o aparato que o provoca, mas sim àqueles que adotaram uma posição crítica em relação ao sistema em que, em outra época, os membros desses grupos possuíam um certo status, em todo caso, de acordo com concepções tradicionais”.

Nessas breves linhas, Adorno condensou várias ideias-chave da teoria crítica. Para ele, o fascismo não é um acidente da história, nem uma aberração; ao contrário, opera dentro da democracia e é contíguo a ela. É, usando uma metáfora comum, um verme dentro da maçã, que apodrece a fruta por dentro, invisível a olho nu. Como uma antologia sobre a Escola de Frankfurt diz: “Um dos temas principais da primeira Escola de Frankfurt era que era impossível traçar uma linha clara entre os extremos do fascismo político e as patologias sociais mais cotidianas do capitalismo burguês no Ocidente”. Isso também significa que o fascismo não precisa ser um regime completo. Na verdade, poderia ser uma tendência, um conjunto de orientações e ideias pragmáticas que funcionam dentro das democracias. Nas observações de Adorno também está contida a afirmação de que o capitalismo desdobra tendências para a concentração de capital e poder (uma ideia pouco surpreendente para um marxista, que até mesmo os não marxistas teriam dificuldade em refutar). Adorno ainda não tinha testemunhado a forma espetacular como o capital concentrado conseguiria capturar processos eleitorais democráticos. Ele se referia, portanto, à dinâmica de classes que a concentração de capital criava dentro das sociedades liberais. Essa dinâmica ameaçava constantemente degradar as mesmas classes burguesas que antes tinham contribuído para o sistema capitalista e se beneficiado dele.

É importante notar que Adorno enfoca a burguesia (uma mistura de segmentos das classes alta e média) e não o proletariado como agente desse novo fascismo. Ecoando uma tradição da sociologia que considerava o fascismo como a expressão do medo da “mobilidade descendente”, Adorno sugere que a mesma classe que tinha e ainda tem privilégios é a que apoiará quando esses privilégios estiverem ameaçados. Assim, a perda de privilégios parece ser uma motivação-chave para apoiar líderes antidemocráticos. (Nas eleições de 2016, o apoio a Donald Trump foi maior entre os grupos de alta e média renda. As pessoas com renda muito baixa eram mais propensas a apoiar Hillary Clinton.) O desejo de manter o privilégio ou o medo de perdê-lo é, como sugere Adorno, uma força motriz da política em geral e da política fascista em particular.

O terceiro ponto – talvez o mais significativo (pelo menos para o meu argumento) – contido nas sucintas observações de Adorno sugere que a identificação com o fascismo tem suas raízes em certos modos de pensar sobre as causas (como pensamos sobre por que as coisas são como são) e em certos modos de atribuir culpas e responsabilidades. A classe burguesa degradada não culpará o próprio sistema capitalista pela concentração econômica que mina sua perda de status e privilégio. Em vez disso, atribuirá a culpa àqueles que criticam esse mesmo sistema. Mesmo em sua concisão, Adorno nos faz entender que tentar dar sentido ao seu mundo social é como estar dentro de uma câmara escura, uma imagem invertida do mundo exterior. Continuando com a tradição marxista da crítica à ideologia, Adorno identifica aqui um processo cognitivo muito importante em ação no protofascismo: a incapacidade de compreender a cadeia de causas que explicam a própria situação social. A percepção do mundo social, sugere Adorno, pode ser distorcida de forma fundamental. Os burgueses (e provavelmente outras classes) não podem identificar corretamente as causas de suas perdas e, portanto, não podem se unir àqueles que, mesmo não defendendo exatamente seus interesses, ao menos questionam o sistema responsável por sua degradação.

Em poucas palavras, então, Adorno avança uma hipótese sobre a persistência das tendências fascistas em nossas sociedades, devido tanto aos processos econômicos de acumulação e concentração de capital quanto a certos modos de pensamento distorcidos ou incompletos, que são encontrados especialmente nas maneiras como construímos a causalidade, nas formas como tornamos inteligíveis os eventos e como atribuímos as culpas, apontando para o que, em outro contexto, Jason Stanley chamou de uma ideologia viciada. Uma ideologia viciada, como Stanley a define em How Propaganda Works [Como a propaganda funciona], priva os grupos do conhecimento de seus próprios estados mentais, escondendo sistematicamente seus interesses. Quais são os verdadeiros interesses de uma classe ou grupo de pessoas, é claro, não são autoevidentes. Todo juízo a este respeito será feito com base em certos pressupostos por parte do pesquisador que distingue entre interesses verdadeiros e falsos, reivindicando para si uma certa autoridade epistêmica. Quando se tenta compreender o mundo social, assumir essa posição de autoridade epistêmica parece inevitável. Como cidadã, não acredito nas teorias divulgadas por QAnon e outros grupos conspiratórios; fazer de conta que sua visão de mundo é equivalente àquela apresentada em um jornalismo investigativo é uma forma de má fé. O pensamento, qualquer tipo de pensamento, contém apagamentos, deslocamentos, erros e negações. Recuperar essas negações e esses apagamentos ainda é a vocação da análise crítica da sociedade.


A ideia da Ideologiekritik tem sido criticada abundantemente, mas os acontecimentos políticos recentes sugerem que não podemos facilmente renunciar a ela. Há aqueles que argumentam que a Ideologiekritik frequentemente é realizada de má fé (criticando os outros mas não a si mesmo), ou que concede demasiada autoridade ao pesquisador, ou que, qualquer que seja a escolha que uma pessoa faça, sempre será racional porque seu pensamento reflete seus objetivos. De fato, a análise sociológica deveria respeitar as razões que os cidadãos têm para manter suas opiniões e escolhas: não deveria zombar ou desconsiderar, mas em uma época em que florescem teorias conspiratórias extravagantes que obstruem os processos democráticos de formação de opinião, não podemos mais nos permitir supor que todos os pontos de vista são iguais ou igualmente informados; tampouco podemos nos permitir ignorar as manipulações da opinião que são urdidas por uma classe política cada vez mais sofisticada, extraordinariamente versada nas diversas artes de manipulação da opinião e do boato. O poder dessas artes de manipulação se desacoplou graças à rápida transmissão de informação nas redes sociais. Assim, contra nossa vontade, devemos retornar à ideia da Ideologiekritik: quando se trata de dar conta da realidade, nem todas as ideias são iguais.

Uma ideologia estará viciada se cumprir as seguintes condições: se contradiz os princípios básicos da democracia enquanto os cidadãos realmente desejam que as instituições políticas os representem; se suas políticas concretas (por exemplo, ao pretender representar as pessoas comuns e, no entanto, favorecer políticas que dificultam enormemente o acesso à propriedade habitacional) entram em conflito com seus princípios ideológicos ou objetivos declarados; se desloca e distorce as causas do descontentamento de um grupo social; e se é alheia ou cega para os defeitos do líder (por exemplo, para a corrupção em benefício próprio ou sua indiferença ao bem-estar da nação). No entanto, deve ficar claro que não são apenas os apoiadores dos protofascistas populistas que caem nesta armadilha cognitiva, neste ponto cego. Existem muitos exemplos de casos assim. Jerome McGann argumentou, por exemplo, que a poesia romântica negou as condições materiais em que foi produzida através de evasões ou apagamentos. Os comunistas franceses que acreditavam no regime comunista soviético durante a década de 1950, quando já podiam conhecer a capacidade assassina de Stalin, são um exemplo não menos contundente de uma ideologia viciada.

Seguindo o pensamento de Adorno, o fascismo continua operando no seio das sociedades democráticas porque aqueles que são prejudicados pela lógica da concentração econômica não conseguem unir os pontos de sua cadeia causal e, de fato, podem se opor àqueles que trabalham para desmascará-la, criando assim um antagonismo curioso entre aqueles que se propõem a denunciar desigualdades e injustiças e aqueles que as sofrem. Esse antagonismo tornou-se uma característica-chave de muitas democracias ao redor do mundo. A questão da ideologia viciada é especialmente relevante atualmente porque em todos os lugares, e especialmente em Israel, a democracia está sob o assalto do que Francis Fukuyama chama de populismo nacionalista, uma forma política que mina as instituições democráticas por dentro e que, portanto, permite que os atores mais poderosos da sociedade – as corporações e os grupos de pressão – usem o Estado para satisfazer seus próprios interesses em detrimento do demos, que se sente curiosamente alienado das instituições que historicamente garantiram sua soberania. Como afirmam os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, as democracias não morrem apenas por golpes militares ou outros eventos tão dramáticos. Elas também morrem lentamente.

O populismo é uma das formas políticas que assume essa morte lenta. O populismo não é fascismo em si, sim uma tendência fascista, uma linha de força que exerce pressão sobre o campo político e o empurra em direção a tendências regressivas e predisposições antidemocráticas. Uma enorme quantidade de pesquisas tem tentado explicar o surgimento dessas tendências fascistas. Alguns o explicam pela globalização da mão de obra, que deixou a classe trabalhadora em uma situação precária; outros apontam para uma mudança nos valores culturais à qual o populismo é uma reação. A falsa consciência ou ideologias viciadas também são explicadas pela transformação dos meios de comunicação, que em muitos países foram consolidados e comprados com a intenção explícita de mudar a “agenda liberal” da imprensa dominante.

Na França, por exemplo, o empresário multimilionário Vincent Bolloré é proprietário de várias redes de televisão, incluindo a Cnews, canal de notícias 24 horas que promove uma agenda decididamente de direita. Bolloré foi apontado como o promotor da campanha do populista de extrema-direita Éric Zemmour. Outro exemplo é o bilionário norte-americano de origem australiana Rupert Murdoch, que possui centenas de meios de comunicação em todo o mundo – incluindo a máquina de propaganda que é a Fox News nos Estados Unidos – e foi acusado de usá-los para apoiar seus aliados políticos. Em Israel, por sua vez, o jornal gratuito Israel Hayom, financiado por um magnata do cassino já falecido, exerce uma enorme influência política. Portanto, a concentração de capital em todo o mundo teve o efeito de criar armas formidáveis para distorcer a consciência.

Junto com esse crescente controle da informação, a globalização da economia deixou as classes trabalhadoras em uma situação precária. As políticas globalistas de Bill Clinton, como a assinatura do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), provocaram a ira de muitos eleitores da classe trabalhadora; o presidente do sindicato dos trabalhadores de energia foi citado dizendo: “Clinton nos ferrrou e não vamos esquecer disso”. As classes trabalhadoras não se sentem mais representadas pela esquerda e até questionam a capacidade desta de articular seus interesses, um fato que reflete a implosão da ideologia social-democrata em todo o mundo, e talvez até o esgotamento do liberalismo. A combinação desses fatores explica por que, em alguns lugares, estamos testemunhando o surgimento de tendências fascistas; ainda não é um fascismo pleno, mas uma mentalidade que certamente o predispõe.

Foco aqui em um aspecto desse complexo cenário: a percepção do mundo social através de quadros causais sociais defeituosos, ou seja, explicações viciadas dos processos sociais e econômicos. As palavras “defeituoso” ou “viciado” podem parecer desconfortavelmente próximas de “falso” e podem parecer nos levar de volta às armadilhas epistemológicas e morais da Ideologiekritik. No entanto, “viciado” deve ser diferenciado de “falso” porque não exclui ou nega o pensamento e o sentimento dos cidadãos. Contém a possibilidade de que, embora não seja perfeito, o pensamento não seja falso, mas apenas viciado. Não é falso no sentido de que contém a marca de uma experiência social real que o analista deve recuperar. Essas marcas produzem razões que precisam ser compreendidas e reconhecidas.

Presto muita atenção a essas razões, como fica evidente nas várias entrevistas que conduzi com pessoas que aderem a visões de direita, populistas e ultranacionalistas, nas quais tentei compreender a coerência interna de seus pontos de vista para questionar onde e como os pensamentos sobre nosso ambiente social são distorcidos. Concentro-me nos quadros causais (como explicamos nosso mundo social) e nos modos como afetam profundamente a cognição e o comportamento político.

Se quisermos entender por que motivo alguns quadros podem chegar a distorcer nossa percepção do mundo social, por que motivo somos incapazes de nomear corretamente um mal-estar real, devemos levar o pensamento de Adorno a novos patamares e captar mais firmemente do que ele a interconexão do pensamento social com as emoções. Apenas as emoções têm o poder multifacetado de negar a evidência empírica, moldar a motivação, transcender o próprio interesse e responder a situações sociais específicas. Assim, sigo a sugestão da socióloga sueca Helena Flam, de investigar a influência das emoções na macropolítica e “mapear as emoções que sustentam as estruturas sociais e as relações de dominação”. A política está repleta de estruturas afetivas sem as quais não seríamos capazes de entender os modos como ideologias viciadas se infiltram nas experiências sociais dos atores e moldam seu significado.