No Complexo da Penha e no do Alemão, onde a vida sempre foi um acto de resistência, o Estado desceu em força e deixou 121 corpos no chão, quatro deles de polícias militares. Cento e vinte e um. Repito devagar, como se o número precisasse de tempo para se entranhar na consciência.
O governo estadual do RJ, liderado por Cláudio Castro — bolsonarista confesso e aspirante a “recandidato” nas próximas eleições que quer agora dar uma imagem de “mão firme”, em que deverá ter, fala-se, como principal rival Eduardo Paes, o atual e dinâmico prefeito da cidade — chamou-lhe “Operação Contenção”. A ONU chamou-lhe massacre. E Lula, talvez o único adulto na sala, exigiu uma investigação independente. Mas enquanto a diplomacia trocava adjetivos, o cheiro a pólvora e sangue já se misturava ao de churrasco de domingo.
Foi impossível não pensar em Tropa de Elite e em Wagner Moura novamente, que há dias esteve em Lisboa, homenageado no LEFFEST 2025. Falou de O Agente Secreto, claro, mas também do seu velho fantasma: o Capitão Nascimento, personagem que José Padilha inventou e o Brasil transformou em mito.
Na altura, Tropa de Elite — ganhou o Urso de Ouro de Melhor Filme no 58º Festival Internacional de Cinema de Berlim em 2008 — parecia apenas um filme de ação com alma de ensaio social. Hoje, é quase um manual de doutrina. A farda preta, o “missão dada é missão cumprida”, o culto da tortura como método e tudo isto deixou o ecrã e entrou nas academias, nas polícias e nas mentes.
Rodrigo Pimentel, o ex-capitão do BOPE que escreveu o livro em que o filme se baseia, é hoje uma espécie de coach bolsonarista da segurança pública. Fala em “narcoterrorismo” com o fervor de quem descobriu o Santo Graal e emigrou da bala para o PowerPoint. Foi ele que, em entrevista recente ao jornalista da RTP Daniel Catalão, alertou Portugal para a chegada do “crime organizado brasileiro”. Talvez devesse começar por alertar o Brasil para o crime de Estado brasileiro, de que é há muito cúmplice. Enfim quer dar um recado ou mais um motivo à extrema direita portuguesa.
O governador Cláudio Castro afirmou com serenidade quase cristã: “Quem é inocente não se esconde no mato.” O argumento é simples e medieval. Se te escondes, és culpado; se morres, é porque merecias. A velha lógica de Pilatos reciclada em discurso de segurança pública.
Dos 69 nomes na lista de alvos da operação, apenas cinco foram presos. Nenhum líder do Comando Vermelho, nenhum grande peixe, nenhum Doca, o chefe do Comando Vermelho e comandante da ironicamente apelidada “Tropa do Urso”: Edgar Alves Andrade. Os mortos? Miúdos. Rapazes de 14, 17, 20 anos. Um deles decapitado e pendurado numa árvore. A polícia não enviou peritos, não guardou provas, não isolou a cena do crime. Apresentou as armas à imprensa, manuseadas sem luvas, o espetáculo mediático antes da justiça. E o povo aplaudiu. Matar dá votos. E uma democracia que mata aplaudida já é, em si, um regime em decomposição.
A “guerra às drogas” nunca foi sobre drogas. Leiam por exemplo o livro Nobres Traficantes-Histórias da Elite do Crime, de Bruno Abbud, da Zahar e que está disponível, foi onde o comprei na Livraria da Travessa em Lisboa. É sobre poder, dinheiro e território. As milícias, compostas por ex-polícias e militares, controlam o gás, o transporte, o mercado imobiliário e o voto, o mesmo voto que manteve Jair Bolsonaro 23 anos como deputado estadual no Congresso em Brasília, antes de ser empurrado até à presidência.
São empresas com fuzis, departamentos de cobrança e relações públicas. O tráfico é apenas a fachada visível de um capitalismo sem impostos, sem leis e sem ética. As favelas são o laboratório do anarco-capitalismo armado, e as operações policiais o seu marketing.
Cada corpo abatido gera reposição de mão-de-obra. Cada arma apreendida cria uma nova encomenda. O Estado finge que combate o crime; na prática, apenas garante a rotação do negócio. E no topo da cadeia, os “empresários da segurança” dão palestras sobre liderança, meritocracia, misturadas com citações de Sun Tzu da Arte da Guerra.
O mais perturbador é que o massacre foi celebrado pela maioria. O mesmo povo que se indigna com a corrupção aplaude a execução sumária, como se defendesse a pena de morte: abolida no Brasil para crimes civis e políticos pela Constituição de 1988, embora ainda prevista para crimes militares em tempo de guerra. Formalmente, foi extinta em 1890, logo após a Proclamação da República.
O mesmo eleitor que chora pelos polícias mortos dorme bem sabendo que um adolescente negro foi decapitado. A psicanálise chama-lhe perversidade moral; a política, necropolítica. Chamo-lhe aquilo que na verdade é: fascismo de condomínio.
O fascista do século XXI não precisa de suástica: basta-lhe um telemóvel, uma opinião e um portão automático. O Datafolha — um dos principais institutos de sondagens do Brasil — confirma: 57 % dos brasileiros e 62 % dos cariocas consideram a operação “bem-sucedida”. Talvez porque acreditam que a violência é um produto higiénico: limpa a cidade, limpa o medo, limpa a consciência.
Mas a limpeza é apenas estética. O sangue que escorre dos becos e favelas — ou “comunidades”, que soa mais suave — é o mesmo que alimenta o medo nos bairros nobres. E o medo é o maior aliado dos que mandam no Brasil, muitos deles com rostos que nunca aparecem na política.
Enquanto a ONU fala em violação dos direitos humanos, o Supremo Tribunal Federal Brasileiro pede relatórios e o governador Castro inaugura obras. A polícia civil exibe armas em conferência de imprensa; o Ministério Público lamenta a falta de perícia; e a Defensoria Pública é impedida de assistir às autópsias. É a coreografia perfeita da narcojustiça: todos fingem cumprir o papel, ninguém toca na ferida. Como escreveu um cronista brasileiro, “o Estado já não é o lobo do homem é o lobo de si mesmo”, variação moderna da expressão de Thomas Hobbes.
Quando o governo celebra um massacre como vitória e a sociedade o transforma em trending topic, não estamos perante uma tragédia isolada, mas perante a normalização da barbárie.
Volto a Rodrigo Pimentel, o “Capitão Nascimento da vida real”, descobriu há muito que a violência também dá lucro. Transformou a doutrina do BOPE num modelo de gestão empresarial: Construindo uma Tropa de Elite é o título das suas palestras para bancos e empresas.
Substitua “favela” por “mercado”, “bandido” por “concorrente”, e o discurso adapta-se perfeitamente ao neoliberalismo tropical. No fundo, é o mesmo princípio: eliminar o fraco, premiar o forte, reduzir a humanidade a indicador de desempenho.
O que era violência tornou-se branding. O Brasil é hoje um país onde até o fascismo tem plano de carreira.
É por isso que Wagner Moura, mesmo longe do uniforme e das armas, continua a ser uma figura política. Quando fala, não é apenas o ator, é o homem que conhece o abismo por dentro e filmou-o em Marighella (2019), que esteve impedido de estrear. Ele sabe, como todos os que vivem entre o real e o simbólico, que o Brasil precisa de polícias que prendam, não que matem; de governos que planeiem, não que encenem; de segurança construída com justiça, não com cadáveres. O Rio de Janeiro não precisa de mais operações mediáticas. Precisa de escolas, luz elétrica, saneamento, médicos, cultura e dignidade. Precisa deixar de ser laboratório de necropolítica para voltar a ser cidade.
Mas isso exige coragem e no Brasil, coragem e civismo são artigos de luxo.
O massacre da Penha e do Alemão não é um erro: é mais um sintoma. O Estado que mata em nome da lei é o mesmo que viola a lei em nome da ordem. O povo que aplaude a execução é o mesmo que exige justiça divina. E o político que sobe nas sondagens depois de um banho de sangue é o retrato perfeito de uma democracia que perdeu o espelho. O Brasil vive o paradoxo do tiro: quanto mais dispara, menos vê. Enquanto isso, o mundo observa, chocado, a transformação da violência em espetáculo e da barbárie em política pública. No RJ, ainda se ouvem os helicópteros da Polícia Militar a sobrevoar o morro — e também às vezes as praias da Zona Sul, Copacabana, Ipanema e Leblon — lembrando a frase de Tropa de Elite: “Pede pra sair.” Mas ninguém sai. Porque já não há para onde.

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