sábado, 20 de fevereiro de 2021

Labirinto de espelhos

Por nossos erros ao longo de décadas, o Brasil está ficando para trás na marcha do progresso. Em decadência pela desigualdade social, pobreza, fracasso educacional, sem produtividade nem inovação, um Estado esgotado fiscal, gerencial e moralmente, sistema de ciência e tecnologia insuficiente, democracia e instituições políticas frágeis, sociedade violenta e armada, cidades “monstropolitanas”. Para agravar, com governo despreparado, desumano, sem bússola, antidemocrático, antissocial, sem empatia, reacionário, armamentista, preconceituoso, negacionista do valor do conhecimento, desmoralizado no cenário internacional.

O Brasil precisa de um rumo para orientar-se no seu terceiro centenário, que se inicia no próximo ano. Mas antes mesmo de formular este rumo, o Brasil precisa de coesão no presente e evitar o desastre previsível para os próximos. Ao observar os movimentos dos candidatos a presidente em 2022, a sensação é de que eles estão passeando em um labirinto de espelhos: nenhum sabe o caminho e cada um olhando para si ou seu partido, não para o país. Não reconhecem os erros cometidos que levaram à derrota em 2018, nem assumem responsabilidade pelas consequências de reeleição do atual presidente. Ao final do labirinto de espelhos, os candidatos imaginam a cadeira presidencial lhes esperando, sem perceberem que os caminhos labirínticos podem levar a um abismo.

Além de não perceberem o labirinto de espelhos, os candidatos não estão buscando construir uma base eleitoral capaz de vencer e impedir à maldição de um segundo mandato de Bolsonaro. Evitando ficarmos ainda mais divididos e desiguais internamente, isolados internacionalmente, armados miliciamente, enganados pelo negacionismo. E ainda ameaçados de reforma constitucional para permitir mais de uma reeleição depois.

Nossa função imediata consiste em unir os candidatos e escolher aquele com mais condições de atrair o voto do eleitor, com a menor rejeição. Na tormenta, a âncora é mais importante que a vela. Precisamos de quatro anos que permitam o debate entre os candidatos, buscando um projeto de nação para o terceiro centenário da independência. Até lá, precisamos quebrar os espelhos: os candidatos olharem menos para seus partidos e mais para o país, se preocuparem menos com seus programas, visões e interesses pessoais e mais com a tarefa do presente, menos divisão personalista e ideológica e mais unidade democrática, desde o primeiro turno.

Cristovam Buarque

En la Brazuela

Boa tarde, Venezuela
Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central

 * Há 20 anos Hugo Chávez nomeou o general Manuel Quevedo como presidente da estatal PDVSA. Em dois anos, o militar aprofundou o processo de sucateamento da petroleira.

Viva La Muerte!

No dia 12 de outubro de 1936, o oficial franquista José Milan Astray, durante a cerimônia de abertura do ano letivo na Universidade de Salamanca, em resposta ao discurso contra o fascismo proferido pelo filósofo Miguel de Unamuno (1864/1936) reagiu, aos gritos, com uma série de impropérios, em nome da brutalidade fascista como valor absoluto.

Concluiu com a tristemente famosa frase: “Abajo la inteligência, viva la muerte!”.


Esse fato histórico me veio à mente ao ler os quatro decretos recentes da Presidência da República visando a desregulamentação e afrouxamento dos controles sobre as armas entre nós. Da sua exegese resta claro o malefício contra a vida e, reversamente, o benefício à violência, ao crime organizado e às milícias.

Armas e equipamentos, antes de uso limitado e sob o controle do Exército, são liberados. Amplia-se a munição disponível, idem armas de uso restrito. Afrouxam-se os controles sobre renovação de registros de atiradores, antes feitos pela Polícia Federal e agora afeito aos clubes de tiro.

Tudo isso na esteira de 30 outros decretos ou regulamentações diversas na mesma direção: liberar o acesso e promover a massificação das armas no país. Mas há outras questões – e graves.

Até aqui o debate sobre o armamento ou não da população, era travado no âmbito da segurança pública, da sua maior ou menor contribuição para a segurança individual – jamais pública! Ao afirmar que é preciso armar a população para que ela preserve sua liberdade, o Presidente politiza o debate e ataca frontalmente o papel constitucional das Forças Armadas.

Na constituição de uma nação, qualquer nação, o seu nascimento efetivo se dá quando o Estado passa a ter o monopólio da violência legal. E esta, em última instância, é exercida pelas instituições armadas, constituídas de cidadãos a quem é dado o mandato da defesa, da soberania e da integridade nacional.

Ao propor o armamento dos brasileiros, fere-se de morte, tanto o monopólio como o papel constitucional das Forças Armadas. E invoca-se, conscientemente ou não, o terrível fantasma de uma guerra civil, brasileiros contra brasileiros. Mais armas, a literatura mundial tem consolidado, mais mortes.

A autotutela da cidadania, via armas, desacredita o papel das políticas de segurança, corrói a democracia, e é uma ilusão que sai caro a toda sociedade. Além de adiar o enfrentamento da questão de como reformar o nosso sistema penal e as nossas polícias para a defesa da vida de todos.

Brasil polarizado

 


Em momento de luto, Bolsonaro facilita acesso a armas

Neguinho da Beija-Flor, um dos ícones das Escolas de Samba do Rio, produziu a melhor frase sobre o estado de espírito melancólico que tomou conta do Brasil: “Estou de pleno acordo que não tenha Carnaval, porque seria desfilar por cima de cadáveres.” Esse luto vai além dos quase 250 mil mortos pela covid-19. Ele representa o fracasso completo do país no último ano em várias áreas: meio ambiente, educação, segurança pública, relações exteriores, direitos humanos e economia. Neste momento de pura tristeza, o presidente Bolsonaro ampliou o acesso às armas e disse que o povo vibrou com a medida.

Há um contraste evidente entre o luto que perpassa todo este período pandêmico e a visão de mundo do bolsonarismo. De um lado, o crescimento dos casos e mortes pela covid-19, a ansiedade pela vacina como única forma de sair desta crise sem fim, a esperança e o temor que marcam a tentativa de reabrir as escolas, as cenas na TV mostrando o fogo e o desmatamento na natureza mais bela do país, a precarização da vida da maior parte da população. De outro, a descrença na ciência, a falta de empatia com os mortos pela doença, o conflito contínuo com prefeitos, governadores, STF e opositores, vistos como inimigos políticos a se destruir, o desmonte da maioria das políticas públicas e a crença na redenção do país pelo maior alimento do ódio: as armas.

Não será fácil o país sair dessa encruzilhada. Primeiro porque o presidente usou o Poder do Executivo federal, com muitas verbas e promessas de cargos, para ganhar as eleições na Câmara e no Senado. Ambos os eleitos se dizem independentes, mas, como venceram com uma boa ajuda do governo, terão dificuldades para exercer a autonomia plena. Poderão calar a boca dos críticos e provar nos próximos dias que têm legitimidade suficiente para comandarem soberanamente o Legislativo.


Rodrigo Pacheco poderá instalar logo a CPI da pandemia, antes que os números piorem mais e situações semelhantes à de Manaus se repitam noutros lugares - na verdade, alguns Estados e municípios estão caminhando celeremente para o colapso. Arthur Lira precisa mostrar que a Câmara federal não é um puxadinho do Executivo e definir que, independentemente do conteúdo da questão, há limites claros do poder de decreto do presidente. Os dois terão estatura política para tomar tais decisões? A única coisa certa é que se não controlarem os arroubos autoritários do Palácio do Planalto, corremos o risco de passarmos por um luto democrático daqui a dois anos.

Os órgãos de controle também foram colocados contra a parede pelas jogadas políticas do bolsonarismo. As interferências no Ministério Público Federal, na Polícia Federal, na Abin e na Receita Federal, bem como a simbiose criada com as Forças Armadas, são sem precedentes no período democrático recente. Alguém poderia retrucar que o procurador-geral da República, Augusto Aras, está agora investigando o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. O estranho é que o MPF não tenha atuado antes, porque o governo tem receitado cloroquina há meses, o presidente não cumpre minimamente as regras de distanciamento social desde o início da pandemia e o descaso com as vacinas, pelas milhares de mortes que poderiam ser evitadas, é muito mais relevante do que qualquer outro pecado cometido por governantes anteriores.

Mais um fator dificulta sair dessa longa “quarta-feira de cinzas” na qual vivemos desde 2020: a oposição está muito dividida, em todos os espectros ideológicos, e não tem ainda a noção do que significa ter um presidente que se regozija quando aumenta o poder de os cidadãos atirarem e se matarem. E aqui não se trata simplesmente de montar uma frente ampla contra Bolsonaro. O que chama mais a atenção é como as legendas estão brigando freneticamente tanto no âmbito interno como no externo. PSDB e DEM estão se despedaçando em praça pública, bem como Ciro e PT se escolheram como inimigos. Enquanto isso, o verdadeiro adversário sorri do amadorismo político de todos os grupos que comandaram o país desde 1985.

O longo luto no qual estamos inseridos tem como motor principal as políticas públicas bolsonaristas. O país não terá uma vacinação relevante, em termos numéricos, provavelmente até o fim do primeiro semestre, numa perspectiva otimista. Isso significa mais e mais cadáveres, colapso do sistema de saúde e inviabilização de uma série de esferas da vida social, especialmente as atividades econômicas.

A pandemia foi desgraçada para além do campo da saúde. Seus resultados na educação foram terríveis, porque milhões de crianças pobres tiveram acesso precário ao ensino durante 2020. Desse modo, semeamos uma enorme desigualdade para o futuro, que se somará ao nosso pesado legado histórico. O retorno às aulas é fundamental, porém, isso não gera um “happy end” imediato. Muitas escolas e redes terão, num primeiro momento, enormes dificuldades de garantir as condições sanitárias mínimas. O desafio no campo pedagógico é ainda maior, uma vez que não será em 2021 que os alunos mais carentes recuperarão o que perderam no ano passado. Trata-se de uma tarefa de dois ou três anos letivos, que depende de muito investimento na formação dos professores, acolhimento das famílias, melhorias didáticas e, particularmente, colaboração federativa entre os níveis de governo.

Num contexto tão desafiador, o MEC, representante da visão educacional do bolsonarismo, não está olhando para os verdadeiros problemas do setor. O ministério teve no ano passado o pior nível de investimento desde 2015. O ministro disse que o problema da volta às aulas é dos Estados e municípios. E a agenda congressual do governo para a área prioriza o tema da educação domiciliar (“homeschooling”). Tente contar agora para as famílias que o melhor é que elas sejam as responsáveis pela educação de seus filhos, depois de terem visto as dificuldades da educação a distância na pandemia. Ouvindo isso, pais, mães, crianças e educadores só podem ficar desanimados com este projeto sem pé nem cabeça.

No fundo, o governo segue na educação a mesma estratégia da maioria de suas políticas: a criação de um modelo de desresponsabilização do Estado de seus deveres e tarefas. Assim também ocorre na área ambiental, que desaparelhou seus principais órgãos e agora vai retirar, em abril, as Forças Armadas da proteção da Amazônia. Alguém tem dúvida sobre o que vai acontecer? Desmatamentos e queimadas, especialmente a partir de junho, vão crescer fortemente, e sentiremos mais um luto ao longo de 2021, o de perder a natureza que deveríamos legar para nossos filhos e netos. Pior: isso terá efeito imediato em nossas relações com a União Europeia e os Estados Unidos, gerando mais problemas para a economia, que ficará cada vez mais longe da recuperação em V sonhada por Paulo Guedes - no curto prazo, o único V que veremos é o do crescimento dos casos e mortes pela covid-19.

Em meio a tantas mortes, o pior projeto do presidente Bolsonaro é a ampliação do acesso aos armamentos pela população. Desde 2018 houve um aumento em 65% no acervo de armas nas mãos da população brasileira. Os defensores diriam que isso protegerá os “cidadãos de bem”. Por enquanto, o resultado tem sido outro: o número de mortes violentas cresceu mais de 70% e, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 os crimes contra vida elevaram-se em 5%, exatamente num ano com mais gente dentro de casa e menos atividades econômicas e sociais.

A ideologia armamentista do bolsonarismo é um perigo para os cidadãos e para a democracia brasileira. Afinal, quem de fato será armado neste processo? Os mais pobres que precisam “se defender dos bandidos” ou grupos milicianos e indivíduos mais privilegiados com tendência maior à violência? Melhor não seria ter uma polícia mais bem treinada, equipada, com melhores condições de trabalho, vinculada às comunidades e controlada pela sociedade?

O que mais chama a atenção aqui é o silêncio da maior parte dos líderes religiosos do país, pois a religião cristã tem como principal discurso a defesa da vida. Mas lideranças evangélicas fundamentais, por exemplo, não só estão caladas agora frente a esta escalada armamentista, como também falaram pouco ou quase nada sobre o fracasso da política sanitária do país que favoreceu a multiplicação das mortes na pandemia. Quantos fiéis pobres morreram de covid-19? Esse luto ficará por anos e a história contará no futuro quem fechou os olhos para a “necropolítica” do presidente Bolsonaro.

Para que o país saía desse longo luto e volte a desfrutar da alegria do Carnaval em 2022, é preciso ter muita vacina, políticas efetivas de saúde pública e melhoria em várias outras políticas públicas. Isto porque há vários tipos de “cadáveres” em nosso caminho: além dos mortos, há vários tipos de perdas que dificultam o Brasil virar a página. Um deles é a falta de uma visão civilizada de como podemos favorecer mais a vida e incitarmos menos a morte. Afinal, no dia em que Bolsonaro comemorava o decreto das armas em São Francisco do Sul (SC), do outro lado do território catarinense, em Chapecó, o sistema de Saúde entrava em colapso por causa da covid-19. Em vez de ficar sorrindo com seu séquito armamentista, Bolsonaro poderia ter ido ajudar quem estava entrando neste luto sem fim.

Política infectada de verde-oliva

De todos os sintomas do enfraquecimento da democracia, o mais inusitado é a existência de generais que ainda imaginam que o cumprimento das leis ou o destino do país depende de ameaças fardadas. O papel das Forças Armadas é delimitado pela Constituição. A política não está entre as atribuições dos militares.

Aos generais cabe se mover nos trilhos das normas da sua corporação. Quanto mais poder de mando tiver um oficial, maior deve ser o seu silêncio sobre temas políticos. Sempre que essa regra foi esquecida no Brasil, o resultado foi a anarquia, o arbítrio ou as duas coisas

Corrida presidencial

Em solitário se possível, em matilha se não houver outro jeito, não há ideia nenhuma na mesa. Só iscas para atrair a caça: João Dória, o faminto, com suas vacinas; Sérgio Moro, o que prende; Luciano Huck, o conhecido das massas, com a reforma da lata velha; Lula, com seus postes e “campeões” amestrados; Boulos o invasor; Ciro o cabra macho…

E como quanto mais destruído chegar o país a 2022 maior a chance de cada um, Bolsonaro pode continuar sendo só “o que não sou nenhum deles”…

“O Brasil é a China da vez. Nosso salário, quando há, já é menor que o deles. Se tirarmos a privilegiatura da jugular matamos a pau”!

Não. Nada nessa linha…

Nenhum Brasil com que qualquer deles tenha sonhado.


Andar pra frente? Alcançar o mundo? Isso é sobre democracia. E democracia é sobre a relação de um povo com seu governo. É sobre os limites da ocupação de espaços pelo Estado ou pelo povo. É sobre transformar a caça em caçador e vice-versa.

Corações e mentes disputa-se com ofertas de poder. O governo do povo, pelo povo e para o povo. Mas no Brasil de Brasília não há povo nem sonhos. Tudo é como é. Tudo será como sempre foi.

No máximo não se afogar…

Miséria disputa-se pelo tamanho da esmola: “Dou-lhe tanto pra que seja eu”.

A verdadeira religião nacional

Não deve ser coincidência que um dos países mais desiguais do mundo tem também fé inabalável na meritocracia. Tudo que você quiser você pode alcançar; basta querer.

De música da Xuxa a palestra motivacional do mundo corporativo, você já ouviu variantes disso. A promessa do sucesso baseado unicamente no mérito individual está em toda parte.

Está na autoajuda vendida por coaches, pelos gurus de finanças com suas fórmulas de day trade e por vendedores de esquemas de pirâmide, todos prometendo riqueza fácil. O discurso do mérito individual é o que alimenta as indústrias aparentemente tão opostas do empreendedorismo (com suas estrelas, livros e cursos de sucesso) e do mundo concurseiro. "Só não passa quem desiste", diz um mantra concurseiro. Ou —vale completar— quem morre.

Seja para montar um negócio brilhante ou para ingressar no paraíso do serviço público estável, a regra é a mesma: trabalhar e estudar enquanto os outros dormem, dar tudo de si, sacrificar o que for necessário e, acima de tudo, acreditar. Esportistas, músicos, blogueiros de Instagram, youtubers; todos entoam a mesma melodia.

Esse discurso funciona para quem o vende: para o empreendedor cujo empreendimento é ensinar empreendedorismo. Para quem compra, nem tanto. Os esquemas de pirâmide aqui se multiplicam e adotam mil roupagens.


De shakes dietéticos e produtos de beleza a grupos de espiritualidade feminina. É um tentando ganhar às custas dos outros, num jogo em que, necessariamente, para um ganhar, vários têm que perder. E os que terminam por cima ainda escrevem livro e vendem curso passando adiante suas lições.

Não é só na vida terrena que a crença na meritocracia nos governa. Ela molda também nossa relação com o mundo espiritual. Creia em Deus com fé inabalável, doe bastante dízimo, que Ele lhe recompensará. Fora do espectro cristão a mesma regra vale: esprema qualquer grupo ou doutrina esotéricos e você descobrirá, escondida por trás de muitos mistérios, a velha Lei da Atração: o universo lhe dará aquilo que você deseja ou mentaliza. Se ficou doente ou perdeu o emprego, bem, talvez você devesse ter atraído energias melhores.

Quem não ganha dinheiro é vagabundo. Quem morre de doença é fraco. O brasileiro é um crente desesperado na meritocracia. Quem está por baixo, para manter viva a esperança de subir. Quem está por cima, para justificar sua própria situação. Só que isso está nos matando.

Comprar armas de fogo, não tomar vacina, não usar máscara, dirigir alucinado pelas estradas, desmatar e poluir livremente. Se eu quero, eu posso. A segurança pública vai mal? Mais armas na mão. A educação pública vai mal? Libera o homeschooling. Consequências sociais negativas, efeitos nocivos de longo prazo? "E daí, quer que eu faça o quê?" O ganho de curtíssimo prazo de alguns consome o ganho de longo prazo de todos.

A crença meritocrática parte de algo positivo: o desejo de criar, de conquistar, de ir além; a ambição que leva ao crescimento. Competir, dentro de certos limites, é bom.

A ambição pessoal é um motor que não deve ser sufocado. Trabalhar, empreender e criar são marcas nacionais. Mas o excesso está nos matando: uma overdose tóxica de coaches, blogueiras, pastores, empreendedores de palco e esquemas de pirâmide que nos pinta, como ideal de sociedade, a lei da selva. Falta alguém que reconheça o óbvio —não, não é possível todos "chegarem lá"— e tire as consequência políticas disso.

Esta angústia que não nos larga

É uma dor miudinha que se sente e não se sabe bem definir. É o medo da Covid-19, misturado com a saturação do confinamento. É ter vontade de fazer coisas, mas não conseguir sair do sofá. É fazer scroll down compulsivamente no telemóvel, e ficar uma sensação ainda pior depois de horas desperdiçadas a olhar para um ecrã. É trabalhar dia e noite, sem desligar, porque o computador está sempre ali à mão e há sempre emails para responder. É chorar por tudo e por nada ou reagir de forma explosiva a ninharias. É comer e beber demais para compensar tudo o que não podemos fazer. É querer sair de casa, mas ver ameaças em todo o lado e ter pânico de espaços com muita gente. É dormir mal e sofrer de uma incapacidade de meter tudo em perspetiva. É uma falta de ar, uma dor no peito, um aperto na garganta. Se sente algum destes sintomas, acredite que não está sozinho. Há muito mais gente do que possa pensar a passar exatamente pelo mesmo.

Olho à minha volta e vejo uma outra pandemia que toma proporções dramáticas: a da ansiedade e depressão. Silenciosa, cresce quase sem que se dê conta. Não há doença mais democrática: não escolhe classes, idades nem géneros. E toca a todos – mesmo pessoas que tinha como improváveis. Amigas cheias de boa energia, sempre com um sorriso na cara. Familiares doces e tranquilos. Pessoas com vidas que os outros consideram perfeitas, com dinheiro, amor e saúde. O que nos falta – a todos – é a normalidade. A normalidade das rotinas, dos pequenos hábitos, da segurança reconfortante. A Covid não veio só roubar vidas, arrasar com os hospitais nem destruir a economia: veio colocar a nossa saúde mental à maior das provas.


Os especialistas já lhe arranjaram um nome: “Síndrome de Stresse por Covid-19”. Mais do que uma fobia, inclui o medo de ficar infetado, o medo dos impactos socioeconómicos da doença e vários sintomas de stresse pós-traumático. Pode chegar e dominar quem nunca teve quaisquer vestígios de ansiedade ou depressão, ou agravar quem já padeça destas doenças. Tende a aumentar nas zonas ou nos períodos temporais de maior risco, quando a ameaça é maior. E pode, segundo os psicólogos, deixar marcas irreversíveis quando tudo passar.

De todas as doenças que ficaram para trás durante a pandemia, a saúde mental é a mais negligenciada. Em Portugal, os estudos mostram que pelo menos 23% dos cidadãos sofrem de perturbações e um terço tem sinais de sofrimento psicológico. Porém, os problemas do foro psiquiátrico − por razões socioculturais, preconceito e desconhecimento − continuam a ser desvalorizados pelos doentes e pelas suas famílias. E também por sucessivos governantes e pelo Serviço Nacional de Saúde.

É bom que fique claro que temos, neste momento, instalada uma crise de saúde mental de enormes proporções. Que afeta adultos mas também crianças e adolescentes – é impressionante o aumento das tentativas de suicídio nos jovens. Portugal já era o quinto país da OCDE que mais consumia ansiolíticos e antidepressivos, mais do dobro do que países como a Holanda ou Itália. Uma situação que a pandemia veio agravar: nunca consumimos tantos antidepressivos como agora. Em 2020 foram vendidas quase 11 milhões de embalagens.

Esta situação explica-se por diversos fatores: prescrição fácil e automedicação, é certo, mas também uma enorme falta de psicólogos e de psicoterapeutas no SNS. Estima-se que nos centros de saúde existam cerca de 250 psicólogos – uma média de 2,5 psicólogos para cada 100 mil habitantes! Não há uma rede capaz de responder a todas as solicitações. E as consultas nos privados são incomportáveis para a maioria das bolsas portuguesas, da mesma forma que a psicoterapia está excluída da maior parte dos seguros de saúde. Não existindo tratamentos não farmacológicos nos cuidados de saúde primários, não resta outra alternativa senão prescrever medicamentos para acalmar os sintomas.

Se não existisse a pandemia, 2020 seria supostamente um ano de investimento na saúde mental. Os planos e projetos ficaram adiados por força da Covid-19. Mas é bom de ver que, exatamente porque existe uma pandemia, é urgente atender a este problema de dimensões devastadoras. Um país doente com Covid-19 não funciona. Mas um país doente com depressão e ansiedade também não.