terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Vendilhões


Há triunfos que só se conseguem pelo preço da alma, mas a alma é mais preciosa que todos os triunfos.
Rabindranath Tagore


Todos nós os conhecemos, os que vendem diariamente a alma ao diabo, para receberem mais uma honra, um prémio, um título, um penduricalho, uma homenagem. A caça ao triunfo é um desporto que abunda por aí. Discípulos do Rastignac, de Balzac, atropelam tudo e todos, denigrem aqui, autopromovem-se além, lisonjeiam acolá, prometem, ameaçam, namoram, prostituem-se, porque sabem que, não havendo verdadeiro mérito ou havendo-o diminuto, os caminhos para a glória são outros: duros, trabalhosos, obstinados, enviesados, torpes, se necessário, gastando nisso uma energia nervosa que teria podido ser melhor empregue, trabalhando mais e intrigando menos.

Na classe dos escritores, este tipo de esforçado puxador de cordelinhos, que alterna entre a manipulação subtil e o esticão grosseiro, que usa as graças sociais mas não desdenha, ocasionalmente, o pontapé boçal, encontra-se por todo o lado, mas alguns atingem, nisso, um apuramento genial, que de todo lhes falta na obra que assim promovem.

Somerset Maugham, homem amargo e cínico, mas exímio observador das bizarrias humanas, escreveu, sobre estes manipuladores incansáveis da própria glória, um romance admirável: 'Cakes and ale", que recomendo calorosamente aos nossos aspirantes à glória, como exaustivo manual de operações que lhes afine a técnica de que precisa a sua desmedida ambição. Nada se ensina melhor, nesse romance perfidamente analítico, do que a arte de esconder uma ambição devoradora por detrás de uma falsa humildade. Tartufos consumados, vestem os vícios com os trajos das virtudes e, depois de se servirem dos outros como seus servidores e promotores, dão-se ares de nada daquilo lhes dizer respeito, fazendo-se muito surpreendidos por uma honra afinal buscada e arrancada sem elegância. No mundo da escrita, como no mundo da religião, como no mundo das universidades, raramente sopra o vento do sagrado. São mundos darwinianos, em que triunfam, frequentemente, não os mais fortes, mas os mais desmunidos de escrúpulos. Conheci e conheço alguns destes exemplares, que habitam o meu zoo privativo. Tenho a certeza de que povoam também o jardim zoológico de La Bruyère. Mas não estou agora com pachorra para o ir confirmar. Molière também os não deixou escapar, marcando-os, para a eternidade, com o ferrete mordente do seu génio.
Eugénio Lisboa

Um passaporte para o absurdo

O ano se encerra com mais uma das melancólicas polêmicas entre o negacionismo e a ciência. O tema, estimulado pela variante Ômicron, é a exigência de um passaporte sanitário para a entrada de estrangeiros no Brasil.

Bolsonaro é contra e disse que a Anvisa queria fechar o espaço aéreo brasileiro, uma conclusão absurda diante de um conselho mais que sensato. O ministro da Saúde foi mais longe com sua frase bombástica: “É melhor perder a vida do que a liberdade”.

Não dá para argumentar com pessoas tão fora da realidade. São tão malucos que diziam no princípio que o passaporte sanitário era ruim para a economia.

Acham que os turistas preferem mesmo os lugares onde não há preocupações sérias com a segurança. Supõem que a maioria das pessoas prefere viajar num mesmo avião com passageiros não vacinados e compartilhar hotéis, restaurantes, passeios com esses mártires da liberdade, que, na verdade, preferem morrer a se vacinar.


A solução econômica que encontraram é determinar quarentena de cinco dias para quem não for vacinado. Ao cabo desse período, eles podem não ter o vírus, mas continuarão não vacinados; portanto, vulneráveis, aumentando o risco coletivo.

Se fôssemos argumentar com o mesmo grau de absurdo, deveríamos lembrar as intensas campanhas que o Brasil fez contra a prostituição infantil. O país dizia claramente nos cartazes e na própria atuação da PF que era uma prática condenável, passível de cadeia. Os estrangeiros que vinham para o Nordeste fazer turismo sexual não eram bem-vindos. Era um tipo de liberdade que violava as leis nacionais. E os eventuais dólares que gastavam aqui não justificam nenhum nível de tolerância com suas práticas.

Quem recusa a vacina não entra em choque com a lei. Mas precisa assumir as consequências de sua decisão. Não é racional a frase de Queiroga, creio que ele dá uma banana para a racionalidade, que condena a discriminação aos não vacinados.

Bolsonaro diz que é Flamengo, algo em que não acredito, pois é apenas um caçador de votos. Se quiser visitar o clube de sua hipotética predileção, será justamente barrado. Ali, a norma é a aceitação de vacinados.

Dentro desse delírio negacionista, Onyx Lorenzoni queria impedir as empresas de exigir a vacinação de funcionários. Todas essas bobagens são ditas em nome da liberdade.

Existe a possibilidade de a variante Ômicron não ser tão pesada assim. Mas é necessário lembrar que no Hemisfério Norte ainda há ondas de contágio. Estão entrando no inverno e, possivelmente, veio da lá a influenza que se propaga rapidamente no Rio.

Talvez seja a última batalha do negacionismo, essa do passaporte. Bolsonaro tentou desacreditar a vacina, investiu contra a CoronaVac, insinuou que a Pfizer nos transformaria em jacaré.

Apesar de todo o esforço negacionista, a enxurrada de fake news na rede, a vacinação no Brasil tem sido um sucesso. Jornais da Alemanha mencionam esse êxito.

Derrotados em todas as linhas, os homens do governo investem contra o passaporte sanitário. A fórmula que encontraram para aceitar não vacinados pelo menos encarecerá em mais ou menos US$ 300 a estadia no Brasil, pois devem ficar isolados cinco dias.

No fundo, Bolsonaro e Queiroga sabem que, ao transferir o controle da quarentena para os municípios, o controle será missão impossível. Importante que seus turistas não vacinados não acreditem nisso. Suponhamos que algumas prefeituras se dediquem realmente à tarefa de controle. Voltarão arrependidos.

Aliás, os mais espertos perceberão que um governo que luta até a morte pela sua liberdade não é assim tão fanático, ao propor uma semana de prisão num quarto de hotel. Bolsonaro e seu ministro da Saúde simplesmente se enrolam na própria teimosia, são incapazes de ver o rumo da luta contra a pandemia no mundo.

Bolsonaro merecidamente deveria ser escolhido o idiota do ano. E nem poderia reclamar, pois é um título ainda suave para descrever sua performance.

Inimigo público nº1

Nunca um presidente eleito diretamente pelo povo fez tanto mal ao Brasil como ele – e isso deve ser estudado em profundidade para que jamais se repita. Acertos não ensinam. Infelizmente, só aprende-se errando 

Bolsonaro usa no ataque à imprensa seguranças armados com recursos públicos

O ataque de domingo do segurança e dos seguidores de Bolsonaro a jornalistas das TV Bahia e TV Aratu afiliadas da GLOBO e SBT é absolutamente inaceitável e embute um perigo enorme. Há uma cena que conseguiu ser gravada em que um segurança ao lado do presidente reage porque um fio do microfone tocou seu braço. Esse segurança está com uma arma ostensiva no coldre. Se é uma pessoa tão descontrolada e é segurança da presidência, com o salário pago pela sociedade brasileira. É um servidor público e um perigo para a sociedade. E se ele sacar a arma numa hora dessas? A cena é de uma pessoa descontrolada.

E esse segurança ainda acha que o fio que encostou nele foi agressão e repete:

–Se bater de novo vou enfiar a mão na tua cara.

Esse segurança precisa ter seu nome identificado pela presidência, afastado das ruas e ser admoestado sobre isso. É um profissional e claramente para reagir assim está contra o trabalho dos profissionais. Na cena que não conseguiu ser gravada, a reporter da TV Bahia, afiliada da Globo, recebe uma gravata de outro segurança. Repito: é um funcionário público e isso é inaceitável na democracia. A imprensa tinha o direito de estar lá.

Em outra cena, se vê um seguidor atacar os jornalistas, e consegue rasgar parte da proteção do equipamento do TV Aratu, afiliada do SBT. O secretário de obras da cidade, Antonio Charbel, puxou os fios dos microfones dos jornalistas.

Essa não é a primeira vez: teve recentemente aquele ataque na Itália, em que os seguranças da presidência agrediram os jornalistas. De onde nasce isso? O presidente da República estimula, incentiva, ataca verbalmente os jornalistas e já ameaçou dar um soco num repórter do jornal O GLOBO. Houve outro episódio com a CBN. O que mais as instituições esperam?

Desde o começo dessa presidência a imprensa está sob ataque. Bolsonaro já atacou, difamou e injuriou alguns jornalistas em manifestações públicas e o fez principalmente contra mulheres. Ao fazer isso, ele está estimulando os seus seguidores para que o façam. E pior: os seguranças acham que o inimigo é o jornalista que faz a pergunta.

Tem que haver mais do que notas das empresas e das associações de jornalistas repudiando os atos. É preciso ver que isso tem método e a imprensa é o alvo do presidente, é parte do seu projeto autoritário e tudo vai piorar no ano que vem.

Temos pela frente uma campanha presidencial em que Bolsonaro está em desvantagem. Todo o cuidado é pouco para preservar a integridade dos jornalistas que estarão em campo cobrindo essa eleição. Bolsonaro ataca usando como armas os seguranças pagos pela sociedade, armados pela sociedade para proteger a "presidência". E que se comportam com a truculência de bandidos. E mais: ele usará os recursos da presidência, pagos por nós, para fazer campanha eleitoral. O extremo perigo que isso significa ficou claro mais uma vez.