Você sabia que na Europa, entre 1550 e 1700, 80.000 pessoas foram levadas a julgamento acusadas de bruxaria? Para a metade delas o destino seria a morte, quase sempre na fogueira. Subitamente, todo este fanatismo absurdo sumiu! Tão rapidamente como chegou, desapareceu da "ordem do dia". Por que será?
A pergunta fica ainda mais intrigante diante do fato de que até cerca de 1400 a Igreja Católica simplesmente dizia que bruxas não existiam! É digno de menção, a propósito, um decreto do Papa Alexandre IV, datado de 1258, proibindo execuções em função de "bruxaria".
Esta estranha anomalia, que passou desapercebida aos olhos de larga parcela da humanidade, aguçou a curiosidade de dois pesquisadores norte-americanos, Peter Leeson e Jacob Russ. Ambos observaram, inicialmente, um detalhe: o início da "caça às bruxas" coincidiu com o da denominada Reforma Protestante.
Havia, pois, que se criar um "inimigo", um "perigo social" que induzisse na população um sentimento de pânico, desestimulando adesões a quaisquer novas ideias ou doutrinas. Não por acaso, citam os pesquisadores, a Alemanha, berço da Reforma Protestante, foi palco de 40% de todos os julgamentos por bruxaria. A radical Escócia, e só ela, julgou nada menos que 3.563 pessoas por tal motivo. Enquanto isso, por conta de suas posições firmemente tradicionalistas, a Espanha, Itália, Portugal e Irlanda, somados, contribuíram com apenas 6% do total!
Logo depois, apontam os pesquisadores, toda uma série de tratados de paz colocou um fim a um ciclo de guerras, muitas das quais tinham como pano de fundo precisamente certas questões religiosas - e eis que, então, como que por mágica, a "caça às bruxas" foi varrida para debaixo do tapete da história. Ficou apenas a lembrança, cada vez mais tênue, dos tantos anônimos que enfrentaram a morte na fogueira, elevada à condição de monumento em honra da crueldade humana.
Alguns séculos se passaram. Chegamos ao início de um novo milênio. É quando convido-o a ir à janela e contemplar o mundo dos nossos dias - e a imensa quantidade de "bruxas" que nele tem sido criadas, de forma a satisfazer interesses os mais abjetos. Medite sobre os direitos civis e sociais, duramente conquistados, que temos perdido por conta delas - afinal, há que se sacrificar alguns por certas causas.Pedro Valls Feu Rosa
Norberto Bobbio, em artigo de 1993, sublinhou que a democracia necessita de confiança – “a confiança recíproca entre os cidadãos e dos cidadãos nas instituições”. Essa confiança se esvai em diversos países, por diversificados motivos. Por isso a questão da democracia hoje é “a da reconstituição dos laços de confiança entre governos e governados”, como aponta Fernando Henrique Cardoso em seu recente Crise e Reinvenção da Política no Brasil.
Uma das causas da perda de confiança é a corrupção. Com efeito, a transparência (que traduz a exigência democrática do exercício em público do poder comum, como ensina Bobbio) tem revelado, em função da Lava Jato, uma sistêmica e ilícita associação entre o poder e o dinheiro, e a existência de uma surpreendente corrupção em larga escala. E a corrupção, para evocar a clássica lição de Políbio, é um tenaz agente da decomposição e cupinização das instituições públicas.
A corrupção mina o espírito público, como aponta Raymond Aron em Democracia e Totalitarismo. Afeta a confiança da cidadania, que passa a duvidar de tudo. A corrupção, como pontua Bobbio no artigo acima mencionado, escrito no momento em que a Itália vivia o impacto da Mãos Limpas – que comporta analogia com a Lava Jato –, é um ingrediente da realidade política que leva à dúvida sistemática e à semente da desconfiança.
A semente da desconfiança no âmbito da sociedade brasileira vem se transformando num ovo de serpente. Está comprometendo valores que são inerentes ao bom funcionamento das regras do jogo democrático. Entre eles, a tolerância, que postula a confiança no diálogo da convivência, ou seja, no reconhecimento do Outro como adversário, e não como inimigo. Daí, no cenário político brasileiro, uma convulsão de sectarismos e a exacerbação da divisão da vida política num intolerante e desqualificador nós/eles.
Essa intolerância põe em questão o que os americanos chamam de common ground, ou, como esclarece FHC, “o terreno, público ou privado, no qual o interesse das pessoas se encontram e em nome do qual um país cria um destino nacional”, capaz, realço eu, de enfrentar os desafios da contemporaneidade que transitam pelas realidades da globalização.
A semente da desconfiança vem frutificando na sociedade brasileira. Cabe lembrar que a ética específica da atividade política, que leva ao bom governo, é o empenho no interesse público. É por essa razão, como também ensina Bobbio, que a distinção entre boas e más ações governamentais deve correr paralelamente às ações voltadas para o bem comum, distintas das voltadas para o bem individual. Isso torna inaceitável o “rouba, mas faz”.
Com efeito, tendo como antecedente o mensalão, a repercussão da Lava Jato cria a percepção de que o convergente e positivo paralelismo acima mencionado não vem caracterizando de maneira abrangente a classe política do País. Daí a desconfiança na sua aptidão e integridade para mover e ampliar a capacidade de resposta das instituições políticas para atender às exigências e aspirações da sociedade que, inter alia, transitam pela inclusão social e pela redução da desigualdade.
Essas aspirações estão em sintonia com os valores implícitos da democracia, que postula que a renovação gradual da sociedade, pela atuação das regras do jogo democrático, caminha em direção da solidariedade, inerente à conjugação da liberdade com a fraternidade.
Essa capacidade de resposta tem uma complexidade própria, que deriva das diferenças oriundas da passagem das sociedades modernas (formadas pela civilização capitalista urbano-industrial) para as sociedades contemporâneas. Nestas, como observa FHC, os novos inventos alteraram as formas de sociabilidade e do interagir, as crenças, os valores e os modos de produção. É por essa razão que a capacidade de resposta também passa pelo desafio substantivo de lidar com as limitações externas que se colocam para a latitude das ações do governo e das sociedades nacionais na era da globalização contemporânea que internaliza o mundo na vida dos países.
Em síntese, a base do poder numa democracia de quem define o governo – os eleitores – não está à vontade e desconfia do como se governa da democracia no Brasil. A isso cabe acrescentar uma observação de ordem geral.
A democracia é uma contínua “ideia a realizar”. É ao mesmo tempo uma cultura e uma prática, um aprendizado. Não é, como lembra Octavio Paz, um absoluto, mas um método de convivência civilizada, livre e pacífica. Não assegura, porém, nem a felicidade nem a virtude. Por isso a vida numa democracia pode ensejar uma defasagem entre a imaginação e os sentimentos que motivam o empenho na política – que foi o que caracterizou o esforço coletivo da cidadania no Brasil em prol da redemocratização, no combate ao regime autoritário militar – e os seus resultados subsequentes. É o que provoca a decepção. Esta, como explica Albert O. Hirschman, é um fator de ordem geral que opera no contexto político, pois nem todos se satisfazem em exercer na esfera pública apenas a paixão do possível. É a decepção que abre espaço para o simplificador engano demagógico dos populismos, dos nacionalismos excludentes e xenófobos, das formas caudilhescas de poder carismático, que levam à degeneração da democracia em autocracias eletivas.
Em matéria de política, como na cultura, os signos e os símbolos não contam menos do que as realidades sociais e políticas. Daí a relevância destas considerações para o futuro da nossa democracia, pois a palavra dos candidatos nas eleições deste ano não pode ser a da morna banalidade que não indica rumos e oculta os desafios. O risco – que só a democracia pode conter – é abrir espaço para o governo dos piores, a kakistocracia de que fala Michelangelo Bovero, no qual adquirem preeminência os demagogos do pão e circo, os plutocratas da associação do poder e do dinheiro e os cesarismos de plantão.
O futuro é incerto e no Brasil tudo pode ocorrer. Aqui, o Sargento Garcia é capaz de prender o Zorro; e, como se diz, até o passado é incerto
Carlos Melo
Em 14 de maio de 2017, Maria Silva Nunes, sexagenária, negra e com uma expressão de cansaço permanente no rosto, passou da classe social mais baixa do Brasil para a pobreza extrema. Era o Dia das Mães e sua família, com a qual levava uma vida precária em Heliópolis, a favela mais populosa de São Paulo, ia se reunir para comemorar. Ali estavam suas três filhas: a doente que ainda mora com ela, a que teve o primeiro de três filhos aos 16 anos e até a que está na prisão, beneficiada pelo indulto do Dia das Mães. O dia começou bem e terminou no extremo oposto. “Fabiana, a do meio, parecia que estava dormindo na cadeira, cansada de tanta criança e tanta festa, mas não estava dormindo, estava morta”, lembra Maria Silva, retorcendo os punhos encostados na mesa do refeitório de uma escola. Não revela a causa da morte: aperta os lábios como se reprimisse um gesto, aguardando a próxima pergunta. “Ela estava morta, o queixo estava no peito. Morta.”
Tudo o que aconteceu depois, que arruinou a frágil existência de Maria Silva Nunes aos 63 anos, aconteceu de forma precipitada, uma reação atrás da outra. O marido da falecida e pai de seus três filhos pegou um deles e desapareceu. “Ele é catador, o que vai fazer?” Maria Silva herdou a responsabilidade de cuidar dos outros dois, de 16 e 12 anos, em uma idade em que outras mulheres estão se aposentando. Com Fabiana se foi também o dinheiro que ela lhe dava todo mês. Nem conseguiu manter o Bolsa Família: “Isso é para pais e filhos, não te dão se você é avó”, intui. Em casa também está a outra filha em liberdade, que não tem trabalho e seu filho. Há meses em que entram apenas 60 reais e nada mais: são os meses em que, se a cesta básica acaba, Maria Silva sai em busca de comida no lixo. Mais dia menos dia, supõe, vão cortar a luz. “Devo 583 reais em contas e ainda não sei como vou repor o pacote de arroz que está acabando.” E, depois, teme que sua família ficará sem casa. Naquele Dia das Mães, Maria Silva perdeu uma filha e tudo que a impedia de afundar ainda mais. “Tudo ficou difícil. E continua difícil”, suspira. “Não tenho ninguém. Aqui é só eu e Deus.”
Maria Silva Nunes tropeçou em uma das frestas mais nocivas do Brasil recente: o aumento de 11% na pobreza extrema desde o final de 2016, um buraco negro pelo qual passaram, como ela, um milhão e meio de habitantes. Em um país em que o Governo celebra a recuperação econômica após anos de recessão, havia, no início de 2017, 13,34 milhões de pessoas vivendo em pobreza extrema; no final do mesmo ano, já eram 14,83 milhões, o 7,2% da população, segundo relatório da LCA Consultores divulgado pelo IBGE. Apesar de não serem números astronômicos, esse é o segundo ano consecutivo em que a tendência se mantém após o progresso espetacular do país entre 2001 e 2012, quando se erradicou 75% da pobreza extrema no Brasil, de acordo com cálculos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
“A queda da pobreza naqueles anos é explicada pela melhora do mercado de trabalho, que vem se deteriorando nos últimos anos. Há menos formalidade, ou seja, há pessoas trabalhando sem carteira assinada, enquanto os salários, em geral, não estão crescendo”, pondera o economista Fernando Gaiger, que pesquisa a pobreza e a desigualdade para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. “Isso tem mais a ver com a recessão do que com a reforma trabalhista de Temer, cujos resultados só começaremos a ver no final do ano que vem. Mas é inegável que pioramos. Alguém sem carteira assinada perde o emprego e depois a casa e logo logo está na rua. De uma hora para outra, tudo muda.”
Priscila Mourilo, vizinha de Maria Silva em Heliópolis, nunca imaginou que seria vítima dessa questão trabalhista. Quando era pequena, essa jovem na casa dos vinte anos, de costas largas e cabelos castanhos se sentia mais ou menos segura porque seu pai trabalhava em uma copiadora. Podiam viver sem grandes dificuldades com outros vizinhos da classe média baixa em Diadema, na periferia de São Paulo. “Entrava, saía... Era uma mulher livre”, lembra hoje. Se apaixonou, foi morar em Heliópolis, de onde era seu namorado, e lá teve três filhos. O namorado desapareceu depois de algum tempo, mas deixou-a ficar no apartamento de sua mãe. E aí os problemas começaram. À medida que cresciam, as crianças foram mostrando problemas de desenvolvimento: “O mais velho, Maurício [oito anos], tem uma ligeira deficiência. O menor, Murilo, está com sete anos e acho que também tem. Não para quieto, é impulsivo, não se concentra, não fala bem, não sabe abotoar um botão, não se limpa quando vai ao banheiro...”, diz ela no sofá de sua diminuta casa na favela. Está sob uma enorme mancha de umidade de onde pinga água. No seu colo está Mia, a gata que têm para pegar os ratos que se aproximam da casa.
Forçada a olhar as crianças a cada segundo que passam acordadas, Priscila descarta procurar trabalho. Seu único recurso seria pedir dinheiro ao seu pai, mas ele perdeu o emprego na copiadora depois de 20 anos e não recebeu nenhuma indenização. Também não tem direito a aposentadoria: não tinha carteira assinada. Priscila engravidou outra vez, do mesmo namorado. Sua mãe, sexagenária, teve que deixar a aposentadoria e começar a fazer faxina para sustentar a família. “Eu gostaria de sustentá-los, mas não tenho como”, repete, com olhar envergonhado. Quando cresceu, sabia que não era rica, mas nunca suspeitou que acabaria sendo extremamente pobre.
Em janeiro de 2017, perdeu o Bolsa Família. Nem ela sabe dizer o motivo. “E eu comecei a sentir medo. Medo e fome. Não tinha dinheiro para comprar biscoitos para os meninos, nem fraldas para a menina. Acordava sem saber o que ia comer, se conseguiria arranjar alguma coisa para alimentar meus filhos. Sobrevivo com o dinheiro que minha mãe me manda.” Cerca de 200 reais por mês. O pai das crianças não trabalha? “Ai moço, boa pergunta. Ele cata papelão, não tem dinheiro.” Você sabe como vai passar o próximo mês? “Pelejando. Pelejando como sempre. Mais do que isso não dá para saber. O futuro não ia ser assim.”
Desculpem a expressão pouco polida e, ainda menos, criativa. No entanto, é a exclamação que me ocorre diante do que se cristalizou como cenário das próximas eleições parlamentares.
Promover uma grande renovação nas duas casas do Congresso Nacional era a principal aspiração da sociedade brasileira para a futura eleição parlamentar em 7 de outubro. Tratava-se de pura racionalidade: afastar os corruptos, os coniventes com a corrupção e os incompetentes, preservando os melhores. A conduta dos eleitores, aliás, deveria ser sempre essa, mas os eventos dos últimos anos – em especial os achados da Lava-Jato e operações análogas – tornaram tal conduta uma imposição dos fatos a todo eleitor consciente, a todo cidadão preocupado com o presente e o futuro do país.
Foi no contexto desse clima político-eleitoral que começaram as pressões para extinguir o financiamento empresarial aos candidatos e partidos. Seria esse financiamento (e não o irracional modelo político) “a” causa fundamental da corrupção, por gerar conluio de interesses escusos entre financiadores e financiados. Tão indigno sistema – assim se dizia - deveria ser substituído por uma fonte pública, imune a quaisquer compromissos.
Chamada a opinar, a sociedade não aderiu à tese. Nem mesmo a poderosa organização formada por mais de uma centena de entidades e associações que se integraram na famosa “Coalizão por Reforma Política e Eleições Limpas”, sob a liderança da OAB e da CNBB, conseguiu sensibilizá-la. Empenharam-se os patrocinadores da tese em campanha que se estendeu por mais de um ano, entre 2014 e 2015, tentando, inutilmente, coletar 1,5 milhão de adesões a um projeto de iniciativa popular. O financiamento público encabeçava as propostas. Alegavam expressar o desejo social e pediam assinaturas durante missas em todo o país, mas nem assim conseguiram os patrocinadores coletar a metade disso! O povo jamais considerou ser de seu dever custear campanhas eleitorais, através de recursos públicos pelos quais cada cidadão estaria, inclusive, financiando candidatos contrários às próprias convicções.
A falsa lógica do beatificado fundo eleitoral público, porém, já havia contaminado os “legisladores” do STF. Em setembro de 2015, por oito a três, atropelando, inclusive, um projeto em sentido oposto que procurava disciplinar o financiamento por pessoas jurídicas, o Pleno decidiu que ele era “inconstitucional”.
Resultado: em 2017, o Congresso aprovou a formação de um fundo público para a eleição de 2018. Esse recurso, no montante de R$1,7 bilhão, será destinado aos partidos e neles manejados por seus líderes. E quem são estes? Como regra quase geral, nas executivas nacionais e nas secções estaduais, são deputados federais e senadores. Ou seja, os recursos “públicos” serão privatizados por aqueles que, em grande proporção, a sociedade não deseja ver reeleitos, frustrando-se a efetivação do cristalino anseio nacional pela renovação. OAB, CNBB e STF estão devendo explicações para esse terrível malfeito que realiza o sonho de todos os corruptos cuja reeleição estava em risco! Amarraram cachorro com linguiça, entregando-lhes – logo a eles! – o privilégio de se financiarem com meios que a nação sangrou para produzir e arrecadou na forma de tributos federais. Quem quiser furar esse esquema que trate de correr o chapéu juntando trocados de pessoas físicas, na base da “vaquinha”, ou do me dá um dinheiro aí.
Apesar desse desastroso papelão, persiste o desejo de renovação. Não se omita, não vote em corruptos, preserve os bons e renove. Sobretudo, dedique tempo à escolha que fará, e renove!Percival Puggina