quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Pensamento do Dia


 

Novo poder

Em graus variáveis, a anomia existe em todas as sociedades, em níveis compensáveis pela vontade coletiva em favor de elementos de identidade e de concepções relativas ao primado do bem comum. O que vem sendo chamado de política do ódio tem o deliberado propósito de dividir a sociedade, criar insegurança e medo, tornar a fatalidade mais do que um pretexto, um instrumento de controle social e político. A fatalidade se tornou um poder.

José de Souza Martins

'Onde há vida, há esperança!', dizia o Dom Quixote

A vida não pode ser apenas vegetar ou sobreviver. É necessário e urgente que algo mais nos sirva como motivação, desencadeie entusiasmo e nos faça sentir não apenas vivos mas úteis e relevantes para alguém. Podemos optar pela ideia niilista de Kafka, que dizia que o sentido da vida é que ela termina, ou concordar com Goethe: “Uma vida inútil é uma morte prematura.”

Uma das razões por que por vezes os ricos se suicidam mais do que os pobres nos países desenvolvidos será precisamente por isto. Enquanto os pobres lutam todos os dias para sobreviver e estão ocupados em conseguir sustento para os filhos, os ricos não necessitam dessa força motriz e caem justamente pelo vazio existencial.


Não havendo um projeto de vida nem tendo de lutar pela sobrevivência, o que resta? Em entrevista recente ao Jornal de Negócios, dizia Rutger Bregman: “Então, para mim, há uma certa superficialidade e uma certa infantilidade nessas pessoas [ricas] que, continuamente, querem comprar coisas desnecessárias, para impressionar pessoas de quem não gostam. Essa é uma existência bastante triste.”

Há duas ou três coisas que podem dar sentido à vida de alguém.

Desde logo uma família. Ter o prazer de viver ao lado da pessoa amada, de acompanhar o crescimento dos filhos e o desenvolvimento dos netos é desiderato que preenche a necessidade de sentido de muitos homens e mulheres. As preocupações com a saúde dos nossos, as alegrias que nos proporcionam e o prazer da sua companhia são mais do que suficiente para muitas pessoas.

O problema é quando surge a síndroma do ninho vazio, quando os filhos saem de casa para constituir família e os netos passam a fase da adolescência e já não precisam do apoio dos avós. Ou quando vem um luto e a pessoa fica reduzida a si mesma, na solidão, entre quatro paredes.

Outros vivem intensamente a sua carreira profissional. A perspetiva da valorização, a atualização de competências, as promoções e os projetos e alvos de quem gosta do seu trabalho representam o suprimento de um sentido para a sua vida.

O problema é quando surge numa qualquer esquina da peregrinação um desemprego inesperado, ou quando vem a idade da reforma e, de repente, a pessoa se sente inútil se acaso não souber reagir a essa fase da vida e reformular-se.

Há outros ainda que se dedicam a uma ideologia política, religiosa ou social, ou então a uma causa humanitária.

Todas estas coisas que preenchem a necessidade humana de sentido podem funcionar durante muito tempo, mas de uma forma ou de outra há sempre um momento em que se esgotam. É por isso que não se deve jogar a vida toda num só tabuleiro. É bom que a família, a profissão ou o ativismo não esgotem totalmente as nossas energias. A verdade é que cada indivíduo, além de ser pai, mãe, avô, avó, profissional ou ativista, é uma pessoa, um ser humano.

Interessar-se pelas artes, por viajar, por adquirir novos conhecimentos e por ser útil ao próximo e à sociedade é uma necessidade para a vida toda, independentemente da família, da profissão ou de qualquer outro envolvimento, por mais gratificante ou altruísta que seja.

Em suma, ninguém deveria viver apenas para a família ou a profissão, se ao mesmo tempo não alimentar um projeto de vida pessoal, isto é, se ao mesmo tempo não for capaz de viver também para si. Quando se passa uma vida inteira com o foco exclusivamente nos outros, descurando-se a si mesmo e às suas necessidades pessoais, vai chegar o tempo em que se percebe que ficou por preencher um espaço vital. E das duas uma, ou o indivíduo encontra energia para se reconverter rapidamente ou então entra numa espiral de desânimo e degradação preocupante.

Vitor Frankel, o pai da Logoterapia, aprendeu às suas custas e de forma dolorosa, enquanto prisioneiro num campo de concentração nazi, que é urgente para cada indivíduo encontrar um sentido para a sua existência. Nem que seja nas condições mais desfavoráveis ou adversas e mergulhados em sofrimento duma forma que é difícil imaginar. Foi esse entendimento que o manteve vivo, essa capacidade de encontrar um sentido para a sua vida mesmo naquelas condições e sempre na iminência da morte.

Devíamos aprender com ele, não esquecendo que Cervantes pôs o Dom Quixote a dizer que “onde há vida, há esperança.”

O populismo e a tragédia

Difícil conceituar o populismo. Tem muitas faces e disfarces. Porém, pode ser identificado como uma atuação (ou prática) política centrada nos interesses do “povo” em contraposição aos interesses das “elites”. Este é o ponto de partida comum para a compreensão da diversificada experiência populista.

O antagonismo que á fecundo para o exercício da democracia, é o ambiente em que viceja a retórica da redenção dos oprimidos. A partir desta concepção, surgem características e elementos convergentes constitutivos do discurso e da ação política. Começa com um líder firme e forte; carismático, sedutor que desdenha da verdade porque ele é a autoverdade. Por isso, detesta a liberdade de opinião.

Nesta toada, ao interpretar a voz da ira popular, a liderança ataca o “sistema” que é corrupto e imoral (mesmo que dele faça parte); cresce nos momentos de crise política e econômica, aponta o caminho de soluções simples (e erradas) para problemas complexos, um demagogo e, portanto, um manipulador do poder das massas; detesta a institucionalidade democrática porque se julga maior do que as instituições; alardeia teorias conspiratórias e cria inimigos internos ou externos a quem responsabiliza pelos fracassos; usa fortemente os meios de comunicação, inclusive as redes sociais com o propósito do engajamento de tal forma que Giuliano de Empoli, autor do livro “Os Engenheiros do Caos”, alertou: “O populismo é filho do casamento entre a cólera e o algoritmo”.

Em artigo publicado no Valor Econômico, intitulado “É difícil sair da armadilha populista”, o principal comentarista econômico do Financial Time, Martin Woolf, utiliza os dados constantes no texto intitulado “Líderes populistas e a economia” (três autores: Manuel Funk, Moritz Schularick e Christof Trebesch) sobre os malefícios causados nas sociedades que viveram a experiência populista.


O conjunto de dados abrange 60 países de 1900 (ou desde a independência) até 2020. Representa 95% do PIB mundial tanto em 1955 como em 2015, além de incluir 1482 líderes, alguns contabilizados mais de uma vez.

Na sequência, o articulista comenta as realidades reveladas: “Em 2018, o populismo atingiu seu auge político. Além disso, se um país já teve um líder populista uma vez, é mais provável que volte a ter outro. Crises econômicas tornam o governo populista mais provável. Os populistas tendem a permanecer no poder em média de oito anos – o dobro do tempo dos não populistas. E, de forma decisiva, poucos populistas deixam o cargo por meio de derrotas eleitorais. Ainda assim, populistas de esquerda e de direita exibem padrões semelhantes de ascensão, permanência e saída. Finalmente, a América latina e a Europa têm sido historicamente dois principais redutos da política populista”.

“Em resumo – adverte Woolf – a demagogia populista é, como advertiu Platão há 2500 anos, uma doença perigosa da democracia”. Verdade. Historicamente, o Brasil sentiu e sente na própria pele com a recorrência da enfermidade. Ameaça a nossa jovem democracia que, felizmente, tem dado exemplar demonstração de solidez.

Mais uma vez, a nossa gestão democrática está desafiada a dar uma resposta adequada ao recente episódio da “operação contenção” que, independente de qualquer consideração de ordem política ou ideológica, é uma tragédia. Exceto para tiranos e líderes beligerantes que subscrevem a frase atribuída a Stalin (não há confirmação histórica): “A morte uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística”. E o que está em jogo, a segurança pública, mais que uma prioridade de governo, é um elemento constitutivo do Estado a quem cabe exercer o legítimo monopólio da violência, obedecido o pacto social inscrito na Constituição Federal.

Não tenho a vocação da velhinha de Taubaté, mas meu sentimento, a despeito da perspectiva eleitoral, da consequente tentação ao populismo e à estridência dos palanques, é que, diante de tamanha gravidade, as lideranças políticas têm a chance de, atendendo ao interesse público, enxergar as próximas gerações.

Por sua vez, a maior parte da sociedade brasileira está distante dos extremos. Fica no meio do caminho entre as posições extremadas. É um contingente com menor grau de engajamento. Porém, uma vez mobilizado, pode definir a próxima eleição. É o que sugere a robusta pesquisa sobre a polarização no Brasil, realizada pela Quaest para a ONG More Common, entre os dias 22 de janeiro e 12 de fevereiro do ano corrente.

Aplicado um questionário com quase duas centenas de questões sobre temas que mais polarizam a sociedade, numa amostra de 10 mil brasileiros com mais de 16 anos, aprofundadas com a análise por meio de entrevistas em grupo, os brasileiros foram divididos em seis segmentos: progressistas militantes (5%); esquerda tradicional (14%), desengajados (27%), cautelosos (27%), conservadores tradicionais (21%) e patriotas indignados (6%).

As extremas, à direita e à esquerda, representam 11% da população. No entanto, monopolizam o debate político e alimentam a disposição populista dos candidatos. Em consequência, ampliam o discurso na defesa de posições irredutíveis, reduzindo o espaço da moderação, do entendimento e da convivência entre os diferentes, abrigados na esquerda, na direita e no centro, espaços de uma saudável democracia.

Como já foi mencionado, o populismo predispõe o organismo político à recorrência do fenômeno; provoca uma grave erosão nas instituições democráticas e, como diz, Martin Woolf “o que os populistas destroem não pode ser facilmente reconstruído”. Esta sensação toma conta do eleitor quando, no ato de votar, ele se vê diante da alternativa de se abster ou escolher o “menos pior”.

Direita sem cabeça, sem comando, sem projeto para o país e dividida

O minúsculo Huguinho Motta, presidente da Câmara, amargou mais um fracasso ao escalar Guilherme Derrite, deputado licenciado do mandato, para relator do projeto de lei Antifacção, do governo Lula, que endurece o combate ao crime organizado.

A justificativa de Motta: Derrite é secretário de Segurança de São Paulo, o mais populoso e desenvolvido Estado do país. É também policial com larga experiência. Ao seu ver, ninguém seria melhor relator do que ele. No mais, Motta podia nomeá-lo, e o nomeou.

Motta finge esquecer que Derrite tem 16 mortes no seu currículo à época que vestiu a farda. Que disse uma vez que bom policial é o que já matou pelo menos três bandidos. E que a letalidade da polícia paulista aumentou desde que ele virou secretário.

Não bastasse, Derrite é um extremista de direita, devoto de Bolsonaro, aspirante a uma vaga no Senado, e prestigiado pelo governador Tarcísio de Freitas, que, se puder, será candidato a presidente contra Lula no próximo ano. Se puder…


Deu no quê mais uma manobra amadora de Motta? No que está aí. Derrite desembarcou em Brasília tentando impor suas ideias que, em resumo, fortaleceriam o crime organizado ao invés de enfraquecê-lo. E foi obrigado a recuar delas uma, duas, três vezes.

Se quiser que seu relatório seja aprovado, terá que modificá-lo algumas vezes mais. O chamado “Consórcio da Direita”, formado por governadores de meia dúzia de Estados, pediu a Motta que adiasse por 30 dias a votação do relatório de Derrite.

Motta pretende votá-lo na próxima semana para disfarçar o vexame em que se meteu. A essa altura, para o governo, tanto faz como tanto fez. A direita já lhe deu de presente o discurso de que foi ela que quis boicotar o enfrentamento do crime, e não ele.

Ninguém é mais cúmplice do crime organizado do que a direita. Uma vez decepada a cabeça de Bolsonaro, ela zanza por aí como se fosse uma barata tonta. Sem comando. Sem um projeto de governo para o país. Fragmentada. A caminho de mais uma derrota.

Rio de Janeiro: 'Tropa de Elite' e o massacre que o Brasil aplaudiu

O Rio de Janeiro, cidade que já foi maravilhosa — ironicamente retratada no segmento Inútil Paisagem, de José Padilha, no filme Rio, Eu Te Amo, em que Wagner Moura interpreta um instrutor de asa-delta que reflete sobre a sua relação com as pessoas e a cidade durante um voo na Pedra Bonita — decidiu há muito transformar o abismo em paisagem. Aqui, os helicópteros não fazem sombra: fazem medo, intimidam.

No Complexo da Penha e no do Alemão, onde a vida sempre foi um acto de resistência, o Estado desceu em força e deixou 121 corpos no chão, quatro deles de polícias militares. Cento e vinte e um. Repito devagar, como se o número precisasse de tempo para se entranhar na consciência.

O governo estadual do RJ, liderado por Cláudio Castro — bolsonarista confesso e aspirante a “recandidato” nas próximas eleições que quer agora dar uma imagem de “mão firme”, em que deverá ter, fala-se, como principal rival Eduardo Paes, o atual e dinâmico prefeito da cidade — chamou-lhe “Operação Contenção”. A ONU chamou-lhe massacre. E Lula, talvez o único adulto na sala, exigiu uma investigação independente. Mas enquanto a diplomacia trocava adjetivos, o cheiro a pólvora e sangue já se misturava ao de churrasco de domingo.


Foi impossível não pensar em Tropa de Elite e em Wagner Moura novamente, que há dias esteve em Lisboa, homenageado no LEFFEST 2025. Falou de O Agente Secreto, claro, mas também do seu velho fantasma: o Capitão Nascimento, personagem que José Padilha inventou e o Brasil transformou em mito.

Na altura, Tropa de Elite — ganhou o Urso de Ouro de Melhor Filme no 58º Festival Internacional de Cinema de Berlim em 2008 — parecia apenas um filme de ação com alma de ensaio social. Hoje, é quase um manual de doutrina. A farda preta, o “missão dada é missão cumprida”, o culto da tortura como método e tudo isto deixou o ecrã e entrou nas academias, nas polícias e nas mentes.

Rodrigo Pimentel, o ex-capitão do BOPE que escreveu o livro em que o filme se baseia, é hoje uma espécie de coach bolsonarista da segurança pública. Fala em “narcoterrorismo” com o fervor de quem descobriu o Santo Graal e emigrou da bala para o PowerPoint. Foi ele que, em entrevista recente ao jornalista da RTP Daniel Catalão, alertou Portugal para a chegada do “crime organizado brasileiro”. Talvez devesse começar por alertar o Brasil para o crime de Estado brasileiro, de que é há muito cúmplice. Enfim quer dar um recado ou mais um motivo à extrema direita portuguesa.

O governador Cláudio Castro afirmou com serenidade quase cristã: “Quem é inocente não se esconde no mato.” O argumento é simples e medieval. Se te escondes, és culpado; se morres, é porque merecias. A velha lógica de Pilatos reciclada em discurso de segurança pública.

Dos 69 nomes na lista de alvos da operação, apenas cinco foram presos. Nenhum líder do Comando Vermelho, nenhum grande peixe, nenhum Doca, o chefe do Comando Vermelho e comandante da ironicamente apelidada “Tropa do Urso”: Edgar Alves Andrade. Os mortos? Miúdos. Rapazes de 14, 17, 20 anos. Um deles decapitado e pendurado numa árvore. A polícia não enviou peritos, não guardou provas, não isolou a cena do crime. Apresentou as armas à imprensa, manuseadas sem luvas, o espetáculo mediático antes da justiça. E o povo aplaudiu. Matar dá votos. E uma democracia que mata aplaudida já é, em si, um regime em decomposição.

A “guerra às drogas” nunca foi sobre drogas. Leiam por exemplo o livro Nobres Traficantes-Histórias da Elite do Crime, de Bruno Abbud, da Zahar e que está disponível, foi onde o comprei na Livraria da Travessa em Lisboa. É sobre poder, dinheiro e território. As milícias, compostas por ex-polícias e militares, controlam o gás, o transporte, o mercado imobiliário e o voto, o mesmo voto que manteve Jair Bolsonaro 23 anos como deputado estadual no Congresso em Brasília, antes de ser empurrado até à presidência.

São empresas com fuzis, departamentos de cobrança e relações públicas. O tráfico é apenas a fachada visível de um capitalismo sem impostos, sem leis e sem ética. As favelas são o laboratório do anarco-capitalismo armado, e as operações policiais o seu marketing.

Cada corpo abatido gera reposição de mão-de-obra. Cada arma apreendida cria uma nova encomenda. O Estado finge que combate o crime; na prática, apenas garante a rotação do negócio. E no topo da cadeia, os “empresários da segurança” dão palestras sobre liderança, meritocracia, misturadas com citações de Sun Tzu da Arte da Guerra.

O mais perturbador é que o massacre foi celebrado pela maioria. O mesmo povo que se indigna com a corrupção aplaude a execução sumária, como se defendesse a pena de morte: abolida no Brasil para crimes civis e políticos pela Constituição de 1988, embora ainda prevista para crimes militares em tempo de guerra. Formalmente, foi extinta em 1890, logo após a Proclamação da República.

O mesmo eleitor que chora pelos polícias mortos dorme bem sabendo que um adolescente negro foi decapitado. A psicanálise chama-lhe perversidade moral; a política, necropolítica. Chamo-lhe aquilo que na verdade é: fascismo de condomínio.

O fascista do século XXI não precisa de suástica: basta-lhe um telemóvel, uma opinião e um portão automático. O Datafolha — um dos principais institutos de sondagens do Brasil — confirma: 57 % dos brasileiros e 62 % dos cariocas consideram a operação “bem-sucedida”. Talvez porque acreditam que a violência é um produto higiénico: limpa a cidade, limpa o medo, limpa a consciência.

Mas a limpeza é apenas estética. O sangue que escorre dos becos e favelas — ou “comunidades”, que soa mais suave — é o mesmo que alimenta o medo nos bairros nobres. E o medo é o maior aliado dos que mandam no Brasil, muitos deles com rostos que nunca aparecem na política.

Enquanto a ONU fala em violação dos direitos humanos, o Supremo Tribunal Federal Brasileiro pede relatórios e o governador Castro inaugura obras. A polícia civil exibe armas em conferência de imprensa; o Ministério Público lamenta a falta de perícia; e a Defensoria Pública é impedida de assistir às autópsias. É a coreografia perfeita da narcojustiça: todos fingem cumprir o papel, ninguém toca na ferida. Como escreveu um cronista brasileiro, “o Estado já não é o lobo do homem é o lobo de si mesmo”, variação moderna da expressão de Thomas Hobbes.

Quando o governo celebra um massacre como vitória e a sociedade o transforma em trending topic, não estamos perante uma tragédia isolada, mas perante a normalização da barbárie.

Volto a Rodrigo Pimentel, o “Capitão Nascimento da vida real”, descobriu há muito que a violência também dá lucro. Transformou a doutrina do BOPE num modelo de gestão empresarial: Construindo uma Tropa de Elite é o título das suas palestras para bancos e empresas.

Substitua “favela” por “mercado”, “bandido” por “concorrente”, e o discurso adapta-se perfeitamente ao neoliberalismo tropical. No fundo, é o mesmo princípio: eliminar o fraco, premiar o forte, reduzir a humanidade a indicador de desempenho.

O que era violência tornou-se branding. O Brasil é hoje um país onde até o fascismo tem plano de carreira.

É por isso que Wagner Moura, mesmo longe do uniforme e das armas, continua a ser uma figura política. Quando fala, não é apenas o ator, é o homem que conhece o abismo por dentro e filmou-o em Marighella (2019), que esteve impedido de estrear. Ele sabe, como todos os que vivem entre o real e o simbólico, que o Brasil precisa de polícias que prendam, não que matem; de governos que planeiem, não que encenem; de segurança construída com justiça, não com cadáveres. O Rio de Janeiro não precisa de mais operações mediáticas. Precisa de escolas, luz elétrica, saneamento, médicos, cultura e dignidade. Precisa deixar de ser laboratório de necropolítica para voltar a ser cidade.

Mas isso exige coragem e no Brasil, coragem e civismo são artigos de luxo.

O massacre da Penha e do Alemão não é um erro: é mais um sintoma. O Estado que mata em nome da lei é o mesmo que viola a lei em nome da ordem. O povo que aplaude a execução é o mesmo que exige justiça divina. E o político que sobe nas sondagens depois de um banho de sangue é o retrato perfeito de uma democracia que perdeu o espelho. O Brasil vive o paradoxo do tiro: quanto mais dispara, menos vê. Enquanto isso, o mundo observa, chocado, a transformação da violência em espetáculo e da barbárie em política pública. No RJ, ainda se ouvem os helicópteros da Polícia Militar a sobrevoar o morro — e também às vezes as praias da Zona Sul, Copacabana, Ipanema e Leblon — lembrando a frase de Tropa de Elite: “Pede pra sair.” Mas ninguém sai. Porque já não há para onde.

Darcy e Raul têm razão

Há 40 anos, Darcy Ribeiro alertou que, se não fizéssemos escolas, seríamos obrigados a construir prisões. Faz quase 10 anos, Raul Jungmann avisou sobre a força e os riscos do crime organizado. O Darcy construiu os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), mas o exemplo não se espalhou pelo Brasil. Raul propôs a criação de um sistema nacional de segurança, mas a ideia não prosperou. Agora, a realidade mostrou que eles estavam certos.

Além da repulsa àqueles que deram a ordem ou puxaram o gatilho na operação policial nos complexos do Alemão e Penha, no Rio, é preciso denunciar os que foram eleitos sem entender as causas da guerra civil e sem tentar fazer o que Darcy, Raul e outros recomendam desde então. A violência é tratada como apenas problema de insegurança pessoal, escaramuças entre indivíduos. Não compreendemos as causas estruturais de uma guerra civil, nem percebemos a necessidade de o Brasil nacionalizar tanto a questão da segurança pública quanto o problema da educação básica, com ambição na qualidade e na equidade.


Os presidentes eleitos trataram a educação básica como responsabilidade de municípios e das famílias. Nenhum deles assumiu o tema como uma questão federal, nem definiu estratégia para assegurar com equidade a todo brasileiro o direito à escola de máxima qualidade, nem como atender àqueles que ficaram para trás: os 10 milhões de analfabetos adultos e os milhões de jovens sem mapa para o mundo contemporâneo.

O propósito dos governos nacionais tem sido ampliar o número de vagas no ensino superior para os poucos que concluem o ensino médio, criando mecanismos para compensar suas fragilidades, sem estratégias capazes de garantir que todos concluam sua formação de base com qualidade. A cada ano, programas, projetos e planos são anunciados para fazer pequenos avanços e atender desejos corporativos, mas sem intenção de executar ações para atingir metas claras e ambiciosas.

Presidentes orgulham-se de termos alguns filhos de pobres ingressando em universidades, mas nenhum tomou medidas necessárias para que todos os filhos de todos os pobres concluam a educação básica com a mesma qualificação dos filhos de ricos, preparados para disputar vagas em condições iguais nas melhores universidades. Tampouco houve gestos para erradicar o analfabetismo de adultos e oferecer formação a jovens que já ficaram para trás por causa da evasão escolar.

A chacina do Rio deve ser denunciada como uma violência brutal contra o direito à vida, em um país cuja Constituição proíbe a pena de morte, mas onde ela é praticada sem julgamento, por decisão de líderes políticos e de comandantes policiais. Cansada da falta de ações contra diversas formas de violência — corrupção, privilégios, mordomias, tráfico de drogas e de influência, assaltos, sequestros —, a população aplaude chacinas, ignorando alertas de Darcy e de Raul. Em breve, as chacinas serão autorizadas e aplaudidas até mesmo contra crimes menores.

Sem enxergar as causas nem os riscos da violência, os candidatos à Presidência em 2026 já disputam qual será mais violento na luta contra a violência sem um programa de pacificação da sociedade por meio de educação de qualidade máxima com equidade para todas crianças e sem um programa de inclusão para jovens deixados para trás sem emprego, sem renda, sem expectativa de vida melhor. Os candidatos deveriam se comprometer a enfrentar a impunidade com toda forma de delito por corrupção, gatunagem disfarçada de privilégio, o tráfico e a milícia.

Ao mesmo tempo, definir estratégias para a adoção federal da segurança pública nas cidades violentas e de escolas nas cidades que não oferecem educação pública integral no padrão necessário. Para os jovens que já estão "jogados ao mar da desescola", apresentar ações de alternativas à rua: amplo programa de garantia de emprego para aqueles com algum preparo; e incorporação remunerada em caráter interno ou semi-interno, por seis meses, em centros civis com cooperação militar para formação profissional, sociabilidade, disciplina, esporte e criação de laços de amizade.

Darcy e Raul têm razão: a guerra civil precisa que o Brasil desperte e que a União adote sistemas nacionais de segurança e de escolas com qualidade igual para todos, independentemente da renda familiar e do município onde vive. Tão óbvio!