quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Brasil de Sísifos


A guerra fria de Bolsonaro

“Temos inimigos dentro e fora do Brasil. Os de dentro são os mais terríveis”. Foi com esse espírito que o presidente Jair Bolsonaro participou de cerimônias no Rio de Janeiro e em São Paulo na última sexta-feira. No sábado foi a vez de seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, se manifestar durante a 1ª edição do CPAC, uma conferência organizada em parceria com a União Conservadora Americana, com críticas à mídia e ao “domínio cultural marxista”.

Atribui-se ao general Golbery de Couto e Silva a autoria da doutrina de Segurança Nacional, segundo a qual era preciso povoar o centro-oeste e o norte do país e se aliar aos Estados Unidos como garantia da nossa soberania. Essa doutrina, formulada em plena Guerra Fria, trabalhava com o conceito de inimigos externo e interno.

O primeiro era o comunismo internacional, liderado pela União Soviética, e que tinha em Cuba a sua plataforma de exportação para os países latino-americanos. No plano interno, a chamada subversão era o inimigo a ser vencido. Esses eram os agentes da infiltração comunista em nosso país.

A ocupação da Amazônia se deu a partir desse figurino. Era preciso integrar para não entregar a região a interesses escusos.

Havia os inimigos internos. Desde a esquerda que combatia o regime de armas nas mãos até a oposição legal e democrática, passando pela área da cultura e por entidades da sociedade civil, como OAB, CNBB, ABI, SBPC, entre outras. Em particular, o regime via a Igreja Católica como foco de subversão e enxergava como “maus brasileiros” todos os que criticavam o governo no exterior.



Jair Bolsonaro e muitos de seu núcleo militar vieram dessa época. Isso explica em grande medida o fato do presidente trabalhar com as mesmas categorias mentais, apesar de viver em outros tempos. Mudaram os atores e a conjuntura, mas a concepção é a mesma.

O conceito do inimigo externo foi adaptado aos tempos atuais. Não é mais o comunismo internacional, ainda que o presidente e seu governo façam do anticomunismo uma peça de coesão ideológica do seu campo. Em sua ótica, a ameaça à soberania nacional vem do globalismo inspirado no “marxismo cultural”, que quer destruir a sociedade judaico-cristã do mundo ocidental.

Assim, por trás das críticas ao seu governo à crise amazônica estariam os interesses escusos do globalismo de se apropriar das riquezas da região, em especial dos minérios: "O interesse na Amazônia não é no índio, nem na porra da árvore. É no minério.”

As ONGs, os indígenas como Raoni, a imprensa, os órgãos públicos como INPE, e todos que denunciam o desmatamento da Amazônia são vistos como infiltrados de um globalismo que vai de Emmanuel Macron a George Soros, passando pela ONU, a União Europeia e outros fóruns internacionais.

A política externa também é ditada pela geopolítica bolsonariana e por uma ótica fundamentalista que vê nos Estados Unidos de Donald Trump os novos cruzados que vão salvar a civilização ocidental. A aliança com países de governo “soberanistas”, como a Hungria de Victor Orbán também decorre da mesma visão apocalíptica do globalismo.

Internamente, há um rol infindável de inimigos. Os professores que fazem lavagem cerebral nos alunos, os críticos de sua política externa, a área cultural, a OAB, a imprensa, e, não poderia faltar, a Santa Madre Igreja, que ousa organizar um sínodo para discutir a Amazônia.

A geopolítica dos militares do passado tinha sua explicação. O mundo dividia-se em dois blocos, havia uma corrida nuclear, guerras regionais, como a da Coreia e do Vietnã, e o fantasma de uma terceira guerra mundial quase se materializou na crise dos mísseis em Cuba. Tínhamos espaçonaves e guerrilhas, com Guevara na Bolívia, Lamarca e Marighela no Brasil.

As batalhas de Bolsonaro se dão em um mundo inteiramente diferente, de economia globalizada e movimentos sociais complexos, no qual a grande corrida para definir as potências é a tecnológica.
Bolsonaro trava a guerra do passado em vez de se dedicar à guerra do futuro.

Primeiro mandamento

Numa época de mentiras universais, falar a verdade é um ato revolucionário
George Orwell

Abolidos por obsoletos

O IBGE se prepara para atualizar o cálculo do IPCA, índice oficial de inflação, pelos novos dados fornecidos pela POF (Pesquisa de Orçamento Familiar). Eles medem tudo que consumimos. O bom desse acompanhamento, feito há décadas, é que ele permitiu montar a cesta básica do brasileiro em cada período, com o que podemos acompanhar o desenvolvimento do país.


Em 1950, por exemplo, os dados levavam em conta nossos gastos com o feijão, o ônibus, o cigarro, o lápis do caçula, a ida semanal ao cinema e, talvez, uma fezinha no bicho. Éramos um país simples, mas feliz, segundo os antigos. Em 1970, com a modernização, o cálculo trocou alguns daqueles itens pelo estrogonofe, o carro do ano, as escapadas aos motéis, a TV em cores e as aplicações na Bolsa. Essas opções nos conduziram, respectivamente, ao colesterol, à angústia, ao desquite, ao emburrecimento e à falência, mas fomos levando.

Em 1990, a cesta básica incluía quilos de cocaína, estoques de camisinha, pizza pelo telefone, férias em Cancun e aplicações no overnight --um esquema de investimento em que você pensava que o seu dinheiro dobrava enquanto você dormia, embora ele só estivesse se defendendo da inflação de 1.000% ao ano. Em 2010, o cálculo passou a considerar as despesas com TV a cabo, curso de mandarim, cirurgia bariátrica, passeador de cachorro, aplicação de botox e propina de deputado.

Para o próximo ano, o IBGE vai ampliar o espectro e pesquisar nossos gastos com streaming, branqueamento dentário, aluguel de bicicleta, conserto de celular e serviços de sobrancelha e depilação. Infelizmente, alguns itens serão abolidos da análise por obsoletos: aparelhos de rádio, relógios, máquinas fotográficas, CDs, DVDs.

Não por mim. Minha cesta básica continuará incluindo vários itens condenados e que ainda me servem muito bem. Aboli-los seria como eu próprio me abolir como obsoleto.
Ruy Castro

Abismo abissal

O rendimento médio mensal do 1% mais rico da população brasileira em 2018 era de R$ 27.744.

Dos 50% mais pobres, R$ 820.

O 1% mais rico ganha 33,8 vezes a mais que a metade da população com os menores rendimentos. É um novo recorde na série histórica da pesquisa do IBGE, iniciada em 2012.

Querem nos roubar o melhor do Brasil

Os brasileiros estão vivendo um momento paradoxal. Somos nós, os que vieram de fora, que mais os apreciamos e amamos, e por isso somos os que mais nos surpreendemos, nestes momentos, ao ver que estão com medo de amar e de se amar entre si, porque o ódio substituiu o amor. E da glória ao inferno sempre há apenas um passo.

Fiquei comovido com uma reportagem gráfica publicada pela Folha de S. Paulo sobre o que alguns imigrantes pensam do Brasil. Talvez porque confirma minha teimosia de que os brasileiros estão sendo envenenados e convencidos a serem piores do que realmente são ou do que imaginam ser e que o melhor é fugir deste país que está sendo envenenado pela política de extrema-direita e pela guerra à cultura.

Achei que o Brasil gostasse mais de si mesmo
Maria Luisa, portuguesa 
Nessa reportagem, os não brasileiros que chegaram até aqui não entendem por que de repente os brasileiros se sentem mal com eles mesmos, têm vergonha de ser o que são e até são agora eles que preferem emigrar. E, ao mesmo tempo, os imigrantes lembram sua felicidade quando chegaram aqui e tiveram seus primeiros encontros com os brasileiros. O africano Absoulaye lembra: “Aqui eu tive aulas de forró, de sertanejo e de samba. A cultura muçulmana não aceita a dança. Aqui eu realizei esse sonho”. Emocionante a confissão de Nbuduzu, da África do Sul: “Aprendi a falar português e a cantar na prisão. Lá consegui libertar minha música e meu canto”. E a portuguesa Maria Luisa confessa que chegam a perguntar-lhe: “Mas o que você está fazendo aqui?”. E comenta triste: “Achei que o Brasil gostasse mais de si mesmo”.

O Brasil, onde mesmo no inferno das prisões alguém se sente com espaços de liberdade para cultivar sua arte, reflete melhor o Brasil feliz como nós sempre vimos este país, apesar dos pecados daqueles que se aproveitaram da vocação para a felicidade de sua gente para tê-la subjugada, perpetuando o inferno que deixou a herança da mais longa escravidão que se conhece na história.

Hoje existe um Brasil na superfície, envenenado por políticas alheias à sua vocação de diálogo e de encontro que despertaram com a exaltação da violência e seu amor às armas o pior que existe até nas profundezas das almas mais nobres, arrastando-o a um crescimento alarmante da depressão. E existe o Brasil verdadeiro, do qual meu colega e escritor espanhol, Antonio Jiménez Barca, ao deixar a direção da edição brasileira do EL PAÍS para voltar à sede principal em Madri, à minha pergunta sobre o que o Brasil lhe deixava como lembrança, me respondeu: “O Brasil me ensinou a ser feliz”.

Como dizia Freud, o ser humano precisa se proteger de seus instintos de violência e procurar dominar os outros, ao mesmo tempo em que vai sempre em busca de sua realização e felicidade. Segundo o criador da psicanálise, são o impulso de morte, o tânatos, e o instinto de vida, o eros, que movem o mundo, que se ainda existe é porque o instinto de vida é mais forte que o de morte. Também no Brasil, por conjunturas da natureza, talvez melhor do que em outras partes do mundo, o impulso de vida que implica o do encontro, da autoestima, do diálogo pacífico, da liberdade de expressar os sentimentos, o de compartilhar em paz o pouco ou o muito que a vida lhe deu, é maior do que seu impulso de morte.

A resistência que estão vivendo os brasileiros que não se conformam com esse clima negro de violência, de castração do encontro amigável e da falta de pensar como se deseja, é a de poder, uma vez vencida a batalha contra o derrotismo estéril que começa a asfixiá-lo, o Brasil luminoso, com espaços para que todos possam expressar livremente seu modo de ser feliz. Que volte a ser o Brasil que trazem nos olhos os imigrantes que chegam aqui na espera de uma praia de liberdade para melhor expressar toda a sua criatividade, em vez do campo de batalha no qual o estão convertendo.

O Brasil, sua terra privilegiada e sua gente enriquecida com a rica pluralidade de suas culturas, tem de voltar a ser o país que, segundo uma feliz expressão, Deus havia escolhido para viver. Sim, o Deus de todos, especialmente o dos que mais nos esquecemos sempre, o Deus da paz e do encontro e não o Deus dos mais privilegiados, cuja política de exclusão também está querendo para o Brasil.

O Deus encarnado profeticamente nos olhos doces com a pobreza e a fragilidade e severos com a injustiça, de santa Irmã Dulce. Talvez não seja a primeira santa nascida no Brasil, ao qual imigrantes de meio mundo, em busca de paz e de belezas naturais que querem roubar-lhe a ganância de um capitalismo sem alma, ainda sonham para viver e morrer. A primeira santa brasileira também gostava de cantar e dançar.

Estão tentando despojar o Brasil do melhor de sua história e de sua alma plural e festiva. Um pecado sem perdão.

Pensamento do Dia


Esse seu olhar

No fundo bem fundo de si mesmo, um general suíço deve se sentir meio frustrado. Em matéria de guerra, o que a Suíça tem de mais próximo é a Cruz Vermelha. Nem por isto o general deixará de ter o peito crivado de medalhas. A paz também é nobre e digna de condecoração. Numa nação belicosa, que tem na guerra uma fatalidade histórica, um rapaz que escolhe a carreira das armas sabe o que o espera no seu horizonte profissional.

O mesmo se pode dizer de um bombeiro, chamado a viver diariamente com o perigo. O incêndio é um pesadelo. No Rio dos anos 50 testemunhei num domingo o da boate Vogue. Há pouco tempo acordei à noite com uma gritaria de pânico. Era a família de um prédio vizinho com o apartamento pegando fogo. Não houve vítimas, só prejuízos. No dia seguinte viajei e no hotel tratei de pedir um andar bem baixo.



Conheci nos velhos tempos um oficial do Corpo de Bombeiros. Alma delicada, era também músico. Caráter generoso, sem jaça, sua opção pela carreira tinha sido uma imposição do seu amor ao próximo. Por ele eu poria a minha mão no fogo, mesmo que não estivesse por perto. Pois bem. Não sei se vocês se lembram de um incêndio na zona do cais do porto. "Pavoroso sinistro", disseram os jornais sem receio do lugar-comum. Durou a noite toda. Desculpem se ouso dizer que um incêndio à noite é mais bonito. Digamos mais interessante. Claro que para quem assiste. Como para fotógrafos e cinegrafistas.

O meu amigo bombeiro apareceu de relance na televisão, mas a reportagem não lhe fez justiça. Foi o que senti quando me contou, modesto, o heroísmo de sua façanha. Para salvar vidas arriscou a própria vida. Não foi preciso me dizer isto às claras, porque há coisas que não se dizem. No caso não precisavam de ser ditas. No silêncio de seu recato, ele guardava, ao lado do orgulho, uma ponta de alegria.

O incêndio de fato tinha sido a grande oportunidade de sua vida. Quando começou a falar, percebi no seu coração a centelha de uma como euforia. Trazia nos olhos o brilho que de público é o prêmio do dever cumprido. Mas há no coração dos homens, bombeiros ou não, uma nota de paradoxal ambiguidade. No luto da catástrofe se esconde uma ponta de inconfessável júbilo. Dito isto, é fora de dúvida que a crise desta hora põe os políticos de orelha em pé. Resta saber se também brilham os olhos – e por quê.

Impunidade livre!

Se a prisão em segunda instância parecia um casuísmo, pelo menos seguia a prática histórica não apenas no Brasil, mas em diversos países. Tem respaldo no Código Penal e favorece o combate à corrupção. O Supremo se prepara agora para aprovar um outro casuísmo, desta vez favorável à impunidade
Helio Gurovitz 

Quem tem medo de CPI?

A briga no PSL e a revelação, por meio de reportagem da revista Crusoé, de uma conexão entre o Palácio do Planalto e uma rede de blogueiros e youtubers, alguns dos quais com cargos em gabinetes no Executivo e no Legislativo, para destruir reputações e até derrubar ministros viraram combustível para a CPI das Fake News. E o olavo-bolsonarismo está em polvorosa.

Flagrado em conversas para queimar o então ministro Carlos Alberto Santos Cruz por meio de sites amigos, o assessor especial da Presidência Filipe Martins acusou o golpe e sentenciou no Twitter, diante da possibilidade de ser convocado pela CPI: “Vamos pro pau!”.


Não é de hoje que o discípulo de Olavo e Steve Bannon usa as redes sociais para convocar uma espécie de cruzada da nova direita contra o establishment, assim entendido difusamente como qualquer instituição ou indivíduo que ouse divergir do presidente.

Agora, flagrado articulando a partir do palácio para abater inimigos – no caso de Santos Cruz, um que se opunha ao aparelhamento de órgãos, agências e ministérios por olavistas e ao uso de verbas de publicidade para aquinhoar amigos do rei –, acusa a CPI das Fake News de ser uma tentativa de cerceamento à liberdade de expressão.

O fato é que a cisma no PSL ajudou a expor a divisão profunda da direita.

Vejamos o que já está na praça:

1. Denúncia de “rachadinha” no gabinete do deputado estadual por São Paulo Gil Diniz, preposto da família Bolsonaro, ex-assessor de Eduardo e preferido do clã para a disputa da prefeitura da capital, no lugar da líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann;

2. Acusado pelo senador Major Olímpio, Eduardo Bolsonaro revida insinuando que pode ter ajudado a abafar tentativas de convocação de seu suplente, Alexandre Giordano, para explicar possíveis negócios de lobby em Itaipu. Trata-se de mais um disparate, porque a acusação é de ligação do empresário paulista justamente com a família Bolsonaro.

3. Ameaça de expulsão do PSL de vários deputados ligados ao clã Bolsonaro, e

4. Os inquéritos em várias seções que investigam o uso de candidaturas laranjas de mulheres para distribuição do fundo eleitoral.

Portanto, será a briga interna na direita que vai causar mais problemas para o bolsonarismo que a desarticulada e sempre reativa oposição. Isso na CPI das Fake News e fora dela.

Memória, velhice e sacanagem

O professor Richard Moneygrand — um dos brasilianistas mais conhecidos na triste fase da “ditadura militar”, quando eles desempenharam um papel político significativo, falando (justo porque eram estrangeiros ianques) de assuntos interditados aos estudiosos da casa — envia-me uma melancólica mensagem com péssimas notícias. Sua última esposa, Mary Smith, foi diagnosticada com o mal de Alzheimer. Conheci Mary quando Moneygrand, com seus setenta e tantos anos, engavetou-se no seu nono conúbio. A cada livro, um novo amor; dizia-me sorridente aqui em Niterói.

A mensagem do amigo de 89 anos termina meditando sobre os desafios das “ciências sociais”. “Não fomos capazes de prever,” diz ele. “Achamos que era revolução, mas foi golpe. Não entendemos as ironias da vida social. Essa devastadora doença da Mary me leva a um sombrio poente existencial...”

A mensagem terminava com uma pergunta perturbadora: e como é que você, Roberto, está escrevendo os últimos capítulos de sua vida?

Os velhos têm uma vantagem: eles não têm futuro. A mocidade se define pela responsabilidade dos futuros e amanhãs cuja realização cabe em meses ou décadas. Precisamente o que não ocorre na “melhor idade”.


Deu goteira aqui em casa — uma casa velha. Chamamos um telhadista. Ele verificou o apodrecimento das ripas e prometeu um conserto com 20 anos de garantia! Quando mencionei os meus 83 anos, fizemos um acerto realista porque eu não penso mais em termos de décadas...

Com 47 anos, porém, corajosamente publiquei um ensaio chamado “Para uma teoria da sacanagem” no livro “A arte sacana de Carlos Zéfiro” (Editora Marco Zero, 1983), organizado por João Marinho, ao lado de Sérgio Augusto e de Domingos Demasi. Quando escrevia o trabalho, espalhei na mesa do escritório várias revistinhas de sacanagem de Zéfiro, com aqueles desenhos contundentes que a sexualidade é capaz de evocar. Concentrado, não percebi a chegada do meu filho Renato. “Papai” — inquiriu ele com 16 anos e um olhar de censura — “você agora passou a ler livrinhos de sacanagem?”

Respondi que estava trabalhando duro com as singularidades da sexualidade nacional, como a recorrente analidade e a ausência de homossexualidade que as obras estampavam. A despeito de o assunto ser para muitos desmoralizante e condenável — concluí —, meu interesse pelos livrinhos era eminentemente científico-antropológico.

Não penso ter convencido o filho ou o leitor...

O colunista Ancelmo Gois notificou no GLOBO de 8 do corrente — a propósito de um documentário de Silvio Tendler sobre Zéfiro para o qual dei uma entrevista — que sou um “leitor assíduo de revistinhas de sacanagem.” A observação do querido colunista permite que eu mostre o lado ambíguo do tema, justo a dimensão que teorizei quando jovem. Ela autoriza chamar atenção para o que o erótico oculta: a dimensão moral ou social da palavra. Esse é o aspecto que me transforma num compulsivo observador de todas as “sacanagens” que viram notícias e aparecem nos jornais diários e em certos rituais onde são permitidas e até mesmo obrigatórias, como é o caso do carnaval e da “politicagem”.

Foi essa forma de sexualidade que me tornou consciente de que nasci (e vou morrer) num país onde há sacanas por todo lado. O que são o “Você sabe com quem está falando?”; a censura; o capitalismo relacional que faz tempo denunciei; a corrupção em nome de um ideal; a fofoca e a malandragem; senão sacanagens? Não é uma sacanagem a transformação da governança pública num lamaçal controlado por psicopatas e ladrões?

Os livrinhos de sacanagem de Zéfiro são pinto (com a desculpa pelo trocadilho) perto da grandiosa sacanagem que nas últimas décadas tem dominado o Brasil. Zéfiro falava de um erotismo sem o qual não viveríamos; já a sacanagem da desigualdade social e legal conduz à agressividade e à morte.
Roberto DaMatta

Imagem do Dia


STF só não lembra de presos pobres esquecidos

A julgar pelo cheiro de queimado, o Supremo Tribunal Federal deve mesmo rever a regra que permite a prisão de condenados na segunda instância. O que se discute agora é o tamanho do recuo. O retrocesso será grande se o cumprimento da pena for adiado até o julgamento de um recurso especial no Superior Tribunal de Justiça, o STJ. E será infinitamente maior se a punição for empurrada com a barriga até o julgamento de um recurso extraordinário no Suprema Corte, como parece mais provável a essa altura.


Fala-se muito sobre o descalabro de abrir as celas justamente depois que a oligarquia política e empresarial começou a ser enviada para o xilindró. Mas comenta-se pouco sobre o outro lado do sistema carcerário, ainda mais obscuro. Confirmando-se a tendência do Supremo de livrar da tranca os condenados em duas instâncias, ficará ainda mais gritante o absurdo a que estão submetidos os brasileiros muito pretos, muito pardos e muito pobres que mofam nos fundões dos presídios sem ter passado por nenhuma instância.

Pelas contas do Conselho Nacional de Justiça, há no Brasil cerca de 844 mil presos. Desse total, 40% não dispõem de sentença. Estamos falando de algo como 340 mil pessoas que dormem na cadeia sem um veredicto condenatório. Esses encarcerados sem Supremo são chamados de "presos provisórios". É gente que não tem dinheiro para pagar um advogado.

Sempre que são lembrados da existência de presos esquecidos, ministros como Gilmar Mendes costumam mencionar os mutirões carcerários realizados pelo Conselho Nacional de Justiça para detectar aberrações. O problema é que esses mutirões, feitos de raro em raro, servem mais para realçar o problema do que para resolvê-lo. Num deles, foram encontrados presos que aguardavam por sentenças há mais de uma década —11 anos num caso descoberto no Espírito Santos; 14 anos num processo paralisado no Ceará. É nesse contexto que o Supremo está prestes a restaurar o ambiente em que a punição de condenados graúdos será transferida para um ponto qualquer no infinito, onde reluz o pus da impunidade.

Escolha

As escolhas são políticas. Cabe a todos nós escolher qual o trecho do hino nacional vamos cantar: permanecer “deitado em berço esplêndido” ou mostrar que o “filho teu não foge à luta”
Marcus Pestana

Audácia de invasores na Amazônia divide territórios e mantém rotina de assassinatos

A destruição da Amazônia segue a pleno vapor, apesar dos holofotes nacionais e internacionais em torno do tema, incluindo os do Vaticano, que promove até o fim do mês um encontro sobre o bioma. As áreas com alerta de destruição já somam 7.853,91 quilômetros quadrados, 92% a mais que no mesmo período do ano passado, segundo dados do Deter, o sistema de alertas diário do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Em setembro, 1.447 quilômetros quadrados foram destruídos, 96% a mais em relação ao mesmo mês de 2018, ainda segundo o Deter. Em junho, o aumento foi de 90%; em julho, 278%; em agosto, 222%. Ainda que o ritmo do aumento dos alertas tenha diminuído em setembro, 2019 já registrou mais desmatamento que os três anos anteriores, mesmo faltando mais de dois meses e meio para o fim do ano.


Os maiores índices de desmatamento estão no Pará, que abriga imensas áreas de reservas naturais e indígenas cobiçadas por grileiros, garimpeiros e madeireiros. Uma dessas áreas na mira é o território dos Arara, conhecidos por serem guerreiros. Suas terras estão na bacia do rio Xingu e abrangem mais de 274.000 hectares da Amazônia e quatro municípios. Demarcadas em 1991, até hoje invasores colocam em xeque a sobrevivência da selva e dos próprios indígenas que nela habitam. Em fevereiro de 2018, quatro famílias dessa etnia deixaram a aldeia Laranjal, uma das cinco instaladas no interior da floresta, para se estabelecerem na fronteira do território com a rodovia Transamazônica. O cacique Turu, que levou consigo sua esposa, duas enteadas e seus pais, tinha um único objetivo: tentar coibir, até agora sem armas, apenas com sua presença, a ação de invasores que roubam madeiras valiosas. Quase todas as noites saem com caminhões carregados com jatobá, ipê, massaranduba ou angelim. "Já fizemos denúncias, mas até agora não tomaram providências", acusa o homem, de 37 anos.

A terra indígena dos Arara faz fronteira com 35 quilômetros da Transamazônica, entre os municípios de Uruará e Medicilândia – a cidade tem esse nome em homenagem ao ditador Emílio Garrastazu Médici, que governou o país de 1969 a 74. Da rodovia é possível ver dezenas de ramais na mata por onde entram e saem os caminhões e máquinas que, pouco a pouco, vão carcomendo o interior da floresta. "É triste", repete Turu a cada minuto, enquanto pisa nas marcas de pneu e pacotes de cigarro, o rastro dos invasores. Por fora, a mata parece intacta. Dentro há pedaços de tronco e árvores caídas por todas as partes. Muita destruição já foi feita. "É indignante ver que estão roubando algo que é nosso e não poder fazer nada. Nós sobrevivemos da mata, da caça de macacos, jabutis... A nossa briga é para que os brancos não desmatem tudo", explica o cacique, que já trabalhou em fazendas e, agora, pretende plantar cacau na floresta para ter uma fonte de renda. Para isso, precisa de segurança.

Viajar pela rodovia Transamazônica significa viajar no tempo. Enormes trechos permanecem com terra batida e esburacados desde que a ditadura militar decidiu abrir essa imensa rodovia transversal para o unir o Brasil de leste a oeste e colonizar a Amazônia. Pequenas motos ocupadas por até cinco pessoas — adultos e crianças — sem capacetes trafegam pela noite amazonense de faróis desligados em um acostamento que sequer existe. Enormes caminhões levantam a poeira da estrada. O perigo é constante. A impressão que se tem é que tanto a autopista como a população estão abandonadas há 50 anos. Uma constatação que não deixa de ser verdadeira: nessa região do Pará, o Estado peca por sua ausência e os conflitos por terra, ouro e madeira são sangrentos. Povos indígenas como os Arara estão entre os grupos mais vulneráveis. Além da própria floresta amazônica, que vai sendo destruída por serras elétricas e incêndios.

A tensão aumentou desde a eleição de Jair Bolsonaro. O atual presidente brasileiro vem dizendo desde a época da campanha eleitoral ser contra a demarcação de terras indígenas e promete liberar atividades econômicas, sobretudo mineração, nos territórios protegidos pelo Estado brasileiro. De acordo com a Rede Xingu +, formada por aldeias e comunidades da região do Xingu, somente no mês de julho 5.895 hectares de terras indígenas foram desmatadas, um aumento de 213% com relação a junho deste ano e 436% a mais que em julho de 2018. "Assim que o presidente ganhou, entraram nas terras e fizeram uma bagunça", recorda Turu. Os madeireiros já ameaçaram matar um de seus primos. Armados, muitas vezes disparam para o alto para assustar. A audácia desses invasores vem aumentando: da Transamazônica é possível ver estacas de madeira recém colocadas para dividir o território e ocupá-lo de vez.

Saindo da aldeia de Turu e seguindo 270 quilômetros pela Transamazônica está o município de Anapu. O centro urbano em si é pequeno, pobre e pacato. Em uma tarde de domingo de agosto há poucas almas vivas transitando pelas ruas, que abrigam casas humildes e pessoas que trabalham nos comércios ou fazendas da região. Em uma dessas vias está, quase escondido, um enorme depósito da prefeitura com imensas toras de madeiras, todas elas apreendidas pelo IBAMA duas semanas antes em uma das comunidades agricultores assentados pelo INCRA em Anapu. São muitas, centenas. Empilhadas uma sobre a outra, é preciso um breve exercício de escalada para caminhar sobre elas. Naquele mesmo domingo, a Polícia Civil havia encontrado três homens mortos perto de um trator. Pela característica do veículo, tudo indicava que trabalhavam com extração ilegal de madeira, mas as causas da morte ou a identidade dos rapazes não foram esclarecidas. As fotos dos cadáveres ensanguentados perto do veículo rodavam os celulares da população. Era apenas mais um dia normal em Anapu. O Pará se mantém como o quarto estado mais violento do país, com 54,5 mortes por 100.000 habitantes, contra 9,5 de São Paulo, segundo dados de 2018 divulgados recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O município, vizinho a Altamira, abriga grandes propriedades de terra e é palco dos mais sangrentos conflitos dessa região do Xingu. Foi lá que a irmã Dorothy Stang, missionária norte-americana da Igreja Católica, desenvolveu os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), comunidades que abrigam centenas de famílias de agricultores que buscam conciliar o cultivo com a preservação da floresta. No início dos anos 2000, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) chancelou a criação dos assentamentos, contrariando os interesses de grandes fazendeiros. A líder religiosa acabou assassinada em 12 de fevereiro de 2005.

As suspeitas recaem para um consórcio maior de latifundiários. O então prefeito de Anapu, Luiz dos Reis Carvalho, e o fazendeiro Laudelino Délio Fernandes — assassinado no ano passado — chegaram a ser apontados como mandantes, mas a participação de ambos nunca foi provada. No final, dois fazendeiros próximos a ele — um deles se escondeu na casa de Délio depois da execução — foram condenados pela execução a tiros de Stang, que tinha 73 anos na época e militava na Comissão Pastoral da Terra (CPT). "Continuamos seu trabalho. Mas, desde sua morte, outras 17 pessoas foram assassinadas na região defendendo suas terras, que são públicas, da União", conta o padre José Amaro Lopes de Sousa, sucessor de Dorothy na CPT de Anapu. Os grandes proprietários da região nunca aceitaram a criação dos PDS, que abarcam áreas que eles dizem ser suas. A família Fernandes, que desembarcou em Altamira no final dos anos 70, adquiriu terras da União ocupadas por colonos que tinham uma espécie de título provisório, o qual deveria ser efetivado caso as terras se tornassem produtivas. Uma prática comum dos grileiros da época era vender essas terras improdutivas no momento em que o Governo retomava a posse dos terrenos. Os imbróglios judiciais com a União permanecem até hoje.

'Brasil foi tomado de novo'

Os três Poderes deram as mãos para permitirem, um ao outro, a maior sequência de escárnios dos últimos cinco anos. Mandaram às favas princípios republicanos, os eleitores, os pagadores de impostos e os mais pobres. O Brasil foi tomado. De novo. Golpe coordenado?

1. Intimidação de auditores da Receita Federal.

“O STF barrou o poder de investigação de auditores, coincidentemente, quando estes chegaram perto de familiares dos magistrados.”

2. Aprovação da Lei de Abuso de Autoridade.

“Uma lei com altíssima dose de subjetividade que expõe juízes e procuradores decentes (não são a totalidade) a penas criminais, por cumprirem seus papéis e tomarem medidas básicas de aplicação das leis. As votações foram conduzidas às pressas, na calada da noite, por Maia e Alcolumbre, com autoria de Renan Calheiros. Precisa dizer mais?”

3. Anulação dos vetos presidenciais.

“Diante dos absurdos aprovados na Lei de Abuso de Autoridade, o presidente Bolsonaro vetou 33 pontos. Mas o Congresso, sem discussão ou consulta popular, novamente às pressas, derrubou 18 vetos do presidente. Para que se tenha uma dimensão das incongruências dessa votação, o próprio Flavio Bolsonaro votou contra 5 vetos do próprio pai. O próprio líder do governo no Senado também votou para derrubar vetos de Bolsonaro.”


4. Mudanças danosas no Coaf.

“Uma sequência vergonhosa e atabalhoada de mudanças foi feita no órgão. O Congresso tirou o COAF de Moro, e Bolsonaro o transferiu para o Banco Central. O presidente do órgão, indicado por Moro, deixou o cargo. Na essência, tiraram de Moro algo que ele sempre anunciou como vital para o combate à criminalidade, e não à toa: na última década, o COAF produziu mais de 30 mil relatórios que embasaram as investigações da Polícia Federal. Para completar, a pedido de Flavio Bolsonaro, Toffoli ordenou que qualquer informação mais detalhada precise de aval da Justiça. Jair Bolsonaro elogiou.”

5. Interferência do Executivo na Polícia Federal.

“Na época de Dilma, em 2015 e 2016, protestamos fortemente para evitar interferências na PF, e ganhamos todas as batalhas que ameaçaram a sua independência. Agora, quatro anos depois, o presidente se incomodou com investigações supostamente contra milícias cariocas, e interferiu abertamente na instituição gerida por Moro. Ninguém, nem Dilma, fez isso.”

6. Mudança para pior nas leis partidárias e eleitorais.

“O Congresso aprovou, mais uma vez a toque de caixa, sem discussão ou consulta popular, regras que favorecem gastos perversos do dinheiro público por partidos políticos. Sim, acredite: políticos poderão usar o nosso dinheiro para pagar advogados, para que os defendam de crimes de corrupção. De onde vem o dinheiro para os advogados que defendem Lula? Pois a partir de agora usar o Fundo Partidário para isso passa a ser lícito. Sim, o teu dinheiro vai pagar os advogados dos políticos que te roubaram, inclusive Lula, e agora isso é permitido por lei. Essas medidas tiveram ajuda indireta de Bolsonaro, que poderia tê-las vetado uma semana depois (a mesma velocidade com que divulgou seus vetos à Lei do Abuso de Autoridade) e evitado esse assalto seguido de morte à democracia representativa. Preferiu não fazê-lo. Seria porque seu partido será o maior beneficiário desta lei? O PSL poderá receberá mais de R$ 700 milhões de hoje até 2022. O PT receberá valor semelhante.”

7. Aumento do financiamento público de campanhas e partidos.

“O Congresso decidiu, sem nos consultar, desviar o nosso (suado) dinheiro de impostos para uso político, tirando da educação, saúde, etc. Ao mesmo tempo, tem a cara de pau de culpar o Teto de Gastos pela baixa qualidade dos serviços prestados à população mais pobre. Você acha que R$ 290 milhões (em valores de 2015) bastariam para os partidos? Era o que tinham. Em 2018, aumentaram para R$ 2 bilhões e 500 milhões. Na semana passada, eles abriram uma brecha para desviar bilhões de emendas para o financiamento de campanhas, totalizando ao menos R$ 3 bilhões e 500 milhões. Sim, três bilhões e quinhentos milhões, mais de 12 vezes o valor de quatro anos atrás. São centenas de hospitais e escolas que deixarão de ser construídos.”

8. Nomeação do Procurador-Geral da República.

“Bolsonaro ignorou a lista tríplice, que foi respeitada inclusive por Lula e Dilma. A lei não o obriga a seguir a lista, mas Bolsonaro escolheu justamente alguém que é crítico à Lava Jato, e que abriu seu mandato indicando a possibilidade de utilização dos materiais da Vaza Jato, obtidos de forma ilegal.”

9. O STF busca enfraquecer a Lava Jato.

“São dezenas de exemplos. No mais recente, o STF legisla (sic) retroativamente, em decisão não amparada por qualquer lei ou precedente legal, abrindo a porteira para cancelamento de dezenas de processos finalizados da Lava Jato. Quando o STF falha, quem nos protege dele? Talvez uma CPI da Lava Toga. Mas a maioria ainda é contrária a ela, inclusive Flávio Bolsonaro.”

10. Corporativismo.

“O senador Davi Alcolumbre postergou por semanas a tão urgente votação da Previdência como represália à investigação do senador Fernando Bezerra, prejudicando todo o país por razões unicamente corporativistas. Além disso, o Senado abriu tentativa de negociatas com o governo para obter repasses do pré-sal, em troca da aprovação dessas reformas.”