terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Pensamento do Dia

 


Só o seguro morre de velho

O ano acabou de começar e já é longa a lista de tarefas para governo, oposição, justiça e sociedade. Começando por nós, o público, cuja missão primordial será a de cobrar dos candidatos e de todos os envolvidos na eleição municipal, mais atenção à vida nas cidades e menos aposta na briga de torcidas políticas.

Há muito a cuidar e não só naquilo que diz respeito direto a prefeitos e vereadores, que são a base da escolha seguinte, em 2026, de governadores e presidente da República. Por ora, a economia vai razoavelmente bem administrada, mas a insegurança, a violência, a criminalidade estão descontroladas.


Embora seja essa uma das maiores preocupações apontadas pela população nas pesquisas, o poder central dedica a ela atenção pontual e paliativa. Não por acaso 50% dos consultados avaliam o primeiro ano de Lula 3 como ruim ou péssimo na área. Some-se o índice de 29% de avaliação regular e temos praticamente 80% das pessoas insatisfeitas.

A alegação formal para não levar o problema "para dentro do Planalto" é a responsabilidade constitucional dos estados. Sim, mas e o dever também constitucional do Estado de garantir o bem-estar e assegurar o direito de ir e vir?

Sem liderança, coordenação, recursos e empenho do governo federal o monstro da insegurança não vai parar de crescer como cresceram à vista de todos os territórios dominados pelo narcotráfico e pela milícia no Rio de Janeiro e as facções criminosas nos presídios do Brasil inteiro.

Ao contrário do que sugerem os "espertos" da política, conselheiros da distância prudente, é imprescindível que um presidente leve a questão da segurança pública para dentro do Palácio do Planalto.

Até agora nenhum deles o fez. O governante que se mostrar à altura desse urgente desafio prestará ao país serviço semelhante ao do combate à inflação nos anos 1990 e terá, em benefício da própria biografia, construído um bom legado.

O país que esquece Bolsonaro, pouco a pouco

Há um ano, Luís Inácio Lula da Silva prometia “cuidar” das pessoas e “reconstruir o país” depois de “anos de devastação”. A esperança, para os que deixaram o Brasil durante a presidência de Jair Bolsonaro e para muitos que ficaram, foi imediata.

Ao fim dos primeiros dias, com a invasão da Praça dos Três Poderes, em Brasília, percebeu-se que o regresso não seria um passeio no parque. A fasquia estava alta para um Presidente que passou 580 dias na prisão, acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, e que indirectamente abrira espaço à ascensão de um político populista.


Mas Bolsonaro foi-se eclipsando à medida que os meses passaram, muito fustigado por processos e decisões judiciais que acabaram por colocá-lo num pousio forçado de oito anos, durante os quais estará impedido de concorrer ao Palácio do Planalto ou a outros cargos políticos. O que não se eclipsou foi o bolsonarismo, que continua vivo e tem ambições.

Isso significa que as divisões numa sociedade que estava excessivamente polarizada não foram ultrapassadas neste último ano, mas também não impediram o Governo de Lula de obter algumas vitórias políticas. A recente reforma tributária, o “arcabouço fiscal” e a consequente subida do rating da dívida brasileira foram boas notícias que o Presidente pode agradecer a Fernando Haddad, o seu ministro das Finanças.

As más (notícias), que também as houve, Lula pode agradecê-las a si próprio. As que tiveram maior repercussão recordam-se através de duas frases do próprio: 1) “Posso dizer que se eu for Presidente do Brasil e ele [Vladimir Putin] vier ao Brasil, não há nenhuma razão para ele ser preso” (proferida após a emissão de um mandado de captura internacional em nome de Putin) e 2) “É preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz” (dita no final de uma visita à China).

As posições sobre a Ucrânia, que Lula da Silva se esforçou por explicar e normalizar, tiveram efeitos até em Portugal, ofuscando as celebrações do 49.º aniversário do 25 de Abril, que coincidiram com a visita do chefe de Estado a Lisboa — quem não recorda o espectáculo dos deputados do Chega a interromperem o Presidente brasileiro a cada oportunidade?

Um ano depois do regresso de Lula, o mundo fará balanços e avaliações, lembrará as conquistas e as derrotas, as promessas cumpridas e as que ficaram no papel. E o Brasil, esse, será cada vez mais o país que esquece Bolsonaro, pouco a pouco

A profecia de Lima Barreto

"Os Bruzundangas" foi publicado há 101 anos. Nele Lima Barreto zombou das patologias políticas que afligiam o país. A crítica acerba é surpreendentemente atual. Basta ler o noticiário sobre os Três Poderes. O presidente, que em Bruzundanga se chamava Mandachuva, cooptava todos a sua volta. Não havia oposição.

Lima alertava: "Toda a vez que um artigo desta Constituição ferir os interesses de parentes de pessoas da 'situação' ou de membros dela fica subentendido que ele não tem aplicação no caso". "Na constituinte, todos esperavam ficar na ‘situação’, de modo que o artigo acima foi aprovado unanimemente." E acrescentava: "Se algum recalcitrante, à vista de qualquer violação da Constituição, apelava para a Justiça (que lá se chamava Chicana), logo a Corte Suprema indagava se feria interesses de parentes de pessoas da situação e decidia conforme o famoso artigo."


Mas havia um paradoxo aí. "Como todo o mundo não podia pertencer à ‘situação’, os que ficavam fora dela, vendo os seus direitos postergados, começavam a berrar, a pedir justiça... Se eram vitoriosos, formavam a sua ‘situação’" e começavam a fazer o mesmo que os outros. Havia apelo para a "’Chicana’, mas a Suprema Corte, considerando bem o tal artigo já citado, decidia de acordo com a 'situação’".

E, sim, havia os privilégios: "Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos do Estado; não há lá político influente que não se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República".

E também isenções, tarifas e regras especiais: "Um certo governador, grande plantador de café, verificando a baixa de preço que o produto ia tendo, de modo a não lhe dar lucros fabulosos, proibiu o plantio de mais um pé que fosse da preciosa rubiácea. Houve então um cidadão que pediu habeas corpus para plantar café. A Suprema Corte, à vista do tal artigo citado, não o concedeu, visto ferir os interesses do presidente da província, que pertencia à ‘situação’".

O diálogo entre Mandachuva e o ministro do Tesouro, Doutor Karpatoso, mostra como se resolvia o déficit público:

— O orçamento fecha-se sempre com déficit. Este cresce de ano para ano... Tenho que satisfazer compromissos no estrangeiro... Espero que você me arranje um jeito de aumentarmos a receita.

— Não há dúvidas! Vou arranjar a cousa!. E triplicou os impostos.

Complacência do Judiciário, privilégios, isenções, déficits. E mais: banquetes, tertúlias e homenagens eram tão comuns que Bruzunganda criou sua própria Guarda do Entusiasmo, com dez mil homens, dedicada a festejar magistrados, políticos, personalidades!
Marcus André Melo

Uma lista de desejos

Desde muito, a virada do ano é marcada por promessas de mudanças pessoais. Imagino como isso deve ter mudado em tempos de hoje.

Vivemos sob um bombardeio de conselhos. Já falei sobre um aspecto deles, uma espécie de terrorismo alimentar que combate tudo, desde açúcar e ultraprocessados até o leite, o pão, a lactose e o glúten. Esse bombardeio fez o pão nosso de cada dia virar o pão que o diabo amassou. Impressionante, a julgar pelas advertências, observar como a humanidade sobreviveu, sobretudo depois de Cristo ter multiplicado o pão.

Outro dia, um desses gurus alimentares confessava na rede que toma dez comprimidos de suplemento alimentar antes do café. Não fica claro para que café da manhã, depois de tanto comprimido. Os suplementos são a outra face do bombardeio: ômega 3, magnésio, cúrcuma, creatinina, vitaminas — é uma lista interminável.

Tenho visto também nas redes sociais o grande número de pessoas dizendo o que fazer para sermos felizes. Há algumas senhoras bem vestidas, gurus indianos com seus turbantes, todos garantindo que existem três, quatro ou às vezes até sete conselhos que mudarão nossa vida. Usando tática muito comum na internet, dizem que o último conselho é o mais surpreendente. Assim tentam reter nossa atenção até o fim.

Outro dia, vi uma senhora dizendo que um bom princípio era este: se não te disserem, não pergunte. Levado a sério, isso seria a ruína da profissão de jornalista.

Decidido a levantar nosso moral no Instagram e no TikTok, um guru indiano com turbante e longas barbas brancas diz que estarmos vivos é um milagre. Todos os dias morrem 250 mil pessoas no mundo. Quando olhar o relógio, não veja apenas as horas, mas celebre o fato de estar vivo.

Tenho um velho relógio, que costuma atrasar de três a cinco minutos. Quando sigo os conselhos do guru e vejo as horas, não sei se estou realmente vivo ou se morri há uns minutos atrás.

Todo esse novo batalhão de conselheiros não significa que as pessoas não tenham seus projetos íntimos e pessoais. É importante que os toquem para a frente, na ilusão de que a passagem de ano realmente seja um marco renovador. É algo que faz bem, desejar felicidades, organizar a vida para que ela venha. Estou de pleno acordo com o otimismo do Ano-Novo.

Devo cuidar também da minha lista. Acontece que já são um pouco mais de 80 viradas. A margem de manobra é mais estreita. Creio que, por uma questão de esperança, adotarei aquela velha tática dos antigos países comunistas e farei planos quinquenais. É um tempo razoável para esquecer os principais tópicos e, além de tudo, aqueles planos quinquenais nunca funcionaram mesmo.

Gostaria de não perder mais canetas. E de criar um sistema de inteligência sofisticado para evitar que elas se articulem com os óculos e as chaves e desapareçam ao mesmo tempo, numa ação coordenada destinada a me enlouquecer.

Gostaria também de seguir viajando, mas criar um avatar que me substitua nas longas esperas em aeroportos. Nada contra elas, mas cansam mais que o próprio voo. Poderia ser substituído por um coelho que hesitasse muitas vezes diante do portão, até que finalmente encontrasse o lugar certo. Quase nunca é o previsto.

Outro item importante na lista: se quero combater a polarização que divide o país, tenho de começar a combatê-la dentro de casa. Há duas gatas que não se entendem, às vezes se pegam ruidosamente na sala e deixam tufos de pelo no chão. Como convencê-las de que são da mesma espécie, há comida e carinho para todas?

Na verdade, meu plano quinquenal, ainda que com muitas derrotas e atropelos, será plenamente vitorioso se chegar ao fim. Num caminho tão longo, há muitas coisas repetidas, muito déjà-vu, e, quando me pedirem para comentá-las, usarei apenas um lado da lição de meu guru indiano:

— Desculpe, mas morri cinco minutos atrás.