terça-feira, 9 de abril de 2024
Novos ditadores evitam violência para fingir que são democráticos
O livro "Democracia Fake", publicado recentemente no Brasil, alerta para nova estratégia de ditadores contemporâneos. Buscando forjar um verniz democrático que possibilite o estabelecimento de relações com países liberais, esses líderes abandonam a repressão violenta e se voltam para táticas de manipulação menos escancaradas.
Uma multidão se aglomerava na praça principal da capital do Congo. Era 2 de junho de 1966 e o ditador Mobutu havia declarado feriado naquele dia. Ele queria que todos acompanhassem o que aconteceria ali.
Sob um sol escaldante, desceram de um jipe militar quatro homens que usavam capuzes pretos, como descreve reportagem publicada no dia seguinte pelo jornal americano The New York Times. Eles caminharam até o centro da praça e, um a um, subiram os degraus de um andaime improvisado, onde havia uma grossa corda pendurada. Na frente de todos, foram enforcados.
Os quatro eram inimigos políticos de Mobutu, que ordenou a execução sob o argumento de que o grupo tentaria matá-lo para dar um golpe.
Sessenta anos depois, demonstrações ostensivas de violência como essa são mais raras, mesmo entre ditadores —no século 21, eles perceberam os benefícios de posar como democratas. É essa a tese proposta no livro "Democracia Fake" (Vestígio), de Sergei Guriev e Daniel Treisman.
A obra opõe dois tipos de ditadores. O primeiro, mais comum no século 20, governa pelo medo. Tem como marcas a repressão violenta (como torturas, prisões e assassinatos), a censura generalizada e escancarada, a imposição da ideologia oficial do regime e o culto à personalidade.
O outro tipo, mais contemporâneo, é chamado pelos autores de "ditadores do spin" —não existe uma tradução literal para o termo, mas o sentido é semelhante a ditadores da manipulação. Esses governantes escondem a violência estatal, disfarçam a censura, cooptam empresas de mídia privada e mantêm uma fachada democrática.
Os dois representam um tipo distinto de perigo, diz Guriev em entrevista por videochamada à Folha. "Os ditadores do spin são menos perigosos por serem menos violentos. Há menos pessoas morrendo e sendo torturadas nas prisões", afirma. "Por outro lado, são mais perigosos porque fingem ser democratas e às vezes são bem-sucedidos em enganar o Ocidente. Esse é o propósito do livro: alertar o mundo democrático que eles, ainda assim, são ditadores."
O modus operandi de líderes como Lee Kuan Yew, ex-primeiro-ministro de Singapura apontado no livro como precursor do modelo, envolve manipular a opinião pública para ganhar popularidade. "Os ditadores do spin sobrevivem não por destruir a rebelião, mas por remover o próprio desejo de rebelião", escrevem os autores.
O primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán é citado por Guriev e Treisman como um exemplo desse tipo de ditador. Ele não adotou a censura declarada, mas, segundo organizações que defendem a liberdade de imprensa, tomou controle do mercado da mídia por meio de oligarcas aliados, que teriam comprado empresas do setor. A ONG Repórteres sem Fronteiras afirma que 80% dos veículos de comunicação húngaros estão, na prática, nas mãos do partido de Orbán.
O primeiro-ministro também disfarçou o autoritarismo no método que utilizou para expulsar do país a Universidade Centro-Europeia, fundada pelo magnata George Soros, alvo frequente de sua retórica populista. Para viabilizar a expulsão, o Parlamento governista aprovou uma lei que criava um motivo burocrático que impossibilitaria a continuidade do funcionamento da universidade na Hungria.
Orbán minou o sistema de freios e contrapesos, mas não derramou sangue para isso —em primeiro lugar, porque não precisou. Para líderes como ele, a violência é o último recurso. Não necessariamente por uma questão moral, mas estratégica.
"A globalização hoje oferece muitos incentivos para um país abrir as fronteiras e atrair investimentos estrangeiros, porque isso cria empregos e crescimento econômico. Para conseguir isso, eles têm que fingir ser democratas", diz Guriev. "Para viajar para Davos [onde acontece o Fórum Econômico Mundial], eles precisam usar um terno, não um uniforme militar. As pessoas não vão apertar a mão deles se eles tiverem torturado milhares."
A globalização é um dos componentes do que os autores chamam de "coquetel da modernização", uma junção de forças que empurraria algumas ditaduras rumo à democracia. A ditadura do spin seria uma forma de adaptação e sobrevivência em meio a esse novo cenário.
"Se você quer transformar uma economia de renda média em um lugar próspero, você vai precisar de crescimento econômico baseado em inovação e conhecimento. Para isso, você precisa de pessoas com ensino superior", afirma Guriev. "Essas pessoas não querem trabalhar em uma ditadura do medo. Então, você precisa ser mais aberto, fingir que é um democrata."
Guriev e Treisman criaram uma base de dados utilizando uma série de critérios para distinguir os ditadores do medo e os do spin. Os números corroboraram a tese deles: o segundo tipo é o mais frequente entre as novas ditaduras. Nos anos 1970, 60% dos ditadores que assumiram um governo se utilizaram do medo. Nos anos 2000, essa porcentagem caiu para menos de 10%. No mesmo período, o percentual que governa pelo spin subiu de 13% para 53%. Os demais são de um tipo híbrido.
Guriev fala em duas maneiras comuns para a ascensão de um ditador do spin. A primeira acontece após o declínio de uma ditadura do medo. Por exemplo, um líder dessa linha morre e o seu sucessor conclui que, no mundo contemporâneo, é mais estratégico ser um ditador do novo tipo.
A outra, explica ele, ocorre quando um governante, frequentemente populista, chega ao poder por eleições regulares e então subverte as instituições democráticas. Os autores afirmam que o ex-presidente Donald Trump tentou fazer isso nos Estados Unidos.
Treisman diz que, se Trump for eleito novamente neste ano, o cenário se repetirá. "Ele vai tentar minar o sistema de freios e contrapesos, vai tentar colocar ainda mais comparsas leais nas cortes, vai tentar reduzir o acesso à mídia. Ele vai politizar o serviço civil, a burocracia [do Estado]", afirma. "A equipe dele já anunciou que tem planos de, no primeiro dia, demitir um grande número de funcionários federais e introduzir novas pessoas leais a ele."
Isso não significa que, caso eleito, Trump será bem-sucedido em sua tentativa. Os autores escrevem que a maior resistência contra líderes como ele está no grupo que chamam de "bem-informados", subconjunto da população com "educação superior, habilidades de comunicação e conexões internacionais", que documentam e denunciam os abusos do governante.
"Não apostaria contra a sociedade americana, que é muito resiliente e está mobilizada. Existem advogados, jornalistas, juízes, funcionários do governo e ONGs que estão determinados a impedir a erosão da democracia", diz Treisman. "Mas vai ser perigoso e destrutivo se ele tentar. Uma vitória de Trump seria ruim para o mundo todo. Encorajaria os ditadores de todos os tipos a aumentar a pressão. A gente viu evidências de que o envolvimento americano ajudou a impedir a tentativa de golpe de Bolsonaro."
Em alguns casos, um ditador do spin pode recorrer ao medo —um caminho sem volta. Os autores afirmam que isso aconteceu na Venezuela. Hugo Chávez, um ditador do spin, foi substituído por Nicolás Maduro, que, pressionado por uma grave crise econômica, aumentou a repressão. O russo Vladimir Putin seguiu o mesmo caminho após iniciar a Guerra da Ucrânia, diz Guriev.
Putin teve grandes ganhos de popularidade com a anexação da Crimeia em 2014. Em um cenário de estagnação econômica, o russo pode ter calculado que uma nova guerra voltaria a unir a população em torno de uma causa em comum, fortalecendo seu governo.
"Ele viu que não estava funcionando, que as pessoas estavam protestando e que a mídia independente estava ganhando influência", afirma Guriev. "Na primeira semana, ele fechou a mídia e bloqueou o Facebook e o Instagram, e o Parlamento aprovou uma lei que determina que, quando alguém critica a guerra ou usa essa palavra, pode ir para a cadeia por até oito anos. Isso é censura declarada, algo que nunca tinha sido usado."
Putin foi, inclusive, o motivo pelo qual os autores começaram a escrever o livro. Guriev é um economista russo, hoje diretor de estudos de pós-graduação em economia na Sciences Po, em Paris. Crítico do governo, ele foi aconselhado a sair da Rússia em 2013. À época, um amigo afirmou ao New York Times que o economista tinha motivos para acreditar que seria preso. Já Treisman é professor de ciência política na Universidade da Califórnia e especialista em Rússia.
Os dois começaram a observar que as táticas de manipulação de Putin —antes da guerra, considerado por eles um ditador do spin, não do medo— eram semelhantes àquelas usadas por outros líderes, como Orbán e Chávez. Então decidiram juntar forças para montar um modelo que explicasse esse processo e testasse as comparações entre os governos.
Depois de publicar uma série de trabalhos acadêmicos, Guriev e Treisman decidiram que o livro seria uma forma de chegar a um público mais amplo.
Expor as táticas dos ditadores recentes é justamente uma das soluções para lidar com eles. Outra, segundo os autores, é limitar as sanções econômicas apenas contra indivíduos e empresas. Os autores lembram que o crescimento econômico é a melhor esperança para transformar as autocracias em regimes menos violentos e, finalmente, em democracias.
Os dois também advogam pela reparação das instituições nos países democráticos, restaurando a confiança da população nelas; que advogados, banqueiros, lobistas e outros integrantes da elite ocidental parem de capacitar ditadores; e que empresas ocidentais deixem de vender a eles tecnologias utilizadas para espionagem doméstica.
Apesar dos alertas, o livro tem uma nota otimista: a ditadura do spin é tratada quase como um modelo de passagem em direção à democracia. "A gente especula que [esse tipo de ditadura] não é sustentável, mas não temos dados, uma prova empírica", diz Guriev.
Os autores afirmam que não existe nenhum antídoto conhecido para o "coquetel de modernização" que empurra as nações em direção à democracia.
Isso porque, ao mesmo tempo que o desenvolvimento econômico ameaça os ditadores, já que os cidadãos têm mais acesso à educação e à informação, ele também é necessário para que esses líderes se mantenham no poder, já que crises econômicas ameaçam a popularidade do governo.
Ou seja, ditadores até poderiam atravancar o crescimento para frear a democratização do país, mas isso também os prejudicaria.
Em um momento de descontentamento, os ditadores precisam de mais repressão para se manter no cargo —só que foi justamente a inadequação da violência na sociedade globalizada o que os levou a abandonar o medo e a escolher a manipulação.
Resta saber se esse dilema não resolvido de fato levará o mundo a um cenário mais democrático.
Uma multidão se aglomerava na praça principal da capital do Congo. Era 2 de junho de 1966 e o ditador Mobutu havia declarado feriado naquele dia. Ele queria que todos acompanhassem o que aconteceria ali.
Sob um sol escaldante, desceram de um jipe militar quatro homens que usavam capuzes pretos, como descreve reportagem publicada no dia seguinte pelo jornal americano The New York Times. Eles caminharam até o centro da praça e, um a um, subiram os degraus de um andaime improvisado, onde havia uma grossa corda pendurada. Na frente de todos, foram enforcados.
Os quatro eram inimigos políticos de Mobutu, que ordenou a execução sob o argumento de que o grupo tentaria matá-lo para dar um golpe.
Sessenta anos depois, demonstrações ostensivas de violência como essa são mais raras, mesmo entre ditadores —no século 21, eles perceberam os benefícios de posar como democratas. É essa a tese proposta no livro "Democracia Fake" (Vestígio), de Sergei Guriev e Daniel Treisman.
A obra opõe dois tipos de ditadores. O primeiro, mais comum no século 20, governa pelo medo. Tem como marcas a repressão violenta (como torturas, prisões e assassinatos), a censura generalizada e escancarada, a imposição da ideologia oficial do regime e o culto à personalidade.
O outro tipo, mais contemporâneo, é chamado pelos autores de "ditadores do spin" —não existe uma tradução literal para o termo, mas o sentido é semelhante a ditadores da manipulação. Esses governantes escondem a violência estatal, disfarçam a censura, cooptam empresas de mídia privada e mantêm uma fachada democrática.
Os dois representam um tipo distinto de perigo, diz Guriev em entrevista por videochamada à Folha. "Os ditadores do spin são menos perigosos por serem menos violentos. Há menos pessoas morrendo e sendo torturadas nas prisões", afirma. "Por outro lado, são mais perigosos porque fingem ser democratas e às vezes são bem-sucedidos em enganar o Ocidente. Esse é o propósito do livro: alertar o mundo democrático que eles, ainda assim, são ditadores."
O modus operandi de líderes como Lee Kuan Yew, ex-primeiro-ministro de Singapura apontado no livro como precursor do modelo, envolve manipular a opinião pública para ganhar popularidade. "Os ditadores do spin sobrevivem não por destruir a rebelião, mas por remover o próprio desejo de rebelião", escrevem os autores.
O primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán é citado por Guriev e Treisman como um exemplo desse tipo de ditador. Ele não adotou a censura declarada, mas, segundo organizações que defendem a liberdade de imprensa, tomou controle do mercado da mídia por meio de oligarcas aliados, que teriam comprado empresas do setor. A ONG Repórteres sem Fronteiras afirma que 80% dos veículos de comunicação húngaros estão, na prática, nas mãos do partido de Orbán.
O primeiro-ministro também disfarçou o autoritarismo no método que utilizou para expulsar do país a Universidade Centro-Europeia, fundada pelo magnata George Soros, alvo frequente de sua retórica populista. Para viabilizar a expulsão, o Parlamento governista aprovou uma lei que criava um motivo burocrático que impossibilitaria a continuidade do funcionamento da universidade na Hungria.
Orbán minou o sistema de freios e contrapesos, mas não derramou sangue para isso —em primeiro lugar, porque não precisou. Para líderes como ele, a violência é o último recurso. Não necessariamente por uma questão moral, mas estratégica.
"A globalização hoje oferece muitos incentivos para um país abrir as fronteiras e atrair investimentos estrangeiros, porque isso cria empregos e crescimento econômico. Para conseguir isso, eles têm que fingir ser democratas", diz Guriev. "Para viajar para Davos [onde acontece o Fórum Econômico Mundial], eles precisam usar um terno, não um uniforme militar. As pessoas não vão apertar a mão deles se eles tiverem torturado milhares."
A globalização é um dos componentes do que os autores chamam de "coquetel da modernização", uma junção de forças que empurraria algumas ditaduras rumo à democracia. A ditadura do spin seria uma forma de adaptação e sobrevivência em meio a esse novo cenário.
"Se você quer transformar uma economia de renda média em um lugar próspero, você vai precisar de crescimento econômico baseado em inovação e conhecimento. Para isso, você precisa de pessoas com ensino superior", afirma Guriev. "Essas pessoas não querem trabalhar em uma ditadura do medo. Então, você precisa ser mais aberto, fingir que é um democrata."
Guriev e Treisman criaram uma base de dados utilizando uma série de critérios para distinguir os ditadores do medo e os do spin. Os números corroboraram a tese deles: o segundo tipo é o mais frequente entre as novas ditaduras. Nos anos 1970, 60% dos ditadores que assumiram um governo se utilizaram do medo. Nos anos 2000, essa porcentagem caiu para menos de 10%. No mesmo período, o percentual que governa pelo spin subiu de 13% para 53%. Os demais são de um tipo híbrido.
Guriev fala em duas maneiras comuns para a ascensão de um ditador do spin. A primeira acontece após o declínio de uma ditadura do medo. Por exemplo, um líder dessa linha morre e o seu sucessor conclui que, no mundo contemporâneo, é mais estratégico ser um ditador do novo tipo.
A outra, explica ele, ocorre quando um governante, frequentemente populista, chega ao poder por eleições regulares e então subverte as instituições democráticas. Os autores afirmam que o ex-presidente Donald Trump tentou fazer isso nos Estados Unidos.
Treisman diz que, se Trump for eleito novamente neste ano, o cenário se repetirá. "Ele vai tentar minar o sistema de freios e contrapesos, vai tentar colocar ainda mais comparsas leais nas cortes, vai tentar reduzir o acesso à mídia. Ele vai politizar o serviço civil, a burocracia [do Estado]", afirma. "A equipe dele já anunciou que tem planos de, no primeiro dia, demitir um grande número de funcionários federais e introduzir novas pessoas leais a ele."
Isso não significa que, caso eleito, Trump será bem-sucedido em sua tentativa. Os autores escrevem que a maior resistência contra líderes como ele está no grupo que chamam de "bem-informados", subconjunto da população com "educação superior, habilidades de comunicação e conexões internacionais", que documentam e denunciam os abusos do governante.
"Não apostaria contra a sociedade americana, que é muito resiliente e está mobilizada. Existem advogados, jornalistas, juízes, funcionários do governo e ONGs que estão determinados a impedir a erosão da democracia", diz Treisman. "Mas vai ser perigoso e destrutivo se ele tentar. Uma vitória de Trump seria ruim para o mundo todo. Encorajaria os ditadores de todos os tipos a aumentar a pressão. A gente viu evidências de que o envolvimento americano ajudou a impedir a tentativa de golpe de Bolsonaro."
Em alguns casos, um ditador do spin pode recorrer ao medo —um caminho sem volta. Os autores afirmam que isso aconteceu na Venezuela. Hugo Chávez, um ditador do spin, foi substituído por Nicolás Maduro, que, pressionado por uma grave crise econômica, aumentou a repressão. O russo Vladimir Putin seguiu o mesmo caminho após iniciar a Guerra da Ucrânia, diz Guriev.
Putin teve grandes ganhos de popularidade com a anexação da Crimeia em 2014. Em um cenário de estagnação econômica, o russo pode ter calculado que uma nova guerra voltaria a unir a população em torno de uma causa em comum, fortalecendo seu governo.
"Ele viu que não estava funcionando, que as pessoas estavam protestando e que a mídia independente estava ganhando influência", afirma Guriev. "Na primeira semana, ele fechou a mídia e bloqueou o Facebook e o Instagram, e o Parlamento aprovou uma lei que determina que, quando alguém critica a guerra ou usa essa palavra, pode ir para a cadeia por até oito anos. Isso é censura declarada, algo que nunca tinha sido usado."
Putin foi, inclusive, o motivo pelo qual os autores começaram a escrever o livro. Guriev é um economista russo, hoje diretor de estudos de pós-graduação em economia na Sciences Po, em Paris. Crítico do governo, ele foi aconselhado a sair da Rússia em 2013. À época, um amigo afirmou ao New York Times que o economista tinha motivos para acreditar que seria preso. Já Treisman é professor de ciência política na Universidade da Califórnia e especialista em Rússia.
Os dois começaram a observar que as táticas de manipulação de Putin —antes da guerra, considerado por eles um ditador do spin, não do medo— eram semelhantes àquelas usadas por outros líderes, como Orbán e Chávez. Então decidiram juntar forças para montar um modelo que explicasse esse processo e testasse as comparações entre os governos.
Depois de publicar uma série de trabalhos acadêmicos, Guriev e Treisman decidiram que o livro seria uma forma de chegar a um público mais amplo.
Expor as táticas dos ditadores recentes é justamente uma das soluções para lidar com eles. Outra, segundo os autores, é limitar as sanções econômicas apenas contra indivíduos e empresas. Os autores lembram que o crescimento econômico é a melhor esperança para transformar as autocracias em regimes menos violentos e, finalmente, em democracias.
Os dois também advogam pela reparação das instituições nos países democráticos, restaurando a confiança da população nelas; que advogados, banqueiros, lobistas e outros integrantes da elite ocidental parem de capacitar ditadores; e que empresas ocidentais deixem de vender a eles tecnologias utilizadas para espionagem doméstica.
Apesar dos alertas, o livro tem uma nota otimista: a ditadura do spin é tratada quase como um modelo de passagem em direção à democracia. "A gente especula que [esse tipo de ditadura] não é sustentável, mas não temos dados, uma prova empírica", diz Guriev.
Os autores afirmam que não existe nenhum antídoto conhecido para o "coquetel de modernização" que empurra as nações em direção à democracia.
Isso porque, ao mesmo tempo que o desenvolvimento econômico ameaça os ditadores, já que os cidadãos têm mais acesso à educação e à informação, ele também é necessário para que esses líderes se mantenham no poder, já que crises econômicas ameaçam a popularidade do governo.
Ou seja, ditadores até poderiam atravancar o crescimento para frear a democratização do país, mas isso também os prejudicaria.
Em um momento de descontentamento, os ditadores precisam de mais repressão para se manter no cargo —só que foi justamente a inadequação da violência na sociedade globalizada o que os levou a abandonar o medo e a escolher a manipulação.
Resta saber se esse dilema não resolvido de fato levará o mundo a um cenário mais democrático.
Extrema-direita tenta reescrever a história das ditaduras na AL
Março é o mês para se rememorar os crimes da ditadura na Argentina (1976-1983) e no Brasil (1964-1985). Tempo de denúncias e valorização da democracia, para que a história não se repita. Nesses dois países entretanto, essas ações restringiram-se a parte da sociedade civil. No Brasil, Lula decidiu silenciar eventos críticos aos militares. Na Argentina, Javier Milei optou pelo negacionismo.
No dia 24 de março, quando se completaram 48 anos do golpe no país, o presidente argentino postou um vídeo tentando reescrever fatos históricos do regime, pedindo para que haja “verdade e justiça” e uma “memória completa”.
Batizado de “Dia da Memória pela Verdade e Justiça”, traz o depoimento da filha de um militar assassinado por guerrilheiros. Ela diz que as organizações de direitos humanos jamais acolheram sua família. E argumenta que pessoas “de ambos os lados” foram mortas. A peça afirma ainda que o número de 30 mil mortos no período é uma invenção.
Não surpreende, já que durante a campanha eleitoral Milei já havia ensaiado esse discurso, dizendo que houve uma guerra entre os militares e os grupos terroristas e que aconteceram excessos dos dois lados. A maior entusiasta dessa versão é sua vice, Victoria Villaruel, filha de militar que lutou na Guerra das Malvinas.
É difícil precisar o alcance dessa mensagem negacionista, sobretudo imaginado que boa parte do eleitorado de Milei é de jovens. Para muitos, pode ser uma história exausta, contada um milhão de vezes pelo movimento progressista argentino, que conseguiu julgar e condenar seus militares. Tantas demandas atuais e ficam remoendo essa história? Em nossos tempos, parece que a democracia perde seu valor quanto mais estabelecida – sinal de um sistema que não representa seus cidadãos.
No Brasil, o governo Lula decidiu pelo silenciamento. 60 anos do golpe e não houve uma palavra oficial contra a ditadura. As vozes destacaram-se na imprensa e em algumas manifestações pelo país. É uma ferida que jamais cicatriza.
A anistia de 1979 antecede o discurso de Milei. Houve excessos dos dois lados, os exilados podem voltar e os militares podem marchar impunemente. Nenhum fardado julgado, nenhum condenado. A Comissão da Verdade, durante o governo Dilma, foi ignorada.
Em parte, esse é o combustível que alimenta, há décadas, a visão popular de que “na ditadura era melhor”, “na ditadura as pessoas tinham mais respeito”. Anos sem eleições, parte da população vivendo com medo e uma crise econômica que abalou o país foram esquecidos. É uma nostalgia inventada que quase nos levou ao golpe em 8 de janeiro.
O jogo é esse. Neste março de 2024 os militares podem comemorar. Seus privilégios e impunidades foram protegidos. A História é um campo minado de versões em que vence a verdade mais difundida.
No dia 24 de março, quando se completaram 48 anos do golpe no país, o presidente argentino postou um vídeo tentando reescrever fatos históricos do regime, pedindo para que haja “verdade e justiça” e uma “memória completa”.
Batizado de “Dia da Memória pela Verdade e Justiça”, traz o depoimento da filha de um militar assassinado por guerrilheiros. Ela diz que as organizações de direitos humanos jamais acolheram sua família. E argumenta que pessoas “de ambos os lados” foram mortas. A peça afirma ainda que o número de 30 mil mortos no período é uma invenção.
Não surpreende, já que durante a campanha eleitoral Milei já havia ensaiado esse discurso, dizendo que houve uma guerra entre os militares e os grupos terroristas e que aconteceram excessos dos dois lados. A maior entusiasta dessa versão é sua vice, Victoria Villaruel, filha de militar que lutou na Guerra das Malvinas.
É difícil precisar o alcance dessa mensagem negacionista, sobretudo imaginado que boa parte do eleitorado de Milei é de jovens. Para muitos, pode ser uma história exausta, contada um milhão de vezes pelo movimento progressista argentino, que conseguiu julgar e condenar seus militares. Tantas demandas atuais e ficam remoendo essa história? Em nossos tempos, parece que a democracia perde seu valor quanto mais estabelecida – sinal de um sistema que não representa seus cidadãos.
No Brasil, o governo Lula decidiu pelo silenciamento. 60 anos do golpe e não houve uma palavra oficial contra a ditadura. As vozes destacaram-se na imprensa e em algumas manifestações pelo país. É uma ferida que jamais cicatriza.
A anistia de 1979 antecede o discurso de Milei. Houve excessos dos dois lados, os exilados podem voltar e os militares podem marchar impunemente. Nenhum fardado julgado, nenhum condenado. A Comissão da Verdade, durante o governo Dilma, foi ignorada.
Em parte, esse é o combustível que alimenta, há décadas, a visão popular de que “na ditadura era melhor”, “na ditadura as pessoas tinham mais respeito”. Anos sem eleições, parte da população vivendo com medo e uma crise econômica que abalou o país foram esquecidos. É uma nostalgia inventada que quase nos levou ao golpe em 8 de janeiro.
O jogo é esse. Neste março de 2024 os militares podem comemorar. Seus privilégios e impunidades foram protegidos. A História é um campo minado de versões em que vence a verdade mais difundida.
A ditadura militar e da 'burguesia nacional' criou uma sociedade desastrosa
A ditadura de 1964-1985 foi de mortos, desaparecidos, tortura, estupro, exílio, censura, propaganda parafascista, imposição militar de brucutus-presidentes, eleições fictícias, fraudadas ou muito limitadas. A grande massa de analfabetos não votava nem ao menos no elenco de candidatos autorizado pelos brucutus, a casta militar ignorante, bruta e ignara até hoje.
Menos se recorda que foi um período de repressão de sindicatos, de movimentos sociais, em particular os populares; de repressão salarial, de seguros sociais limitados e que excluíam os mais pobres.
Quase pouco se nota, na conversa mais comum, que a ditadura produziu uma sociedade desastrosa, mais do que um desastre social. Por um tempo disfarçada por taxas de crescimento econômico altíssimas, a ruína perdurou.
O que é uma sociedade desastrosa? Um exemplo muito claro são as grandes cidades, embora cidades médias mimetizem o arranjo perverso das metrópoles.
São monstros praticamente inadministráveis. É impossível reformá-las sem grande custo econômico e sem transformação social forte, em um esforço de décadas. São a essência da desigualdade de renda, de patrimônio (propriedade imobiliária), de acesso a serviços públicos, do racismo. O pobre é discriminado até no uso da rua, o que se evidencia no transporte público ruim e nas ruas tomadas por carros.
A grande cidade brasileira é resultado de uma urbanização desastrosa. Por um lado, até meados do século 20, havia uma grande população largada no campo, sem terra, sem escola, sem saúde ou mesmo sem voto. Não tivemos reforma agrária quando isso poderia provocar transformação socioeconômica profunda: multiplicação do número de proprietários, criação de meios de subsistência que poderiam dar pão ao povo enquanto se educavam crianças e jovens, com algum atendimento de saúde, e melhora na distribuição espacial da população.
Por outro lado, a industrialização foi limitada. A partir dos anos 1970, não absorvia o êxodo dos desesperados da miséria rural (e menos ainda depois dos anos 1980 e 1990, com o enxugamento tecnológico do emprego industrial).
A ditadura sobreveio como um modo extremo ou final de impedir esses mínimos progressos: reforma agrária, aceleração da oferta de escola, de direito a voto etc. Extremo, pois a oposição à reforma social é sempiterna no Brasil.
O debate político das reformas possíveis foi interditado nos 20 anos de domínio dos brucutus e de seus beneficiários civis, aquela "burguesia nacional" com a qual a esquerda tanto se preocupa.
A população rural excedente, como se dizia, lotou uma periferia sem casa decente, sem saneamento, sem luz, sem escola. A saúde pública não era universal (não havia SUS). Esse povo vivia de emprego mal pago em serviços ou de subemprego, se tanto. A partir dos anos 1970, mais e mais ficaram sujeitas à violência e à organização do crime. A partir dos anos 1970, parte desse povo cria as igrejas neopentecostais.
É fácil perceber que o Brasil de agora se formou também na grande aglomeração dos deserdados da sorte rural, na urbanização selvagem.
A ditadura fez muito mais pelo atraso. Criou um sistema em que a "burguesia nacional" vivia de rendas, de proteções contra a concorrência externa (por vezes, também doméstica), de estatais ineficientes, de bloqueios de importação de tecnologia. Criou um sistema de baixa produtividade e ajudou a enraizar o protecionismo. Alimentou a inflação, que se tornou hiper nos primeiros anos da democracia, sob políticas populistas e doidivanas. A estabilização econômica foi um processo que levou quase 15 anos, de 1985 a 1999.
O desastre social brasileiro se entrincheirou entre 1964 e 1985. Parte do povo continua morta e desaparecida sob essa ruína duradoura.
Menos se recorda que foi um período de repressão de sindicatos, de movimentos sociais, em particular os populares; de repressão salarial, de seguros sociais limitados e que excluíam os mais pobres.
Quase pouco se nota, na conversa mais comum, que a ditadura produziu uma sociedade desastrosa, mais do que um desastre social. Por um tempo disfarçada por taxas de crescimento econômico altíssimas, a ruína perdurou.
O que é uma sociedade desastrosa? Um exemplo muito claro são as grandes cidades, embora cidades médias mimetizem o arranjo perverso das metrópoles.
São monstros praticamente inadministráveis. É impossível reformá-las sem grande custo econômico e sem transformação social forte, em um esforço de décadas. São a essência da desigualdade de renda, de patrimônio (propriedade imobiliária), de acesso a serviços públicos, do racismo. O pobre é discriminado até no uso da rua, o que se evidencia no transporte público ruim e nas ruas tomadas por carros.
A grande cidade brasileira é resultado de uma urbanização desastrosa. Por um lado, até meados do século 20, havia uma grande população largada no campo, sem terra, sem escola, sem saúde ou mesmo sem voto. Não tivemos reforma agrária quando isso poderia provocar transformação socioeconômica profunda: multiplicação do número de proprietários, criação de meios de subsistência que poderiam dar pão ao povo enquanto se educavam crianças e jovens, com algum atendimento de saúde, e melhora na distribuição espacial da população.
Por outro lado, a industrialização foi limitada. A partir dos anos 1970, não absorvia o êxodo dos desesperados da miséria rural (e menos ainda depois dos anos 1980 e 1990, com o enxugamento tecnológico do emprego industrial).
A ditadura sobreveio como um modo extremo ou final de impedir esses mínimos progressos: reforma agrária, aceleração da oferta de escola, de direito a voto etc. Extremo, pois a oposição à reforma social é sempiterna no Brasil.
O debate político das reformas possíveis foi interditado nos 20 anos de domínio dos brucutus e de seus beneficiários civis, aquela "burguesia nacional" com a qual a esquerda tanto se preocupa.
A população rural excedente, como se dizia, lotou uma periferia sem casa decente, sem saneamento, sem luz, sem escola. A saúde pública não era universal (não havia SUS). Esse povo vivia de emprego mal pago em serviços ou de subemprego, se tanto. A partir dos anos 1970, mais e mais ficaram sujeitas à violência e à organização do crime. A partir dos anos 1970, parte desse povo cria as igrejas neopentecostais.
É fácil perceber que o Brasil de agora se formou também na grande aglomeração dos deserdados da sorte rural, na urbanização selvagem.
A ditadura fez muito mais pelo atraso. Criou um sistema em que a "burguesia nacional" vivia de rendas, de proteções contra a concorrência externa (por vezes, também doméstica), de estatais ineficientes, de bloqueios de importação de tecnologia. Criou um sistema de baixa produtividade e ajudou a enraizar o protecionismo. Alimentou a inflação, que se tornou hiper nos primeiros anos da democracia, sob políticas populistas e doidivanas. A estabilização econômica foi um processo que levou quase 15 anos, de 1985 a 1999.
O desastre social brasileiro se entrincheirou entre 1964 e 1985. Parte do povo continua morta e desaparecida sob essa ruína duradoura.
O fascismo vive?
No clima da radicalização atual, o fascismo se despe das origens históricas e dos significados atuais e se resume a uma colagem infamante no confronto das ofensas predominantes o que deveria ser um debate público. Por conta do seu rastro demolidor das democracias, das liberdades e de uma sociedade aberta e livre, terá sempre uma carga destrutiva do pensamento e do ambiente pacífico da civilização.
A resposta mais consistente à reflexão filosófica e política aos que estudam o fenômeno, desde seu nascedouro, consta da conferência pronunciada por Umberto Ecco, em 25 de abril de 1995, na Columbia University para celebrar a libertação da Europa ao afirmar “Aqui estamos para recordar o que aconteceu e declarar solenemente que ‘eles’ não podem repetir o que fizeram. Mas quem são ‘eles’”?
Responde Umberto Eco: “Toda a segunda guerra foi definida no mundo inteiro como uma luta contra o fascismo […] Ao contrário do que se pensa comumente, o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria: tinha apenas uma retórica [..] O fascismo sequer era uma só essência; não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de ideias políticas e filosóficas, uma alveário de contradições”.
De outra parte, assinala Eco, “Mein Kampf é o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa da ‘arte degenerada’, uma vontade de potência do Super Homem” […] O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos”.
Diz o autor que, apesar dessa confusão é possível indicar uma lista de características típicas daquilo que chama de “Ur-Fascismo” (ur, prefixo que significa origem) ou “fascismo eterno”, características que não podem se reunir num sistema, mas qualquer delas que se apresente pode formar uma “nebulosa fascista”.
Alguns autores enumeram onze, outros treze e Umberto Eco, quatorze, a saber:
– Culto à tradição. A verdade já foi revelada e anunciada. Comporta apenas interpretações da obscura mensagem.
–Recusa à modernidade. O novo é uma perversão à ordem natural. Prevalência do negacionismo. Irracionalismo.
– O culto da ação pela ação. Para o fascismo “pensar é uma forma de castração”.
– Recusa ao pensamento crítico. Para o fascismo, desacordo é traição.
– A repulsa à diversidade. Medo natural da diferença. Racista por definição.
– O apelo ao sentimento de frustração e ressentimento. Mobilização do ódio.
– Nacionalismo como identidade social. Estrangeiros são inimigos. Apelo à xenofobia para superar a obsessão da conspiração.
– A vida como uma guerra permanente. Não há luta pela vida, mas a “vida para luta”. O pacifismo é um conluio com o inimigo.
– O inimigo e sua força humilhante deve ser batido, porque na essência são fracos. Os fascistas têm uma incapacidade real de avaliar a força do inimigo.
– O heroísmo como norma. A educação cultua a mitologia do ser excepcional, estreitamente ligado ao culto da morte. Na guerra da Espanha, os falangistas tinham como mote “viva la muerte”.
– O machismo é uma virtude. Desdém pelas mulheres, condenação da homossexualidade. As armas refletem um simbolismo fálico.
– O elitismo reflete a visão reacionária. Pregam o elitismo popular identificado no homem de bem, forte e um consequente desprezo pelos fracos.
– O populismo qualitativo. O povo é uma ficção teatral. Deveria exprimir uma vontade comum. Mas é o líder quem interpreta a vontade comum.
– O Ur-Fascismo fala a “novilíngua” inventada por Orwell no clássico 1984.
Ao concluir, adverte: “O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas – a cada dia, em cada lugar do mundo”.
E acrescenta sabiamente: “Liberdade e libertação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: Não esqueçam”.
A resposta mais consistente à reflexão filosófica e política aos que estudam o fenômeno, desde seu nascedouro, consta da conferência pronunciada por Umberto Ecco, em 25 de abril de 1995, na Columbia University para celebrar a libertação da Europa ao afirmar “Aqui estamos para recordar o que aconteceu e declarar solenemente que ‘eles’ não podem repetir o que fizeram. Mas quem são ‘eles’”?
Responde Umberto Eco: “Toda a segunda guerra foi definida no mundo inteiro como uma luta contra o fascismo […] Ao contrário do que se pensa comumente, o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria: tinha apenas uma retórica [..] O fascismo sequer era uma só essência; não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de ideias políticas e filosóficas, uma alveário de contradições”.
De outra parte, assinala Eco, “Mein Kampf é o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa da ‘arte degenerada’, uma vontade de potência do Super Homem” […] O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos”.
Diz o autor que, apesar dessa confusão é possível indicar uma lista de características típicas daquilo que chama de “Ur-Fascismo” (ur, prefixo que significa origem) ou “fascismo eterno”, características que não podem se reunir num sistema, mas qualquer delas que se apresente pode formar uma “nebulosa fascista”.
Alguns autores enumeram onze, outros treze e Umberto Eco, quatorze, a saber:
– Culto à tradição. A verdade já foi revelada e anunciada. Comporta apenas interpretações da obscura mensagem.
–Recusa à modernidade. O novo é uma perversão à ordem natural. Prevalência do negacionismo. Irracionalismo.
– O culto da ação pela ação. Para o fascismo “pensar é uma forma de castração”.
– Recusa ao pensamento crítico. Para o fascismo, desacordo é traição.
– A repulsa à diversidade. Medo natural da diferença. Racista por definição.
– O apelo ao sentimento de frustração e ressentimento. Mobilização do ódio.
– Nacionalismo como identidade social. Estrangeiros são inimigos. Apelo à xenofobia para superar a obsessão da conspiração.
– A vida como uma guerra permanente. Não há luta pela vida, mas a “vida para luta”. O pacifismo é um conluio com o inimigo.
– O inimigo e sua força humilhante deve ser batido, porque na essência são fracos. Os fascistas têm uma incapacidade real de avaliar a força do inimigo.
– O heroísmo como norma. A educação cultua a mitologia do ser excepcional, estreitamente ligado ao culto da morte. Na guerra da Espanha, os falangistas tinham como mote “viva la muerte”.
– O machismo é uma virtude. Desdém pelas mulheres, condenação da homossexualidade. As armas refletem um simbolismo fálico.
– O elitismo reflete a visão reacionária. Pregam o elitismo popular identificado no homem de bem, forte e um consequente desprezo pelos fracos.
– O populismo qualitativo. O povo é uma ficção teatral. Deveria exprimir uma vontade comum. Mas é o líder quem interpreta a vontade comum.
– O Ur-Fascismo fala a “novilíngua” inventada por Orwell no clássico 1984.
Ao concluir, adverte: “O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas – a cada dia, em cada lugar do mundo”.
E acrescenta sabiamente: “Liberdade e libertação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: Não esqueçam”.
Antonio Maria cunhou a expressão ‘malamada’ para irritar Carlos Lacerda
Sexta-feira, 3 de abril de 1964. Entro na redação sobressaltada por ameaças que não deixam seus telefones em paz. A maioria das vozes, sempre anônimas e uma oitava acima, é feminina. São as “malamadas” xingando o jornal e seus profissionais em repúdio a um editorial, Terrorismo, não!, contra as arbitrariedades e violências cometidas pelo governo do então Estado da Guanabara (leia-se Carlos Lacerda) nas primeiras horas do regime militar.
“Isto mostra o fanatismo e a intolerância das lacerdistas”, reagiu o jornal, acrescentando-lhes mais um defeito: a puerilidade de crer que alguma ameaça pudesse atemorizar o Correio da Manhã, amainar-lhe a indignação e fazê-lo recuar de uma guerra que apenas iniciara seus estragos irreparáveis.
Foi o cronista Antonio Maria quem cunhou a expressão “malamada”, para irritar Lacerda e tipificar o mulherio sexualmente recalcado que o idolatrava.
Quando delas me lembro, penso em Wilhelm Reich e suas teorias sobre psicopatologia social & sexual. Pois malamadas também saciaram sua recalcada libido venerando Mussolini e Hitler. As nossas foram assaz atuantes naquelas passeatas com Deus pela democracia e contra o comunismo que preambularam e atiçaram o golpe, com o incentivo do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), núcleo de conspiração putschista basicamente sustentado pelo empresariado de direita dos EUA e daqui.
Entrevistada pelo Roda Viva da última segunda-feira, a historiadora Heloisa Starling referiu-se ao referido instituto como “Ípes”, sigla que 60 anos atrás a gente acentuava oxitonamente, com um circunflexo no e, como a árvore cujo tronco inspirou Alencar, o José, não o também cearense Humberto (Castelo Branco), que foi apenas o primeiro ditador fardado (e sem pescoço) que o poder moderador de araque nos legou.
Ípes ou Ipês, muito estrago ele fez. Além de palestras e publicações mal-intencionadas, produziu filmetes de propaganda alarmista, com garantida exibição nos cinemas como parte de uma lavagem cerebral coletiva cuja eficácia só seria superada em paranoias e capilaridade pelas fake news da era digital.
Dois anos antes do golpe, com a Garota de Ipanema no início de seu reinado, outra habitante do mítico bairro carioca, chamada Amélia, que nem era linda, nem cheia de graça, promovia em sua casa os primeiros conchavos que redundaram na Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), turbinada por passeatas de pias senhoras de rosário na mão. Elas não rezavam para pneus, mas em defesa da família, da religião e de vagos “princípios anticomunistas”.
Em nome de tais princípios, o regime militar mergulhou o País nas profundezas do obscurantismo e da repressão, concretizando o que alegava combater. O que levou a maior expressão do pensamento católico a confessar, publicamente: “Até hoje nunca tive medo do comunismo no Brasil. Agora começo a ter”.
“Isto mostra o fanatismo e a intolerância das lacerdistas”, reagiu o jornal, acrescentando-lhes mais um defeito: a puerilidade de crer que alguma ameaça pudesse atemorizar o Correio da Manhã, amainar-lhe a indignação e fazê-lo recuar de uma guerra que apenas iniciara seus estragos irreparáveis.
Foi o cronista Antonio Maria quem cunhou a expressão “malamada”, para irritar Lacerda e tipificar o mulherio sexualmente recalcado que o idolatrava.
Quando delas me lembro, penso em Wilhelm Reich e suas teorias sobre psicopatologia social & sexual. Pois malamadas também saciaram sua recalcada libido venerando Mussolini e Hitler. As nossas foram assaz atuantes naquelas passeatas com Deus pela democracia e contra o comunismo que preambularam e atiçaram o golpe, com o incentivo do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), núcleo de conspiração putschista basicamente sustentado pelo empresariado de direita dos EUA e daqui.
Entrevistada pelo Roda Viva da última segunda-feira, a historiadora Heloisa Starling referiu-se ao referido instituto como “Ípes”, sigla que 60 anos atrás a gente acentuava oxitonamente, com um circunflexo no e, como a árvore cujo tronco inspirou Alencar, o José, não o também cearense Humberto (Castelo Branco), que foi apenas o primeiro ditador fardado (e sem pescoço) que o poder moderador de araque nos legou.
Ípes ou Ipês, muito estrago ele fez. Além de palestras e publicações mal-intencionadas, produziu filmetes de propaganda alarmista, com garantida exibição nos cinemas como parte de uma lavagem cerebral coletiva cuja eficácia só seria superada em paranoias e capilaridade pelas fake news da era digital.
Dois anos antes do golpe, com a Garota de Ipanema no início de seu reinado, outra habitante do mítico bairro carioca, chamada Amélia, que nem era linda, nem cheia de graça, promovia em sua casa os primeiros conchavos que redundaram na Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), turbinada por passeatas de pias senhoras de rosário na mão. Elas não rezavam para pneus, mas em defesa da família, da religião e de vagos “princípios anticomunistas”.
Em nome de tais princípios, o regime militar mergulhou o País nas profundezas do obscurantismo e da repressão, concretizando o que alegava combater. O que levou a maior expressão do pensamento católico a confessar, publicamente: “Até hoje nunca tive medo do comunismo no Brasil. Agora começo a ter”.
Gaza: diagnóstico e um olhar sobre o futuro
Passaram seis meses desde que o Hamas perpetrou um horrendo atentado terrorista que matou aproximadamente 1200 pessoas e fez mais de 250 reféns, levando o Estado de Israel a declarar guerra contra aquele movimento. Esta guerra muito rapidamente passou a ser também uma guerra contra Gaza e a sua população civil, com mais de 2,3 milhões de habitantes — as estatísticas oficiais estimam que mais de metade é composta por crianças menores de 18 anos, que viram o cerco de mais de uma década imposto por Israel a tornar-se num bloqueio quase total de entrada de bens básicos à sobrevivência, como comida, água e medicamentos, assim como de saída de pessoas.
Os dados disponíveis são aterradores. Desde 7 de outubro de 2023, mais de 33 mil palestinos morreram, dos quais mais de 12.300 eram crianças — note-se que este número não inclui os quase sete mil desaparecidos nos escombros da destruição. A ONU estima que 85% da população de Gaza está deslocada, tendo mais de um milhão e meio de civis ido buscar refúgio no Sul, zona indicada por Israel como segura e que atualmente está a ser alvo de uma incursão terrestre que se pode antever como catastrófica. Quando o conflito terminar, muitos destes deslocados não terão casa para voltar.
Em Gaza, a ajuda humanitária é escassa, seja porque Israel não autoriza a sua entrada, seja porque não há meios de distribuição, tendo quase todo o aparato da ONU sido destruído e as operações internacionais suspensas no seguimento do assassinato pelas forças de defesa israelita nesta semana, seis dos quais eram estrangeiros.
De acordo com o secretário-geral da ONU, António Guterres, registra-se em Gaza o maior número de pessoas enfrentando níveis de fome catastrófica e má nutrição alguma vez visto em qualquer lugar, a qualquer altura, num contexto em que Israel utiliza a fome como arma de guerra. Hospitais, universidades, escolas e infraestrutura civil foram totalmente destruídos. O trabalho jornalístico e de informação livre tornou-se quase impossível, na medida em que os media internacionais têm sido impedidos de entrar na região — dezenas de trabalhadores do sector dos media foram mortos, naquele que já é o conflito mais mortífero do século XXI para os jornalistas de guerra.
A falta de avanço nas negociações entre as partes mediadas por intervenientes regionais e internacionais — que nem durante o mês do Ramadão foram capazes de encontrar um consenso que pelo menos levasse a uma pausa humanitária e à libertação de reféns — faz com que uma perspetiva de futuro diferente pareça muito longínqua. Ainda assim, face à destruição e terraplenagem bélica de Gaza, com ameaças constantes de escalada regional e estando à frente de Israel o Governo mais radical da sua história, nunca é cedo de mais para se pensar quais são as possibilidades de futuro para esta região e o que podemos esperar, virada a página destes seis meses de guerra.
Com a aproximação deste meio ano de conflito, o cenário internacional parece estar a mudar. Depois de várias tentativas falhadas iniciadas ainda em meados de outubro de 2023, o Conselho de Segurança da ONU aprovou finalmente, a 25 de março, uma resolução exigindo um cessar-fogo imediato, embora temporário, e que teria lugar durante o mês do Ramadão, que termina na próxima terça-feira. Esta aprovação foi possível com a abstenção dos Estados Unidos, um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, que detém, juntamente com o Reino Unido, a França, a China e a Rússia (os chamados P-5), o poder de veto.
Pese embora o desrespeito pré-anunciado pelo cumprimento desta resolução por parte de Israel, a sua aprovação representa o culminar do isolamento internacional do Governo de Benjamin Netanyahu, que vem tomando proporções nunca vistas antes. Isto inclui uma alteração profunda (ainda que, para já, apenas ao nível discursivo) da posição norte-americana, expressa nas declarações do líder da maioria democrata no Senado dos EUA, o judeu Chuck Schumer, que defendeu eleições e uma mudança de liderança em Israel; bem como no telefonema de Joe Biden desta semana, que desencadeou a decisão de abertura temporária da passagem de Erez para a entrega de ajuda humanitária no Norte da Faixa de Gaza; e na declaração pública de Anthony Blinken durante o Conselho da NATO, na qual o secretário de Estado dos EUA afirma que, se Israel não mudar a sua postura, os Estados Unidos vão modificar sua política relativamente ao país, acrescentando que Israel se arrisca a tornar-se indistinguível do Hamas se continuar a não proteger as vidas humanas.
Por um lado, esta aparente mudança de posição ainda não parece representar uma esperança para o futuro do povo palestiniano. Os EUA continuam a ser, para todos os efeitos, os maiores apoiantes morais e financeiros de Israel, não tendo ainda prescindido do último, o mais importante no contexto do esforço de guerra. Contudo, se a ambiguidade norte- americana pode deixar os mais céticos de olhos revirados, a verdade é que Netanyahu tem esticado a corda a níveis tão extremos que posiciona Joe Biden como um líder fraco e contraditório. A aproximação de eleições norte-americanas em novembro deste ano não traz bons augúrios para quem espera que a superpotência venha a transformar a sua coação em ação e possa alterar o equilíbrio de forças em Israel. No entanto, justamente por causa do cenário eleitoral que se aproxima, podemos passar a ver as ações de humilhação constantes do Governo de Netanyahu contra o Presidente dos Estados Unidos levarem a uma mudança concreta de posicionamento.
Uma coisa, pelo menos, é certa: os cidadãos do Estado de Israel já começam a verbalizar que este Governo, cuja contestação já era enorme antes de outubro de 2023, está a comprometer a relação especial com o principal aliado histórico do país. Além disso, cresce a percepção de que a guerra de Netanyahu tem contornos pessoais, visando a sua manutenção no poder no contexto das investigações de corrupção que enfrenta, e tendo pouco ou nenhum interesse no resgate dos reféns. O movimento “not in our names” tem ganhado força. E isto, sim, pode ser um divisor de águas em termos de mobilização social com eventual impacto eleitoral, levando a uma alteração de liderança que poderá modificar o rumo deste conflito.
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