sexta-feira, 12 de setembro de 2025
Quem será o modelo da democracia agora?
Quando eu era adolescente e morava em Istambul, tive a sorte de fazer parte de uma geração que tinha modelos democráticos por perto. Países europeus como Reino Unido, França, Alemanha e Suécia alimentavam nossas aspirações de prosperidade e democracia, dando-nos esperança para o futuro de nosso próprio sistema político imperfeito. As experiências desses países nos mostraram que crescimento econômico, justiça social e liberdade política não só eram compatíveis, como também se reforçavam mutuamente.
Onde os jovens de hoje buscarão uma mensagem igualmente esperançosa? A democracia liberal parecia destinada a ser a onda do futuro. Agora, porém, o retrocesso democrático é um fenômeno global, com os EUA de Donald Trump sendo apenas o exemplo mais visível e dramático. Desde o início da década de 2010, as “autocracias eleitorais” - regimes que realizam eleições periódicas, mas sob condições de repressão generalizada - se tornaram a forma dominante de governo em todo o mundo. Hoje, quase 220 milhões de pessoas a menos vivem sob uma democracia liberal do que em 2012.
Além disso, as “democracias eleitorais” - forma de regime que pode abrir caminho para a democracia liberal - também perderam terreno, governando hoje 1,2 bilhão de pessoas a menos do que em 2012. Esses regimes foram substituídos por autocracias eleitorais ou absolutas, que agora governam 5,8 bilhões de pessoas (2,4 bilhões das quais foram adicionadas desde 2012).
Como um farol da democracia, a Europa não brilha mais com tanta intensidade. A União Europeia (UE) desempenhou um papel importante na consolidação da democracia durante a transição da Europa Oriental do socialismo, com a República Tcheca e a Estônia se tornando algumas das democracias liberais mais bem classificadas do mundo. Mas muitos outros - notadamente Polônia, Hungria e Eslováquia - regrediram de modo significativo, e a UE tem sido impotente para fazer algo a respeito. O premiê da Eslováquia, Robert Fico, recentemente se juntou ao presidente russo Vladimir Putin, ao ditador norte-coreano Kim Jong-un e a duas dúzias de outros líderes autoritários em Pequim para assistir o presidente Xi Jinping a celebrar o poderio militar chinês.
Os principais países europeus podem afirmar, com razão, que suas democracias não sofreram um golpe tão grande quanto os EUA. Mas a Europa hoje não projeta nem força econômica nem coesão política. Sua autoconfiança parece ter atingido o fundo do poço, como exemplificado pela forma como a UE cedeu às ameaças tarifárias de Trump.
Os líderes europeus esperaram durante muito tempo que a integração aumentasse o poder e a influência da região na cena global. Em vez disso, a UE dá a impressão de ter virado uma espécie de centro de reabilitação permanente que promove a paralisia. Suas instituições e processos desencorajam os países a agir de forma ousada por conta própria, mas não têm capacidade para formular e perseguir uma visão comum.
Enquanto a Europa democrática não consegue projetar influência além de suas fronteiras, aqueles que exercem poder no cenário global não são mais modelos a serem seguidos. Poucos esperavam que os EUA dessem uma guinada autoritária, ainda assim, Trump transformou o país num ator sem escrúpulos quase da noite para o dia. Ele também facilitou para a China se apresentar como o adulto na sala, e Xi assumiu de bom grado o manto da “igualdade soberana”, do “Estado de direito internacional” e do “multilateralismo”.
Mas ninguém deve se enganar sobre a natureza do regime chinês. Suas conquistas econômicas não são motivo para imitar sua política. A China continua sendo um país autoritário, onde minorias são reprimidas e a oposição política é estritamente proibida.
Para encontrar pontos positivos democráticos, precisamos procurar em lugares inesperados. Brasil e África do Sul, dois países de renda média, compartilham a rara distinção de terem chegado recentemente à beira do colapso autoritário e, em seguida, terem recuado
Para encontrar pontos positivos democráticos, precisamos procurar em lugares inesperados. Por exemplo, Brasil e África do Sul, dois países de renda média, compartilham a rara distinção de terem chegado recentemente à beira do colapso autoritário e, em seguida, terem recuado.
O mandato de Jacob Zuma como presidente da África do Sul (2009-2018) foi caracterizado por populismo autoritário e corrupção generalizada, e o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro se recusou a aceitar a derrota eleitoral e planejou um golpe militar (bem como o assassinato de seu oponente) em 2022. Mas ambos foram sucedidos por líderes com sólidas credenciais democráticas - Cyril Ramaphosa na África do Sul e Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil.
O que torna esses sucessos extraordinários é que eles ocorreram em circunstâncias que os cientistas políticos consideram particularmente desfavoráveis à democracia. A África do Sul e o Brasil não só têm profundas divisões étnicas, como também estão entre os países mais desiguais do mundo. A ausência de grandes diferenças entre ricos e pobres é uma pré-condição para a sustentabilidade da democracia; mas as experiências brasileira e sul-africana pintam um quadro mais sutil - que é animador para os defensores da democracia.
Há boas notícias também noutros lugares. No fim de 2024, quando o presidente sul-coreano Yoon Suk-yeol declarou lei marcial as forças democráticas e o Parlamento reagiram. Em poucas semanas, Yoon sofreu impeachment e foi destituído do cargo.
Algumas das democracias mais bem-sucedidas fora da Europa são pequenos países que permanecem fora do radar nas discussões sobre o declínio democrático. Taiwan, Uruguai, Costa Rica, Ilhas Maurício e Botsuana recebem notas altas no ranking de democracia da Economist Intelligence Unit (os dois últimos são particularmente notáveis como exemplos de democracias duradouras na África).
Talvez nossas esperanças de alimentar as chamas da democracia repousem sobre esses casos improváveis. Como tudo na vida, a democracia precisa de modelos a seguir. Embora os estudos de caso de costume já não sejam relevantes, ainda existem lugares onde os defensores da democracia podem achar inspiração.
Onde os jovens de hoje buscarão uma mensagem igualmente esperançosa? A democracia liberal parecia destinada a ser a onda do futuro. Agora, porém, o retrocesso democrático é um fenômeno global, com os EUA de Donald Trump sendo apenas o exemplo mais visível e dramático. Desde o início da década de 2010, as “autocracias eleitorais” - regimes que realizam eleições periódicas, mas sob condições de repressão generalizada - se tornaram a forma dominante de governo em todo o mundo. Hoje, quase 220 milhões de pessoas a menos vivem sob uma democracia liberal do que em 2012.
Além disso, as “democracias eleitorais” - forma de regime que pode abrir caminho para a democracia liberal - também perderam terreno, governando hoje 1,2 bilhão de pessoas a menos do que em 2012. Esses regimes foram substituídos por autocracias eleitorais ou absolutas, que agora governam 5,8 bilhões de pessoas (2,4 bilhões das quais foram adicionadas desde 2012).
Como um farol da democracia, a Europa não brilha mais com tanta intensidade. A União Europeia (UE) desempenhou um papel importante na consolidação da democracia durante a transição da Europa Oriental do socialismo, com a República Tcheca e a Estônia se tornando algumas das democracias liberais mais bem classificadas do mundo. Mas muitos outros - notadamente Polônia, Hungria e Eslováquia - regrediram de modo significativo, e a UE tem sido impotente para fazer algo a respeito. O premiê da Eslováquia, Robert Fico, recentemente se juntou ao presidente russo Vladimir Putin, ao ditador norte-coreano Kim Jong-un e a duas dúzias de outros líderes autoritários em Pequim para assistir o presidente Xi Jinping a celebrar o poderio militar chinês.
Os principais países europeus podem afirmar, com razão, que suas democracias não sofreram um golpe tão grande quanto os EUA. Mas a Europa hoje não projeta nem força econômica nem coesão política. Sua autoconfiança parece ter atingido o fundo do poço, como exemplificado pela forma como a UE cedeu às ameaças tarifárias de Trump.
Os líderes europeus esperaram durante muito tempo que a integração aumentasse o poder e a influência da região na cena global. Em vez disso, a UE dá a impressão de ter virado uma espécie de centro de reabilitação permanente que promove a paralisia. Suas instituições e processos desencorajam os países a agir de forma ousada por conta própria, mas não têm capacidade para formular e perseguir uma visão comum.
Enquanto a Europa democrática não consegue projetar influência além de suas fronteiras, aqueles que exercem poder no cenário global não são mais modelos a serem seguidos. Poucos esperavam que os EUA dessem uma guinada autoritária, ainda assim, Trump transformou o país num ator sem escrúpulos quase da noite para o dia. Ele também facilitou para a China se apresentar como o adulto na sala, e Xi assumiu de bom grado o manto da “igualdade soberana”, do “Estado de direito internacional” e do “multilateralismo”.
Mas ninguém deve se enganar sobre a natureza do regime chinês. Suas conquistas econômicas não são motivo para imitar sua política. A China continua sendo um país autoritário, onde minorias são reprimidas e a oposição política é estritamente proibida.
Para encontrar pontos positivos democráticos, precisamos procurar em lugares inesperados. Brasil e África do Sul, dois países de renda média, compartilham a rara distinção de terem chegado recentemente à beira do colapso autoritário e, em seguida, terem recuado
Para encontrar pontos positivos democráticos, precisamos procurar em lugares inesperados. Por exemplo, Brasil e África do Sul, dois países de renda média, compartilham a rara distinção de terem chegado recentemente à beira do colapso autoritário e, em seguida, terem recuado.
O mandato de Jacob Zuma como presidente da África do Sul (2009-2018) foi caracterizado por populismo autoritário e corrupção generalizada, e o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro se recusou a aceitar a derrota eleitoral e planejou um golpe militar (bem como o assassinato de seu oponente) em 2022. Mas ambos foram sucedidos por líderes com sólidas credenciais democráticas - Cyril Ramaphosa na África do Sul e Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil.
O que torna esses sucessos extraordinários é que eles ocorreram em circunstâncias que os cientistas políticos consideram particularmente desfavoráveis à democracia. A África do Sul e o Brasil não só têm profundas divisões étnicas, como também estão entre os países mais desiguais do mundo. A ausência de grandes diferenças entre ricos e pobres é uma pré-condição para a sustentabilidade da democracia; mas as experiências brasileira e sul-africana pintam um quadro mais sutil - que é animador para os defensores da democracia.
Há boas notícias também noutros lugares. No fim de 2024, quando o presidente sul-coreano Yoon Suk-yeol declarou lei marcial as forças democráticas e o Parlamento reagiram. Em poucas semanas, Yoon sofreu impeachment e foi destituído do cargo.
Algumas das democracias mais bem-sucedidas fora da Europa são pequenos países que permanecem fora do radar nas discussões sobre o declínio democrático. Taiwan, Uruguai, Costa Rica, Ilhas Maurício e Botsuana recebem notas altas no ranking de democracia da Economist Intelligence Unit (os dois últimos são particularmente notáveis como exemplos de democracias duradouras na África).
Talvez nossas esperanças de alimentar as chamas da democracia repousem sobre esses casos improváveis. Como tudo na vida, a democracia precisa de modelos a seguir. Embora os estudos de caso de costume já não sejam relevantes, ainda existem lugares onde os defensores da democracia podem achar inspiração.
Em meio à deriva da democracia.
Uma severa deriva democrática assola o mundo, o que coloca sérios questionamentos sobre a sustentação e permanência dos regimes democráticos, mesmo os mais consolidados. Se há décadas a questão democrática era fator essencial de legitimação do nexo entre liberdade, expansão dos direitos e desenvolvimento econômico, nos dias que correm tal legitimação parece não ser capaz de se sustentar como antes.
É um momento de claro sofrimento para a cultura política democrática. Simultaneamente avoluma-se a sensação de que o que dava sustentação à própria ideia de Ocidente – entendido como um valor universal produzido pela hegemonia democrática em contexto de avanço econômico – começa perigosamente a perder sua energia histórica. O que passou a acontecer depois do retorno ao poder de Donald Trump nos EUA espanta o mundo por se afastar intencionalmente dos valores que sustentavam a legitimação histórica da mais longeva democracia do Ocidente.
Sob Trump, os EUA abandonam a função hegemônica que desempenharam na maior parte do século XX. Por outro lado, seu maior contendor, a China, instalou-se no cenário geopolítico mundial por meio de uma agressiva estratégia econômica, ultrapassando definitivamente as anteriores visões territorialistas. Expressão de uma autocracia política até o momento irremovível, a China se apresenta, cultural e politicamente, como um polo questionador do nexo que, até agora, deu sustentação às democracias ocidentais.
Uma mirada histórica, mesmo que superficial, indica uma alteração substancial no panorama mundial. Desde o final da década de 1980, a democracia era um fim a ser almejado e conquistado – um valor universal, como se dizia à época. Nos dias que correm, a extrema direita foi capaz de hegemonizar o centro do espaço político, reduzindo a democracia a um simples “meio” de convivência. No discurso da extrema direita, caso os Estados democráticos permaneçam acionando cada vez mais mecanismos regulatórios, globais ou mesmo nacionais, visando civilizar a vida humana sobre o planeta, a democracia simplesmente pode ser descartada, com maior ou menor violência, com maior ou menor velocidade. É a isso que, nos textos dos mais conceituados cientistas políticos, se qualifica como processos de “erosão democrática”.
O Brasil sempre buscou um lugar no mundo conectando-se ao projeto moderno de transformações que o Ocidente assumiu a cada momento da História, como foi nossa adesão/tradução ao liberalismo, ao industrialismo e, por último, ao americanismo. A adesão a esses “modelos” nunca foi assumida como importação passiva ou mimetismo, importando disputas políticas reais entre as elites que buscavam impor sua direção à reestruturação das estratégias de desenvolvimento do país.
Está claro que as elites políticas brasileiras perderam o chão. A sensação de deriva da hora presente assume traços dramáticos como os que vemos nos embates que a atual polarização política carrega consigo e que acabou escalando com as iniciativas agressivas de Trump contra a democracia brasileira. Mas o problema é mais grave e enseja riscos significativos, especialmente pelo fato de que nem os EUA de Trump nem a China de Xi Jimping deixam de expressar uma sedutora adesão a um redivivo nacionalismo que há poucos anos era visto como uma opção anacrônica, desprovida de horizonte histórico.
Tudo parece estar suspenso no ar porque nossas elites políticas não possuem ou não se associam mais a nenhum projeto que esteja positivamente vinculado ao que há de mais avançado no mundo. O projeto globalista de FHC foi exitoso em seu tempo, mas ficou para trás em função da mudança do cenário mundial, especialmente em virtude da emergência da China ao impactar os termos da globalização em curso no final do século XX. Lula e o PT combateram externa e internamente esse projeto, deslocando-se para a contraposição entre o Sul “pobre” e o Norte “rico”. Estabeleceu essa clivagem sustentando uma abordagem puramente mercantil das relações internacionais em meio a uma época que, como nunca antes, demanda unificação do gênero humano e a paz. Como é sabido, essa estratégia redundou nos BRICS que, a despeito de êxitos parciais, articula países que buscam estruturar sua sustentação autônoma, mas que, pontificados por Rússia e China – duas autocracias modelares – não têm capacidade de formular uma visão cosmopolita que contemple o Brasil como civiltà democrática.
Diante desse cenário mundial, resta-nos poucas alternativas. Uma política de defesa da democracia, com postura e tom equilibrados, supõe tanto a exclusão de alinhamentos automáticos quanto protagonismos açodados. Com autonomia, a Nação demanda das nossas elites políticas um novo projeto articulado em três eixos fundamentais: uma
democracia política, social e culturalmente legitimada, uma economia expansiva de mercado, pensada como expressão de um “capitalismo popular” de médios e pequenos empreendedores, e um cosmopolitismo progressista sinalizador do nosso lugar no mundo, ou seja, de um povo inventivo e aberto a todo gênero humano.
O filosofo italiano Marcello Mustè, discutindo a relação entre cosmopolitismo e nacionalismo, num artigo publicado recentemente na revista Política Democrática n. 57 afirmou que há uma tarefa preliminar para os que buscam compreender e transformar o mundo em que vivemos. Para Mustè, é preciso “elaborar uma ‘leitura’ da ordem mundial, ‘traduzi-la’ na linguagem própria da sua nação e contribuir ativamente para a formação de uma ordem internacional de qualidade superior”. A proposição não se reduz ao nacional uma vez que nessa perspectiva, o nacionalismo não é mais do que “uma política que se funda unicamente na especificidade de uma situação nacional”.
No interior do argumento que estamos aqui desenvolvendo, mobilizar e instrumentalizar o nacionalismo (“o Brasil é dos brasileiros”), almejando êxito eleitoral futuro, por mais justo que seja como peça de resistência a Trump, é a evidência de que não se compreendeu que a questão democrática é o centro da luta política global, não apenas no Brasil.
Ganhar a próxima eleição presidencial somente terá função histórica de resistência, elevando o Brasil como protagonista de uma nova ordem global, com a afirmação da centralidade da questão democrática. Encerrar-se num discurso de cunho nacionalista não nos livrará do problema e apenas ensejará uma efêmera ilusão, entorpecida pelos números que possivelmente sairão das urnas – na melhor das hipóteses.
É um momento de claro sofrimento para a cultura política democrática. Simultaneamente avoluma-se a sensação de que o que dava sustentação à própria ideia de Ocidente – entendido como um valor universal produzido pela hegemonia democrática em contexto de avanço econômico – começa perigosamente a perder sua energia histórica. O que passou a acontecer depois do retorno ao poder de Donald Trump nos EUA espanta o mundo por se afastar intencionalmente dos valores que sustentavam a legitimação histórica da mais longeva democracia do Ocidente.
Sob Trump, os EUA abandonam a função hegemônica que desempenharam na maior parte do século XX. Por outro lado, seu maior contendor, a China, instalou-se no cenário geopolítico mundial por meio de uma agressiva estratégia econômica, ultrapassando definitivamente as anteriores visões territorialistas. Expressão de uma autocracia política até o momento irremovível, a China se apresenta, cultural e politicamente, como um polo questionador do nexo que, até agora, deu sustentação às democracias ocidentais.
Uma mirada histórica, mesmo que superficial, indica uma alteração substancial no panorama mundial. Desde o final da década de 1980, a democracia era um fim a ser almejado e conquistado – um valor universal, como se dizia à época. Nos dias que correm, a extrema direita foi capaz de hegemonizar o centro do espaço político, reduzindo a democracia a um simples “meio” de convivência. No discurso da extrema direita, caso os Estados democráticos permaneçam acionando cada vez mais mecanismos regulatórios, globais ou mesmo nacionais, visando civilizar a vida humana sobre o planeta, a democracia simplesmente pode ser descartada, com maior ou menor violência, com maior ou menor velocidade. É a isso que, nos textos dos mais conceituados cientistas políticos, se qualifica como processos de “erosão democrática”.
O Brasil sempre buscou um lugar no mundo conectando-se ao projeto moderno de transformações que o Ocidente assumiu a cada momento da História, como foi nossa adesão/tradução ao liberalismo, ao industrialismo e, por último, ao americanismo. A adesão a esses “modelos” nunca foi assumida como importação passiva ou mimetismo, importando disputas políticas reais entre as elites que buscavam impor sua direção à reestruturação das estratégias de desenvolvimento do país.
Está claro que as elites políticas brasileiras perderam o chão. A sensação de deriva da hora presente assume traços dramáticos como os que vemos nos embates que a atual polarização política carrega consigo e que acabou escalando com as iniciativas agressivas de Trump contra a democracia brasileira. Mas o problema é mais grave e enseja riscos significativos, especialmente pelo fato de que nem os EUA de Trump nem a China de Xi Jimping deixam de expressar uma sedutora adesão a um redivivo nacionalismo que há poucos anos era visto como uma opção anacrônica, desprovida de horizonte histórico.
Tudo parece estar suspenso no ar porque nossas elites políticas não possuem ou não se associam mais a nenhum projeto que esteja positivamente vinculado ao que há de mais avançado no mundo. O projeto globalista de FHC foi exitoso em seu tempo, mas ficou para trás em função da mudança do cenário mundial, especialmente em virtude da emergência da China ao impactar os termos da globalização em curso no final do século XX. Lula e o PT combateram externa e internamente esse projeto, deslocando-se para a contraposição entre o Sul “pobre” e o Norte “rico”. Estabeleceu essa clivagem sustentando uma abordagem puramente mercantil das relações internacionais em meio a uma época que, como nunca antes, demanda unificação do gênero humano e a paz. Como é sabido, essa estratégia redundou nos BRICS que, a despeito de êxitos parciais, articula países que buscam estruturar sua sustentação autônoma, mas que, pontificados por Rússia e China – duas autocracias modelares – não têm capacidade de formular uma visão cosmopolita que contemple o Brasil como civiltà democrática.
Diante desse cenário mundial, resta-nos poucas alternativas. Uma política de defesa da democracia, com postura e tom equilibrados, supõe tanto a exclusão de alinhamentos automáticos quanto protagonismos açodados. Com autonomia, a Nação demanda das nossas elites políticas um novo projeto articulado em três eixos fundamentais: uma
democracia política, social e culturalmente legitimada, uma economia expansiva de mercado, pensada como expressão de um “capitalismo popular” de médios e pequenos empreendedores, e um cosmopolitismo progressista sinalizador do nosso lugar no mundo, ou seja, de um povo inventivo e aberto a todo gênero humano.
O filosofo italiano Marcello Mustè, discutindo a relação entre cosmopolitismo e nacionalismo, num artigo publicado recentemente na revista Política Democrática n. 57 afirmou que há uma tarefa preliminar para os que buscam compreender e transformar o mundo em que vivemos. Para Mustè, é preciso “elaborar uma ‘leitura’ da ordem mundial, ‘traduzi-la’ na linguagem própria da sua nação e contribuir ativamente para a formação de uma ordem internacional de qualidade superior”. A proposição não se reduz ao nacional uma vez que nessa perspectiva, o nacionalismo não é mais do que “uma política que se funda unicamente na especificidade de uma situação nacional”.
No interior do argumento que estamos aqui desenvolvendo, mobilizar e instrumentalizar o nacionalismo (“o Brasil é dos brasileiros”), almejando êxito eleitoral futuro, por mais justo que seja como peça de resistência a Trump, é a evidência de que não se compreendeu que a questão democrática é o centro da luta política global, não apenas no Brasil.
Ganhar a próxima eleição presidencial somente terá função histórica de resistência, elevando o Brasil como protagonista de uma nova ordem global, com a afirmação da centralidade da questão democrática. Encerrar-se num discurso de cunho nacionalista não nos livrará do problema e apenas ensejará uma efêmera ilusão, entorpecida pelos números que possivelmente sairão das urnas – na melhor das hipóteses.
É sempre melhor compreender
Julgar é mais divertido do que querer perceber. Julgar provoca, faz rir, estimula a conversa.
É por causa da facilidade de julgar que compreender é menos popular. Perante cada acontecimento, é sempre mais fácil (e mais rápido, repito) ser-se a favor ou contra ou indiferente.
Querer compreender é lento e dá pouco jeito: não se pode interrogar os participantes, não há tempo para ir à procura de uma bibliografia, é difícil arranjar uma neutralidade, por muito provisória e artificial que seja.
Para querer compreender, corre-se sempre o perigo de perdoar um bocadinho, de complicar as coisas e, sobretudo, de ficar com uma opinião que não é carne nem peixe.
As perguntas básicas estão mais do que esquecidas: porque é que fizeram aquilo? O que é que procuravam conseguir? Para quê? Com que motivação? Com que antecedentes?
Muito ganhamos em olhar para os tribunais: os julgamentos são a criação humana mais aperfeiçoada ao longo dos séculos, adaptando-se a todas as culturas e épocas, e abarcando todo o comportamento e todas as condicionantes humanas.
Não são apenas o jornalismo e a investigação académica que nos devem inspirar, e que devemos tentar imitar à nossa pequena escala individual: é o trabalho dos juízes.
Os maiores crimes não deixam de ser crimes quando se compreende o que aconteceu. Compreender não é perdoar. E, acima de tudo, a curiosidade de compreender nada tem a ver com a vontade de avaliar os méritos ou os danos do que se pretende compreender.
Mas claro – se o que queremos fazer é avaliações sumárias e julgamentos instantâneos, o maior empecilho é tirar uns minutos para tentar perceber porque é que aquilo aconteceu.
É por causa da facilidade de julgar que compreender é menos popular. Perante cada acontecimento, é sempre mais fácil (e mais rápido, repito) ser-se a favor ou contra ou indiferente.
Querer compreender é lento e dá pouco jeito: não se pode interrogar os participantes, não há tempo para ir à procura de uma bibliografia, é difícil arranjar uma neutralidade, por muito provisória e artificial que seja.
Para querer compreender, corre-se sempre o perigo de perdoar um bocadinho, de complicar as coisas e, sobretudo, de ficar com uma opinião que não é carne nem peixe.
As perguntas básicas estão mais do que esquecidas: porque é que fizeram aquilo? O que é que procuravam conseguir? Para quê? Com que motivação? Com que antecedentes?
Muito ganhamos em olhar para os tribunais: os julgamentos são a criação humana mais aperfeiçoada ao longo dos séculos, adaptando-se a todas as culturas e épocas, e abarcando todo o comportamento e todas as condicionantes humanas.
Não são apenas o jornalismo e a investigação académica que nos devem inspirar, e que devemos tentar imitar à nossa pequena escala individual: é o trabalho dos juízes.
Os maiores crimes não deixam de ser crimes quando se compreende o que aconteceu. Compreender não é perdoar. E, acima de tudo, a curiosidade de compreender nada tem a ver com a vontade de avaliar os méritos ou os danos do que se pretende compreender.
Mas claro – se o que queremos fazer é avaliações sumárias e julgamentos instantâneos, o maior empecilho é tirar uns minutos para tentar perceber porque é que aquilo aconteceu.
Digamos o que dissermos, para satisfazer o tu-cá-tu-lá do mata-e-esfola dos cem casos por mês, é sempre melhor esquecer essa precipitação – e tentar compreender.
Tarcísio e o Brasil condenado a andar em círculos
Em todos os países atualmente governados de forma autocrática ou ditatorial, a destruição da democracia começou com ataques ao Judiciário. Foi assim na Hungria, bem como na Turquia e na Venezuela. Hoje se assiste, praticamente ao vivo, nos Estados Unidos.
A tomada de poder por homens como Viktor Orbán, Recep Tayyip Erdogan, Nicolás Maduro e Donald Trump só foi possível porque atacaram juízes, ignoraram sentenças e, por fim, lotaram os tribunais com aliados. O Judiciário (assim como todo o aparato estatal) foi esvaziado e alinhado, e a separação de poderes – base fundamental da democracia – praticamente extinta.
Caso o governo do Brasil volte às mãos da extrema direita – seja sob Tarcísio de Freitas ou um membro do clã Bolsonaro –, o país corre o mesmo risco. O presságio ficou evidente após as manifestações bolsonaristas do domingo, dia 7. Os protestos deixaram claro, por um lado, que o nome Bolsonaro ainda possui enorme força de mobilização, e o pensamento primitivo-vulgar continua amplamente disseminado, sobretudo entre os mais abastados. Por outro lado, ficou evidente que o Judiciário é o inimigo número um da extrema direita. Ele é difamado como politizado e parcial, até mesmo como ditatorial. Isso só pode significar, em última instância, que a extrema direita pretende acabar com o Judiciário como um poder independente.
É ainda mais alarmante que o governador de São Paulo agora bata nessa mesma tecla. Naquela manifestação, ele mostrou que não é um tecnocrata moderado da direita conservadora, mas um fanático – como a atuação agressiva da Polícia Militar de São Paulo sob sua gestão já deixava transparecer.
O candidato mais provável da oposição brasileira nas eleições de 2026 deslegitimou o Supremo Tribunal Federal diante de dezenas de milhares de apoiadores e deixou claro que não aceita o equilíbrio entre os poderes. Ele incendiou o ânimo no campo da extrema direita e polarizou ainda mais o país.
Perigo para a democracia
Pouco importa se fez isso por convicção profunda ou "apenas" por cálculo oportunista para garantir o apoio de Bolsonaro e de seus seguidores fanáticos. Seu vocabulário menos ordinário e sua postura de homem humilde de classe média já não podem mais disfarçar o perigo que ele representa para a democracia brasileira.
O fato é que Tarcísio de Freitas não reconhece como legítimo o processo contra Jair Bolsonaro por tentativa de golpe, alegando que o julgamento teria se baseado em depoimentos manipulados. Para chegar a tal afirmação, é preciso um grau enorme de ignorância. O processo seguiu todas as regras de um julgamento regular e deu ampla oportunidade à defesa de apresentar sua versão dos fatos.
Ficou claro, após a análise das provas e a oitiva de todas as testemunhas, que os planos de Bolsonaro para tomar o poder não eram meras cogitações, mas propostas concretas que foram discutidas, elaboradas e registradas por escrito. O próprio Bolsonaro admitiu isso. Ele pessoalmente apresentou suas intenções aos comandantes do Exército, da Aeronáutica e da Marinha – como confirmaram em juízo –, e foi graças à recusa categórica dos dois primeiros em embarcar nessa aventura que os planos não avançaram.
O processo, portanto, baseou-se em muito mais do que apenas no depoimento do ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, como afirma Tarcísio de Freitas. Mas, ao fazer essa alegação, o governador segue uma típica estratégia do bolsonarismo: mentir, omitir e se colocar como vítima quando, na realidade, é o autor.
A postura de Tarcísio é ainda mais grave porque não ataca apenas o Supremo Tribunal Federal, mas contribui para deslegitimar todo o já disfuncional sistema de Justiça brasileiro. Numa sociedade em que quase ninguém assume responsabilidade por seus atos e todos colocam o interesse próprio acima do coletivo, o bolsonarismo envia o sinal fatal de que sentenças não valem nada e podem ser revertidas.
Poucos discordariam da frase de que a impunidade no Brasil tem proporções epidêmicas. Condenados a longas penas de prisão estão pouco tempo depois em liberdade, sobretudo políticos. Cria-se a impressão fatal de que lei e ordem nada valem e de que tudo é permitido. Certo e errado tornam-se negociáveis.
A preparação de uma anistia geral para os golpistas, como agora promovem Tarcísio de Freitas e o movimento bolsonarista antes mesmo de haver sentença, tem, evidentemente, um precedente. A anistia geral após a ditadura militar. Os crimes da ditadura não foram investigados, muito menos punidos judicialmente. Não houve acerto de contas, e o pensamento totalitário-militarista sobreviveu e mantém até hoje uma continuidade que ninguém encarna melhor do que o clã Bolsonaro e seus áulicos.
Se houver uma anistia geral, o Brasil continuará andando nesse círculo vicioso e repetirá mais uma vez sua história. Infelizmente, como tantas vezes, o Brasil parece condenado a andar sempre em círculos. Cada avanço, cada tentativa de escapar desse destino, é revertido pelas forças do passado.
A tomada de poder por homens como Viktor Orbán, Recep Tayyip Erdogan, Nicolás Maduro e Donald Trump só foi possível porque atacaram juízes, ignoraram sentenças e, por fim, lotaram os tribunais com aliados. O Judiciário (assim como todo o aparato estatal) foi esvaziado e alinhado, e a separação de poderes – base fundamental da democracia – praticamente extinta.
Caso o governo do Brasil volte às mãos da extrema direita – seja sob Tarcísio de Freitas ou um membro do clã Bolsonaro –, o país corre o mesmo risco. O presságio ficou evidente após as manifestações bolsonaristas do domingo, dia 7. Os protestos deixaram claro, por um lado, que o nome Bolsonaro ainda possui enorme força de mobilização, e o pensamento primitivo-vulgar continua amplamente disseminado, sobretudo entre os mais abastados. Por outro lado, ficou evidente que o Judiciário é o inimigo número um da extrema direita. Ele é difamado como politizado e parcial, até mesmo como ditatorial. Isso só pode significar, em última instância, que a extrema direita pretende acabar com o Judiciário como um poder independente.
É ainda mais alarmante que o governador de São Paulo agora bata nessa mesma tecla. Naquela manifestação, ele mostrou que não é um tecnocrata moderado da direita conservadora, mas um fanático – como a atuação agressiva da Polícia Militar de São Paulo sob sua gestão já deixava transparecer.
O candidato mais provável da oposição brasileira nas eleições de 2026 deslegitimou o Supremo Tribunal Federal diante de dezenas de milhares de apoiadores e deixou claro que não aceita o equilíbrio entre os poderes. Ele incendiou o ânimo no campo da extrema direita e polarizou ainda mais o país.
Perigo para a democracia
Pouco importa se fez isso por convicção profunda ou "apenas" por cálculo oportunista para garantir o apoio de Bolsonaro e de seus seguidores fanáticos. Seu vocabulário menos ordinário e sua postura de homem humilde de classe média já não podem mais disfarçar o perigo que ele representa para a democracia brasileira.
O fato é que Tarcísio de Freitas não reconhece como legítimo o processo contra Jair Bolsonaro por tentativa de golpe, alegando que o julgamento teria se baseado em depoimentos manipulados. Para chegar a tal afirmação, é preciso um grau enorme de ignorância. O processo seguiu todas as regras de um julgamento regular e deu ampla oportunidade à defesa de apresentar sua versão dos fatos.
Ficou claro, após a análise das provas e a oitiva de todas as testemunhas, que os planos de Bolsonaro para tomar o poder não eram meras cogitações, mas propostas concretas que foram discutidas, elaboradas e registradas por escrito. O próprio Bolsonaro admitiu isso. Ele pessoalmente apresentou suas intenções aos comandantes do Exército, da Aeronáutica e da Marinha – como confirmaram em juízo –, e foi graças à recusa categórica dos dois primeiros em embarcar nessa aventura que os planos não avançaram.
O processo, portanto, baseou-se em muito mais do que apenas no depoimento do ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, como afirma Tarcísio de Freitas. Mas, ao fazer essa alegação, o governador segue uma típica estratégia do bolsonarismo: mentir, omitir e se colocar como vítima quando, na realidade, é o autor.
A postura de Tarcísio é ainda mais grave porque não ataca apenas o Supremo Tribunal Federal, mas contribui para deslegitimar todo o já disfuncional sistema de Justiça brasileiro. Numa sociedade em que quase ninguém assume responsabilidade por seus atos e todos colocam o interesse próprio acima do coletivo, o bolsonarismo envia o sinal fatal de que sentenças não valem nada e podem ser revertidas.
Poucos discordariam da frase de que a impunidade no Brasil tem proporções epidêmicas. Condenados a longas penas de prisão estão pouco tempo depois em liberdade, sobretudo políticos. Cria-se a impressão fatal de que lei e ordem nada valem e de que tudo é permitido. Certo e errado tornam-se negociáveis.
A preparação de uma anistia geral para os golpistas, como agora promovem Tarcísio de Freitas e o movimento bolsonarista antes mesmo de haver sentença, tem, evidentemente, um precedente. A anistia geral após a ditadura militar. Os crimes da ditadura não foram investigados, muito menos punidos judicialmente. Não houve acerto de contas, e o pensamento totalitário-militarista sobreviveu e mantém até hoje uma continuidade que ninguém encarna melhor do que o clã Bolsonaro e seus áulicos.
Se houver uma anistia geral, o Brasil continuará andando nesse círculo vicioso e repetirá mais uma vez sua história. Infelizmente, como tantas vezes, o Brasil parece condenado a andar sempre em círculos. Cada avanço, cada tentativa de escapar desse destino, é revertido pelas forças do passado.
O pesadelo ao chegar aos EUA
“Olha, nós dois sabemos por que você está aqui”, disse o agente da CBP (Customs and Border Protection). Quando eu disse que não sabia, ele pareceu surpreso. “É pelo que você escreveu online sobre os protestos na Universidade Columbia”, disse ele. Eles estavam me esperando quando desembarquei do avião em Los Angeles.
O oficial Martinez me interceptou na fila da Alfândega e me levou para uma sala de interrogatório nos fundos, onde pegou meu celular e exigiu minha senha. Quando recusei, me disse que voltaria imediatamente para casa se não cooperasse. Eu deveria ter aceitado esse acordo e optado pela deportação rápida. Mas cedi, pelo cansaço, após um voo de 14 horas.
Esses dois parágrafos acima não são de um relato meu. Com o país grudado no julgamento histórico da tentativa de golpe de Estado, após Fux ter atentado contra ele mesmo e contra a verdade, contorcendo-se para justificar o injustificável, resolvi hoje ceder este espaço ao australiano que viveu um pesadelo nos EUA de Trump.
O depoimento de Alistair Kitchen foi publicado na íntegra pela revista New Yorker. Ele se identifica como “um escritor mediano” com um blog que “praticamente ninguém, exceto, aparentemente, o governo dos EUA, parecia ler”. No mestrado em Columbia, publicou relatos sobre os protestos estudantis pela paz. Em Gaza e outras regiões.
Segue um resumo, mínimo e adaptado, do drama que Kitchen viveu. Antes de sair da Austrália, tomou precauções. Hoje percebe como foi ingênuo. Já havia um dossiê contra ele.
“Optei por não levar um celular descartável – medida recomendada por juristas na imprensa –, acreditando que isso provocaria suspeita, e simplesmente decidi dar uma limpeza superficial no meu telefone e nas minhas redes sociais.
“Achava que teria de ser extremamente azarado para ser revistado. Por ter sido estudante em Columbia, talvez um oficial pedisse para ver meu telefone. Se o examinasse, encontraria a vida digital confusa e pessoal de um homem de 33 anos perigosamente solteiro. Mas não encontraria fotos de protestos, retiradas na semana anterior ao voo.
“Martinez perguntou minha opinião sobre Israel, sobre o Hamas. Perguntou se eu tinha amigos judeus. Perguntou minhas visões sobre uma solução de um Estado ou de dois Estados. Perguntou quem era o culpado: Israel ou Palestina. Perguntou o que Israel deveria fazer de diferente.
“Me pediu para citar nomes de estudantes envolvidos nos protestos. Perguntou quem me passava ‘as informações sobre os protestos. Pediu que eu entregasse as identidades das pessoas com quem eu ‘trabalhava’. Infelizmente para o oficial Martinez, eu não trabalhava com ninguém. Era um jornalista estudantil independente.
“Eu estava totalmente despreparado para o que aconteceu na sala de interrogatório. Embora eu não soubesse na hora, eu estava participando de uma entrevista em que nunca seria aprovado.
“Quando ele ficou sem perguntas sobre Israel, desapareceu na sala dos fundos para baixar o conteúdo do meu celular. Ele demorou bastante. Imaginei-o a vasculhar todos os detalhes sórdidos da minha vida. Embora eu tivesse apagado os protestos, mantive conteúdo pessoal – Martinez via o embaraçoso, o vergonhoso, o sexual.
“Martinez disse que eu precisava desbloquear a pasta Oculta do meu álbum de fotos. (...) Senti que não tinha escolha. Eu tinha, claro: a escolha de não cooperar e ser deportado. Mas minha coragem já tinha ido embora. Eu estava com medo desse homem e do poder que ele representava. Então, desbloqueei a pasta e assisti enquanto ele percorria todo o meu conteúdo mais pessoal. Nós olhamos juntos uma foto do meu pênis.
“Eu fiquei sentado, tentando entender por que me senti tão violado. Tenho orgulho da minha vida, de quem eu sou. Isso não pareceu ajudar. Percebi então que não restava privacidade alguma para eles invadirem.
“Martinez desapareceu novamente na outra sala. Quando finalmente voltou, ele se aproximou saltitante, animado como uma criança com um pirulito. Disse que haviam encontrado provas de uso de drogas no meu telefone. Perguntou se eu tinha consciência de que não havia reconhecido um histórico de uso de drogas no meu formulário de entrada.
“Na zona cinzenta entre o portão de desembarque e o controle de passaporte, você está além do alcance da Constituição dos EUA. Tem menos proteções do que um criminoso a poucos metros dali, dentro da fronteira. Na sala de interrogatório, eu não tinha caído ao nível de um apátrida, mas já estava abaixo do criminoso.
“Se eu não estivesse exausto do voo longo e um interrogatório prolongado, e se não estivesse estressado e assustado, teria me lembrado de que meu telefone não tinha provas claras de uso de drogas. Uma versão melhor de mim teria desmascarado esse blefe. Mas eu não conseguia dar conta de cada uma das mais de quatro mil fotos no meu celular. Imaginei imagens e mensagens que não existiam.
“Então admiti que já tinha usado drogas no passado — em outros países, bem como nos EUA, onde comprei balas de THC em Nova York. A maconha é legal em Nova York, mas não é legal em nível federal e, portanto, parece que, aos olhos dos oficiais, eu havia violado a lei ao comprar maconha legal em Nova York. Martinez, efervescente de empolgação, disse que eu seria colocado no próximo voo de volta para a Austrália.
“Martinez e outro agente me levaram para os fundos, me empurraram contra a parede e me revistaram. Martinez se certificou de que eu não carregava nenhuma arma entre o pênis e o escroto. Tiraram os cadarços dos meus sapatos e o cordão da minha calça de elástico, para que eu não pudesse me enforcar. Eu não sabia então se sairia dali em uma hora, um dia ou um mês.
“Quando fui levado para a sala, encontrei uma jovem em lágrimas, implorando ao guarda por informações. Ele disse que não tinha nada a lhe dar e que nenhuma informação seria fornecida. ‘Aquela mulher’, disse ele, apontando para um monte de cobertores no canto, ‘está aqui há quatro dias.’
“Comecei a entrar em espiral. Havia comida – basicamente miojo – e uma máquina de vendas com M&M’s e Coca-Cola que poderíamos usar ‘se tivéssemos trazido dinheiro’, como um guarda me disse. A sala era tão fria que todos estávamos enrolados em cobertores. As lâmpadas zumbiam e o ar-condicionado roncava ao longo do dia, ou da noite. O horror era que ninguém sabia onde estávamos, e não tínhamos como avisar. Estávamos isolados uns dos outros e também do mundo.
“Eventualmente, fui autorizado a falar com o consulado e fui colocado em um avião. Só me permitiram entrar quando acabou o embarque. O chefe da escolta entregou um envelope com meu passaporte e meu telefone ao comissário-chefe de bordo. A companhia aérea Qantas reteve meu telefone e passaporte até o pouso em Melbourne”.
O depoimento do australiano é muito mais longo. Um pesadelo interminável e pungente. Me deu arrepios. Eu já decidira não ir aos EUA no governo Trump. Não apenas por ter horror às decisões arbitrárias contra os direitos humanos. Não irei porque nem me deixariam entrar. Não irei porque seria deportada pela democracia americana. Já pensou sofrer tortura psicológica na Alfândega de Trump, o campeão da liberdade de expressão?
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