sexta-feira, 12 de setembro de 2025

O pesadelo ao chegar aos EUA

“Olha, nós dois sabemos por que você está aqui”, disse o agente da CBP (Customs and Border Protection). Quando eu disse que não sabia, ele pareceu surpreso. “É pelo que você escreveu online sobre os protestos na Universidade Columbia”, disse ele. Eles estavam me esperando quando desembarquei do avião em Los Angeles.

O oficial Martinez me interceptou na fila da Alfândega e me levou para uma sala de interrogatório nos fundos, onde pegou meu celular e exigiu minha senha. Quando recusei, me disse que voltaria imediatamente para casa se não cooperasse. Eu deveria ter aceitado esse acordo e optado pela deportação rápida. Mas cedi, pelo cansaço, após um voo de 14 horas.

Esses dois parágrafos acima não são de um relato meu. Com o país grudado no julgamento histórico da tentativa de golpe de Estado, após Fux ter atentado contra ele mesmo e contra a verdade, contorcendo-se para justificar o injustificável, resolvi hoje ceder este espaço ao australiano que viveu um pesadelo nos EUA de Trump.

O depoimento de Alistair Kitchen foi publicado na íntegra pela revista New Yorker. Ele se identifica como “um escritor mediano” com um blog que “praticamente ninguém, exceto, aparentemente, o governo dos EUA, parecia ler”. No mestrado em Columbia, publicou relatos sobre os protestos estudantis pela paz. Em Gaza e outras regiões.

Segue um resumo, mínimo e adaptado, do drama que Kitchen viveu. Antes de sair da Austrália, tomou precauções. Hoje percebe como foi ingênuo. Já havia um dossiê contra ele.

“Optei por não levar um celular descartável – medida recomendada por juristas na imprensa –, acreditando que isso provocaria suspeita, e simplesmente decidi dar uma limpeza superficial no meu telefone e nas minhas redes sociais.

“Achava que teria de ser extremamente azarado para ser revistado. Por ter sido estudante em Columbia, talvez um oficial pedisse para ver meu telefone. Se o examinasse, encontraria a vida digital confusa e pessoal de um homem de 33 anos perigosamente solteiro. Mas não encontraria fotos de protestos, retiradas na semana anterior ao voo.

“Martinez perguntou minha opinião sobre Israel, sobre o Hamas. Perguntou se eu tinha amigos judeus. Perguntou minhas visões sobre uma solução de um Estado ou de dois Estados. Perguntou quem era o culpado: Israel ou Palestina. Perguntou o que Israel deveria fazer de diferente.

“Me pediu para citar nomes de estudantes envolvidos nos protestos. Perguntou quem me passava ‘as informações sobre os protestos. Pediu que eu entregasse as identidades das pessoas com quem eu ‘trabalhava’. Infelizmente para o oficial Martinez, eu não trabalhava com ninguém. Era um jornalista estudantil independente.

“Eu estava totalmente despreparado para o que aconteceu na sala de interrogatório. Embora eu não soubesse na hora, eu estava participando de uma entrevista em que nunca seria aprovado.

“Quando ele ficou sem perguntas sobre Israel, desapareceu na sala dos fundos para baixar o conteúdo do meu celular. Ele demorou bastante. Imaginei-o a vasculhar todos os detalhes sórdidos da minha vida. Embora eu tivesse apagado os protestos, mantive conteúdo pessoal – Martinez via o embaraçoso, o vergonhoso, o sexual.

“Martinez disse que eu precisava desbloquear a pasta Oculta do meu álbum de fotos. (...) Senti que não tinha escolha. Eu tinha, claro: a escolha de não cooperar e ser deportado. Mas minha coragem já tinha ido embora. Eu estava com medo desse homem e do poder que ele representava. Então, desbloqueei a pasta e assisti enquanto ele percorria todo o meu conteúdo mais pessoal. Nós olhamos juntos uma foto do meu pênis.

“Eu fiquei sentado, tentando entender por que me senti tão violado. Tenho orgulho da minha vida, de quem eu sou. Isso não pareceu ajudar. Percebi então que não restava privacidade alguma para eles invadirem.

“Martinez desapareceu novamente na outra sala. Quando finalmente voltou, ele se aproximou saltitante, animado como uma criança com um pirulito. Disse que haviam encontrado provas de uso de drogas no meu telefone. Perguntou se eu tinha consciência de que não havia reconhecido um histórico de uso de drogas no meu formulário de entrada.

“Na zona cinzenta entre o portão de desembarque e o controle de passaporte, você está além do alcance da Constituição dos EUA. Tem menos proteções do que um criminoso a poucos metros dali, dentro da fronteira. Na sala de interrogatório, eu não tinha caído ao nível de um apátrida, mas já estava abaixo do criminoso.

“Se eu não estivesse exausto do voo longo e um interrogatório prolongado, e se não estivesse estressado e assustado, teria me lembrado de que meu telefone não tinha provas claras de uso de drogas. Uma versão melhor de mim teria desmascarado esse blefe. Mas eu não conseguia dar conta de cada uma das mais de quatro mil fotos no meu celular. Imaginei imagens e mensagens que não existiam.

“Então admiti que já tinha usado drogas no passado — em outros países, bem como nos EUA, onde comprei balas de THC em Nova York. A maconha é legal em Nova York, mas não é legal em nível federal e, portanto, parece que, aos olhos dos oficiais, eu havia violado a lei ao comprar maconha legal em Nova York. Martinez, efervescente de empolgação, disse que eu seria colocado no próximo voo de volta para a Austrália.

“Martinez e outro agente me levaram para os fundos, me empurraram contra a parede e me revistaram. Martinez se certificou de que eu não carregava nenhuma arma entre o pênis e o escroto. Tiraram os cadarços dos meus sapatos e o cordão da minha calça de elástico, para que eu não pudesse me enforcar. Eu não sabia então se sairia dali em uma hora, um dia ou um mês.

“Quando fui levado para a sala, encontrei uma jovem em lágrimas, implorando ao guarda por informações. Ele disse que não tinha nada a lhe dar e que nenhuma informação seria fornecida. ‘Aquela mulher’, disse ele, apontando para um monte de cobertores no canto, ‘está aqui há quatro dias.’

“Comecei a entrar em espiral. Havia comida – basicamente miojo – e uma máquina de vendas com M&M’s e Coca-Cola que poderíamos usar ‘se tivéssemos trazido dinheiro’, como um guarda me disse. A sala era tão fria que todos estávamos enrolados em cobertores. As lâmpadas zumbiam e o ar-condicionado roncava ao longo do dia, ou da noite. O horror era que ninguém sabia onde estávamos, e não tínhamos como avisar. Estávamos isolados uns dos outros e também do mundo.

“Eventualmente, fui autorizado a falar com o consulado e fui colocado em um avião. Só me permitiram entrar quando acabou o embarque. O chefe da escolta entregou um envelope com meu passaporte e meu telefone ao comissário-chefe de bordo. A companhia aérea Qantas reteve meu telefone e passaporte até o pouso em Melbourne”.

O depoimento do australiano é muito mais longo. Um pesadelo interminável e pungente. Me deu arrepios. Eu já decidira não ir aos EUA no governo Trump. Não apenas por ter horror às decisões arbitrárias contra os direitos humanos. Não irei porque nem me deixariam entrar. Não irei porque seria deportada pela democracia americana. Já pensou sofrer tortura psicológica na Alfândega de Trump, o campeão da liberdade de expressão?

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