quarta-feira, 15 de julho de 2020

Brasil contábil


Mais uma crise?

O que mais tenho ouvido de colegas de geração é “nunca pensei”. “Nunca pensei que fosse viver tantas crises ao mesmo tempo”, “que fosse enfrentar uma pandemia como esta”, “que fosse sentir tanta insegurança” e assim por diante. A mais recente da série é: “nunca pensei que fosse ficar quatro meses trancado em casa”.

Quanto a isso, não tenho do que me queixar. Como nunca fomos de bater pernas na rua, Mary e eu suportamos bem o confinamento, com exceção da saudade dos abraços. O pior vem de fora em forma de notícias sobre a Covid-19: a inconsciência dos que acham que “máscara é coisa de viado”; a prática irresponsável dos que continuam se aglomerando, enfim, a irresponsabilidade dos “responsáveis” pelo país, que teimam em desobedecer às recomendações de ciência e do bom senso.

No domingo à noite, assisti pela GloboNews ao debate entre especialistas sobre a pandemia. Participaram a pneumologista Margareth Dalcolmo, a infectologista Maria Amélia Veras, o biólogo Atila Iamarino e os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e seu breve sucessor Nelson Teich.


Depois de ouvi-los, a pergunta era inevitável: o que dizer de um governo que troca um Mandetta e um Teich pelo general Eduardo Pazuello, que, além de não ter a menor intimidade com os assuntos da pasta, parece que não pretende deixá-la? Apesar de interino, nomeou mais de 20 militares para cargos que eram ocupados por técnicos. O fato de ser um oficial da ativa causou desconforto nas Forças Armadas, mas o que uniu a cúpula foi a severa advertência do ministro Gilmar Mendes, do STF, de que o “Exército está se associando a um genocídio”.

Há 46 anos, o sociólogo francês Roger Bastide lançou “Brasil, terra dos contrastes”, que continua atual, assim como a paródia, feita pelo compositor Tim Maia, que explicava o porquê de o Brasil não dar certo: “aqui puta goza, cafetão sente ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita”. Se ainda vivesse, ele acrescentaria: e o negro escolhido para preservar os valores da cultura afro-brasileira fala bem da escravidão, mal de Zumbi e garante que racismo é coisa dos EUA. “A negrada daqui reclama porque é imbecil e desinformada pela esquerda.”

Do pó vieste...


O futuro é a única propriedade que os senhores concedem de boa vontade aos escravos
Albert Camus

O dragão da maldade não está só

Estamos a um passo de bater a cota de 100 mil mortes por Covid-19, e não precisaríamos estar vivendo isso. Como muitos países do mundo já haviam passado pela experiência da pandemia ficou fácil para nós agirmos rápido e certo. Sem vacina e sem remédio, a única alternativa para não morrer gente era o isolamento social e a testagem em massa. O fechamento de tudo, de maneira radical, por um ou dois meses, a quarentena para os sintomáticos e a realização de testagem massiva para evitar que gente assintomática ficasse por aí, transmitindo o vírus. Mas, nas últimas eleições, os brasileiros decidiram colocar na presidência um ser que, além de ser o mais fiel representante do capital, é também a concretude do mal. Tudo nele exala enxofre e o que se viu foi o óbvio. Nenhuma ação para barrar a desgraça. Pelo contrário. As ações foram para acelerá-la, torná-la maior.

A pandemia chegou e o governo federal não tomou qualquer atitude para comandar a ação de combate de maneira unificada. Pelo contrário. Mandou embora os ministros da saúde que passaram pelo cargo e que não tiveram coragem de seguir as ordens, que eram as de não se isolar e sequer de usar máscaras. O próprio governante, que veio dos Estados Unidos, depois de um encontro com um infectado, decidiu sair às ruas sem máscara, abraçando e tocando as pessoas. Apesar de todos os que estavam com ele no avião terem sido infectados, ele disse que não foi, e se recusou a mostrar os exames.


Os meses se passaram, as mortes foram acelerando. Primeiro nos estados mais empobrecidos, do norte e nordeste. Centenas e centenas de covas sendo abertas sob os olhos da nação e o presidente fazendo troça. Inexoravelmente o processo foi chegando aos demais lugares. Agora, até mesmo nos estados do chamado “sul maravilha”. Já não há leitos nas UTI e não há sequer remédios para garantir a intubação de pacientes. E os números crescendo a olhos vistos. Foram-se 50 mil, 60 mil, 70 mil e seguimos caminhando para o matadouro. Trabalhadores da saúde exaustos, massacrados, e as gentes desamparadas.

Parecia não ser possível mais nada de tão ruim. O presidente então resolveu fazer outro teatro. Anunciou estar contaminado, mas que não era problema, pois ele estava tomando cloroquina, o remédio que ele quer empurrar massivamente e que não têm qualquer comprovação de eficácia. Segundo ele, é o que lhe garante passar pelo vírus. Um deboche, um acinte diante de tanta dor e desespero.

Também conseguiu elevar suas doses de maldade a última potência quando decidiu vetar medidas de prevenção ao coronavírus junto aos povos indígenas, uma das frações da sociedade brasileira mais fragilizadas diante das doenças dos não-índios. Vetou a distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção de superfícies. Vetou a oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidade de terapia intensiva (UTI). Vetou a aquisição de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea. Vetou a distribuição de materiais informativos sobre a covid-19. Vetou a instalação de pontos de internet nas aldeias. Até o acesso à água tratada foi vetado, com o presidente dizendo que os índios estão acostumados a tomar água do rio. Mais deboche e maldade pura. Afinal, exterminar os indígenas tem sido uma de suas prioridades desde a campanha, quando ainda nem era presidente. Segundo ele, os indígenas devem se integrar ao corpo de trabalhadores e deixar de ser “privilegiados”. Além de incentivar invasões nas terras originárias e incentivar a queima da mata, agora ele decide vetar aspectos essenciais do programa de prevenção à COVID-19 nas aldeias. Talvez acredite que assim possa ser mais fácil e rápido acabar com as comunidades.

Tudo isso parece um conto de terror e também pode parecer que é ação demoníaca de uma única pessoa. Mas, não é. O dragão da maldade não está só. Ele está acompanhado e respaldado pelas demais instituições da política oficial brasileira, como o judiciário e o congresso nacional. Tudo acontece sem que qualquer uma dessas instâncias aja em consequência. Há um assentimento total com relação a todas as atitudes de lesa pátria e de crime contra o povo brasileiro. Ainda que alguns poucos parlamentares atuem no plenário, o congresso em si segue impávido diante dos desmandos. O apoio é pleno. Vez ou outra uma notinha de repúdio, bem tímida, sem consequências.

Bateremos os 100 mil mortos logo ali. “E daí? Não sou coveiro!” diz o presidente. Com ele, as demais autoridades também dizem isso, ainda que não pronunciem. Isso já seria ruim, mas tem mais. Com eles também caminham e apontam suas arminhas contra os “mentirosos e comunistas” quase 40% da população brasileira que apoiam as ações ou não/ações do presidente. O vírus é uma invenção comunista, dizem, e andam por aí desafiando as autoridades médicas, sem máscaras, devidamente autorizados pelo seu líder.

Poderíamos dizer que tudo isso é um absurdo, mas, se pensarmos bem, é só o capitalismo se expressando como sempre, apenas com mais desembaraço. Aproveitando a pandemia para que alguns possam acumular mais riqueza e se desfazendo “da carga” que representam os velhos, os doentes, os desempregados.

O dragão da maldade não é uma excrescência no céu azul do país. Ele é a cara visível de um sistema que normalmente se esconde sob a pele de cordeiro, mas que está aí, todos os dias tripudiando dos trabalhadores. Agora, sem pejo, ele se mostra e ri. Não tem medo. Está seguro diante da inércia, do pavor e de seus seguidores.

Só mais um passo e já estarão ali, os 100 mil mortos. E mais...

Ao que parece, na nação anestesiada, que vê a fileira de mortes pelo Jornal Nacional, a resistência ainda é pífia e o ataque inexistente.

Elaine Tavares

Vingança contra a vida

Para que não restem dúvidas: já se passaram 48 horas que soou o alarme sobre a calamidade da gestão do governo de Jair Bolsonaro no combate à letal pandemia e não há notícia sobre correção de rumo. Ao contrário, a reação de ontem, atribuída ao vice-presidente, ateve-se à questão militar, presa ao significado literal do termo que sintetizou as consequências do mal, não ao seu contexto.

O agente ativo do sumiço de chão, céu e mar que instabiliza os 200 milhões de brasileiros é Jair Bolsonaro. Ele renega dois aspectos fundamentais deste caso, a palavra da Ciência e a função de liderança que lhe cabe como presidente da República. Dispensa o uso da cabeça e da caneta. Na sua torre de comando o imenso vazio dá espaço para pendurar uma rede.

A dimensão da insegurança generalizada, em que os brasileiros acordam pensando se finalmente o número de mortes baixou e vão dormir sem vislumbrar o fim da agonia, o jurista Gilmar Mendes (STF) e o general Eduardo Pazuello (Saúde) são também vítimas. Só que um deles gritou primeiro e pelo lado correto: Bolsonaro é a caricatura, não tem mais jeito. Já o Exército, não.

Aliás, o general Luiz Eduardo Ramos representava ainda o Exército quando foi para a praça dar apoio tácito a extremistas que exigiam o fechamento do Supremo. Estão quites.

Em lugar de abespinhar-se com a crítica à conivência com o extermínio que a covid-19 vem operando, as autoridades militares, se não têm poder para convencer o presidente a fazer o certo, deveriam podar sua ligação com o errado. Reagindo como reagiram, passaram o recibo da conta que Bolsonaro lhes quis aplicar. Inclusive escudando-se no princípio de que interino no comando de uma escrivaninha de gabinete não pode ser acusado de nada. Todo o governo é sócio da chacota que atinge o Brasil em escala mundial. Os militares mais ainda porque aparelharam o ministério da vida.

Ao criar uma nebulosa interinidade para o Exército, Bolsonaro esconde-se, escarnece da população e do emprego adequado da força. O que diriam os comandantes militares se o Brasil estivesse em guerra e o presidente da República entregasse o Ministério da Defesa a um padre? Ainda que declarando-o interino, álibi para que a Igreja pudesse eximir-se de eventual mau resultado?

A leitura da alma presidencial permite a conclusão de que Bolsonaro conduz seu governo como um interminável processo de vingança. No caso do momento, contra os médicos, cientistas e políticos que não transigiram com prescrições charlatãs.

A demissão de dois ministros que conheciam a natureza do problema não implicou razão ideológica. Foi vingança da condição de homens da ciência que o contestavam. Insuspeitos, um é do DEM, outro, seu colaborador do programa de saúde da plataforma de candidato.

Nem Bolsonaro pode queixar-se de exagero nos ataques sofridos. Quem já subiu à tribuna da Câmara Federal para pedir o fuzilamento de um presidente da República, superou o máximo da virulência de um orador político.

O presidente insiste no seu torcido conceito de autoridade, como se o mandato presidencial não tivesse limites e o destino da Nação não fosse partilhado pelos demais poderes. Como se dissesse à sociedade para engolir o general, os coronéis, os capitães, que não entendem de saúde mas obedecem cegamente às suas desautorizadas prescrições e, ainda agora, o protegem da inconsequência assumindo seu lugar no alvo.

Aproveita também para vingar-se do Supremo por tê-lo afrontado ao reconhecer, a Estados e Municípios, a atribuição de definir medidas do isolamento social que ele se recusava a fazer.

Neste ritmo, Bolsonaro traveste-se de Pôncio Pilatos e lava as mãos do seu papel de liderar o país diante da pandemia. O episódio é um perigoso desvio de atenção da questão essencial da dor em que se concentra a população neste momento.

Pensamento do Dia


Falsos otimistas

Quatro meses e mais de 74 mil mortes por Covid-19 separaram audazes e intrépidos médicos, empresários e políticos cloroquinistas dos céticos e prudentes pesquisadores, adeptos da preservação das estratégias de isolamento social. Ao longo do tempo, as ideias circulantes se coagularam em torno da oposição entre a prática, observações pessoais e as evidências científicas. Uma falsa dicotomia. Como se a adesão a comprimidos conferisse audácia e euforia; e a insistência nas medidas preventivas, covardia e pessimismo.

Na vida real, os impulsos se misturaram com experiências concretas e conferiram concretude a pelo menos três condutas assistenciais. Políticos, propagandistas de medicamentos, recebem pílula, dois eletrocardiogramas diários e acompanhamento médico. Pacientes acessam serviços de saúde públicos ou privados do circuito medicina-pesquisa e obtêm explicações sobre proteção e adoecimento. Parcela da população é beneficiária de pacotes com comprimidos, supostamente eficazes, entregues em casa, espaços públicos improvisados e algumas empresas de planos de saúde.


Presidente da República e prefeitos que recomendam remédio antimalárico e distribuem vermífugos omitem a parte principal da história: quando ficam doentes, correm para hospitais privados de excelência, prestigiados inclusive porque pararam de incluir essas drogas em seus protocolos. Valentes libertários, defensores da liberdade inclusive para se tornar doente e infectar os demais, não usam apenas comprimido e copo com água, contam com uma potente retaguarda. O ímpeto de estar no front de peito aberto é aparente, tanto quanto ilusório o enunciado de vivência pessoal favorável ao medicamento.

A cronologia de declarações favoráveis à hidroxicloroquina mostra a dianteira de Trump como charlatão oficial. Em 19 de março, o presidente dos EUA disse que o medicamento poderia “mudar o jogo”. O mandatário brasileiro imitou o americano. Em 21 de março anunciou aumento da produção de cloroquina. Ambos os presidentes disseram terem tomado o remédio. Trump assegurou no início de junho que não teve efeitos colaterais, e Bolsonaro se dirigiu “aos que torcem contra o uso da cloroquina, mas não apresentam alternativa” para informar que está muito bem.

Celebrar as interações humanas movidas por vontades individuais tem efeitos deletérios sobre a configuração institucional. O sumiço do Ministério da Saúde foi ocupado por novos arranjos institucionais. Empresas de saúde cloroquinistas se uniram a burocratas de ocasião, ocupantes de cargos no Ministério da Saúde que irradiam orientações para a prescrição de remédios para médicos, redes sociais e prefeituras.

Outro enclave reúne hospitais filantrópicos privados de São Paulo, que atendem a estratos de maior renda, com grandes empresas e algumas instituições públicas. Recursos doados foram aplicados para a expansão da oferta de leitos permanentes e em hospitais de campanha, telemedicina, aquisição de equipamentos e testes. São diretrizes de ação distintas. A primeira cruzada tem como missão levar medicamentos para todos. A segunda concentra-se em torno de lacunas assistenciais. Entretanto, nenhum dos esforços empresariais é capaz de desempenhar o papel de coordenação de estratégias populacionais com as iniciativas de assistência individual — reservado a autoridades sanitárias públicas.

A desconfiguração do SUS exponencia as assimetrias “naturais” de poder e desigualdades, faz do estado de natureza um ideal de sociabilidade. A briga não é entre sujeitos individuais arrojados contra cientistas hesitantes. A defesa da espontaneidade, do apelo aos instintos, ocorre em meio à dissolução dos nexos normativos e regulatórios estatais. Sem a esfera pública, não há autocontenção e reconhecimento dos danos que podemos infligir aos demais. Esse legado de destruição, se não isolado, pode contaminar os processos científicos públicos de avaliação, que determinam a segurança e efetividade de medicamentos, e vacinas que asseguram avanços no controle de doenças. Otimistas são os que não se conformam com uma mortandade de rebanho.

Alerta ha 70 anos

O progresso tecnológico nos últimos cem anos é simplesmente espantoso. Se eu fosse um marciano, não apostaria um contra um milhão na possibilidade do intelecto humano ser derrotado por algo tão insignificante quanto um vírus.

Não pense que não sou otimista, mas gosto de apostar na certa, mesmo quando as probabilidade parecem a meu favor
John Christopher (Sam Youd), em "Chung-Li, a agonia do verde", primeiro best-seller da ficção ecológica em 1956

Termo “genocídio” choca militares mesmo após genocídio indígena da ditadura

“Vi o cidadão Gilmar Mendes fazer uma crítica totalmente fora de propósito, ao comparar o que ocorre no Brasil com um genocídio. Genocídio foi cometido por Stalin contra as minorias russas, foi cometido por Hitler contra os judeus. Foi cometido na África, em Ruanda, e outros casos. Saddam Hussein contra os curdos.”

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, poderia ter acrescentado, em sua declaração à CNN, que genocídio também “foi cometido pela ditadura militar brasileira contra o povo indígena Waimiri-Atroari”. Talvez não se lembrou disso porque uma parte das Forças Armadas é contra o direito à memória e à verdade.

Ele reclamava da crítica do ministro do Supremo Tribunal Federal – que disse, no sábado, que “o Exército está se associando a genocídio” ao ocupar cargos técnicos no Ministério da Saúde ao invés de permitir que especialistas estivessem nessas funções. A inação e incompetência do governo são corresponsáveis por parte dos mais de 74 mil óbitos durante a pandemia.

Os Waimiri-Atroari vivem entre os Estados de Roraima e do Amazonas. Durante a ditadura, milhares deles foram executados em nome da implementação de grandes projetos na região.


Relatos colhidos de sobreviventes em uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF), por exemplo, contam que helicópteros sobrevoaram aldeias derramando veneno e detonando explosivos sobre centenas de indígenas reunidos para celebração de rituais de passagem. Depois disso, ataques a tiros, esfaqueamentos e degolas violentas praticadas por homens brancos fardados contra adultos e crianças sobreviventes. Tratores passaram, na sequência, destruindo tudo.

O MPF cobra que o Estado brasileiro assuma sua responsabilidade, adote medidas de reparação e de indenização pelas violências cometidas contra a etnia entre os anos 70 e 80.

“Um dos depoimentos mais fortes apresentados à Justiça na audiência foi prestado por um que sobreviveu, quando adolescente, a um ataque aéreo e terrestre contra uma aldeia localizada nas proximidades do traçado da rodovia BR-174. Ele relatou que os indígenas ouviram muito barulho vindo de cima e não sabiam do que se tratava. Pouco tempo depois, começaram a sentir muito calor no corpo, não conseguiam mais andar e ficaram todos ‘muito doentes’, em decorrência de veneno jogado do alto. Ele contou ainda que, depois que se ver praticamente sozinho em meio aos corpos de seus pais e irmãos e dos demais indígenas presentes, testemunhou homens brancos entrarem na aldeia por terra, armados com facas e revólveres”, afirmou o MPF.

Além dos ataques, as obras para a abertura da rodovia BR-174, ligando Manaus a Boa Vista e à Venezuela, levaram doenças para a população kinja (como eles se identificam). Muitos morreram sem apoio e a rodovia se tornou vetor de ocupação do Estado de Roraima e orgulho da ditadura. O relatório da Comissão Nacional da Verdade afirma, com base em dados oficiais, que houve uma redução de 3 mil, nos anos 1970, para 332 indígenas nos 1980. Se isso não é tentativa de exterminar um povo, nada mais é.

Gilmar Mendes não é o primeiro a acusar o governo Jair Bolsonaro de genocídio por conta de sua política de apoio ao coronavírus. Com isso, parte do Exército subiu nas tamancas. O que é ótimo, pois, do alto, talvez possa enxergar os fatos.

O presidente vetou um rosário de medidas de um projeto aprovado pelo Congresso Nacional voltado a proteger comunidades tradicionais, que apresentam extrema vulnerabilidade. Excluiu a obrigação de garantir água potável, fornecer materiais de higiene e limpeza, ofertar leitos hospitalares e em UTIs, distribuir cestas básicas, entre outras.

Como disse aqui Pedro Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas e coordenador da Epicovid19, maior pesquisa epidemiológica sobre a doença no país, indígenas apresentam um risco cinco vezes maior do que os brancos. Deveriam ser alvo de atenção redobrada. Se fossem grandes empresas, não precisaria nem pedir.

Bolsonaro, no ano passado, foi representado no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda, por incitação ao genocídio de indígenas. Quem levou o caso à corte foi a Comissão Arns e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu). O deplorável comportamento de seu governo com esses povos durante a pandemia pode, enfim, levar a ser denunciado por esse crime.

Desde que era deputado federal, Jair tem deixado claro seu incômodo com os direitos das populações indígenas aos seus territórios. Como presidente, nega-lhes terras, força sua aculturação, dificulta acesso a alimentos e permite a exploração econômica de suas terras por terceiros, mesmo à revelia. Agora, garimpeiros, madeireiros e grileiros empoderados por ele invadem territórios indígenas e espalham a doença.

O Exército, ao se aliar de forma incondicional ao presidente e à sua política, torna-se sócio de um processo de morte.

Mostrando que, talvez, estejamos condenados a ver a História se repetindo. Primeiro como farsa e, depois, também.

“Máscara ideológica” e outras contradições de um Ministério da Saúde militarizado

Nos bastidores do Ministério da Saúde, o clima entre os funcionários é de tensão. Depois que dois ministros desembarcaram do Governo em plena crise do coronavírus por divergências com o presidente Bolsonaro, militares se multiplicaram em cargos chave da pasta, a maioria nomeada pelo ministro interino, general Eduardo Pazuello. O órgão, há 59 dias sob a gestão interina de Pazuello, está imerso em uma teia política e tem perdido protagonismo na grave crise sanitária. Técnicos dizem estar constrangidos até de usar máscaras para se proteger do vírus na Esplanada, com medo de que a ação seja vista como “ideológica”. Também narram que há muita cobrança por prazos e entregas nas reuniões ―nas quais militares evocam sempre o nome do ministro interino― e cada vez menos espaço para as discussões técnicas que norteiam as políticas nacionais de Saúde. Tudo isso, apontam, tem levado a uma ruptura na agenda da pasta, responsável por coordenar a complexa engrenagem do Sistema Único de Saúde (SUS), cujas ações são executadas na ponta por Estados e municípios. E criou fricção até com o Supremo Tribunal Federal, depois que o ministro Gilmar Mendes afirmou que o Exército está se “associando a um genocídio”.


“Estamos vivendo há meses uma situação muito difícil. Lá dentro, os colegas estão muito angustiados. Muitos técnicos continuam trabalhando presencialmente, mas ficam constrangidos até em usar máscara, como se fosse uma atitude ideológica. É como se tivesse virado coisa de comunista. Quem está com o Governo não usa máscara”, conta um funcionário que trabalha há 15 anos na pasta e que conversou com o EL PAÍS na condição de anonimato. O receio é de que ações como essa causem demissões, já que grande parte dos quadros do Ministério da Saúde não é de servidores, mas de contratados terceirizados por outras instituições, como por exemplo a OPAS. No início de junho, técnicos foram demitidos por produzirem um documento que incluía a garantia de segurança às mulheres que abortarem nos casos permitidos pela legislação brasileira durante a pandemia. “Isso virou uma pauta ideológica que trouxe perseguição e faz com que pessoas de outras áreas fiquem com medo de falar”, afirma o funcionário.



A forte presença de militares no órgão ―que começou com a gestão relâmpago de Nelson Teich e se consolidou com a de Pazuello― também tem refletido na tensão interna. Ao menos 25 militares foram nomeados durante a pandemia, muitos sem experiência na área da saúde. Nas reuniões internas, contam técnicos, militares costumam sempre citar o nome do ministro interino Pazuello ao orientar as equipes, algo que não acontecia nas gestões anteriores. Marcados pela hierarquia e disciplina, cobram prazos e entregas. Mas as discussões técnicas perderam relevância, inclusive sobre outras áreas da Saúde que não estão diretamente relacionadas com a pandemia e que não podem ser paralisadas durante a crise, como por exemplo ações para controlar doenças como diabetes e hipertensão, campanhas contra a dengue e políticas para a saúde da mulher.

“Essas agendas estão sendo negligenciadas. A situação interna hoje é muito ruim. As agendas são muito restritas e anti-técnicas. Os militares não conhecem a área e não dão muito espaço para os técnicos se posicionarem. Muitos estão aos poucos deixando de opinar porque é muito constrangimento. Eu sou um deles”, diz um servidor que preferiu não se identificar. Ele alerta que os efeitos de decisões políticas não refletem nos indicadores de Saúde imediatamente, mas diz que consequências poderão ser observadas nos próximos meses e anos.

É um fato claro. O Brasil está há 59 dias sem ministro titular da Saúde. Durante todo esse tempo, o cargo é exercido interinamente pelo general Pazuello. Bolsonaro já disse que ele não deve se manter no posto “para sempre”, mas avisou que não há prazo para efetivar outro nome. Dentro do órgão, servidores acreditam que a interinidade pouco surte efeito no tamanho do espaço que o militar está ocupando. A influência de Pazuello nas decisões internas é vista como mais forte até que a do ex-ministro Teich, que costumava despachar mais do seu gabinete e não interferia tanto no trabalho desenvolvido. “Pazuello está comandando. Ele não é ausente”, diz o servidor.

O problema está na politização que se aglutinou na Saúde nos últimos meses. Enquanto as alas ideológica e militar ocupavam forte espaço em outros ministérios do ultradireitista Jair Bolsonaro ―como por exemplo as pastas da Educação e da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos―, o da Saúde conseguiu se manter relativamente distante dessas questões no primeiro ano da gestão bolsonarista. Com as trocas de ministros durante a pandemia, a crise política afetou a agenda da pasta, que historicamente tem uma posição técnica importante que deu a ela respaldo tanto junto à sociedade quanto na comunidade médica.

Uma das primeiras ações de Pazuello foi publicar um protocolo de tratamento para a covid-19 que inclui a hodroxicloroquina mesmo quando ainda não há comprovação científica da eficácia do medicamento para a doença. O remédio tem sido defendido por Bolsonaro desde o começo da crise. “Nas campanhas, quando fala que o Ministério da Saúde adverte algo, tem um respeito importante na sociedade. Com pandemia, o que estamos vendo é um certo desgaste dele, com posturas menos técnicas”, diz o servidor.

O mais alto órgão da Saúde no país vem perdendo protagonismo durante a crise. Na teoria, seu papel seria definir as regras, regulamentar e financiar as políticas de enfrentamento ao vírus. Caberia a Estados e Municípios executarem a estratégia nacional na ponta. Mas o comportamento errático do presidente ―que se posicionou contra as medidas de isolamento social necessárias para frear o contágio do coronavírus― levou o Supremo Tribunal Federal a deixar que prefeitos e governadores tomassem as decisões sobre este ponto.

O Governo Federal tem usado a decisão como argumento para esvaziar seu papel de coordenador da gestão da epidemia. Virou essencialmente um receptor da demanda posta pelos gestores locais, que frequentemente pedem o envio de respiradores, medicamentos e testes para tratar pacientes infectados. “Houve momentos da pandemia que era impossível estabelecer um diálogo com o Ministério da Saúde. O ministro Pazuello tem se esforçado por um diálogo mais próximo com os secretários”, elogia o presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais da Saúde, Carlos Lula. Mas, segundo especialistas, o Brasil ainda enfrenta uma desarticulação nas ações para conter a epidemia.

“A gente não está olhando o território nacional, apenas porções territoriais. É como se a gente não vivesse uma relação entre os entes federados”, avalia o enfermeiro sanitarista Dário Frederico Pasche, doutor em saúde coletiva e membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Pasche, que trabalhou por dez anos no Ministério da Saúde, diz que há uma deficiência propositiva na pasta sobre as ações da pandemia. Ele analisa que manter a pasta sem um chefe titular e sob o comando interino de um militar sem familiaridade com a área é uma estratégia para seguir a linha errática defendida por Bolsonaro, que tem criticado o isolamento social e tentado se eximir da responsabilidade de minimizar as mortes pelo coronavírus, enquanto o país já soma mais de 70.000 óbitos.

“Essa interinidade [de Pazuello] é uma intervenção política. É o álibi para que o Ministério da Saúde não funcione. E ele não funcionando, acaba delegando para os outros entes atividades de coordenação que não competem a eles. Falta inteligência política e coordenação [nas ações de enfrentamento da pandemia] que cabe ao Ministério”, afirma Pasche. Sem orientações claras, municípios têm adotado seu próprio protocolo de tratamento da covid-19, com vermífugos e outros medicamentos que não têm sequer sua eficácia comprovada. “Temos militares fazendo jogo da necropolítica. Em quase dois meses, não se construiu uma estratégia nacional de combate ao vírus”, acrescenta.

A falta de comando foi alvo, neste final de semana, de críticas por parte do ministro do STF, Gilmar Mendes. Em uma live organizada pela revista Isto É ele afirmou que o vazio “não é aceitável”. ““Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Pode até se dizer que a estratégia é tirar o protagonismo do Governo federal, atribuir a responsabilidade a estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa”, afirmou ele. “Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável”, complementou. A fala causou indignação no Ministério da Defesa. O ministro, Fernando Azevedo e Silva, afirmou que entrará com uma representação na Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Mendes. “Comentários dessa natureza, completamente afastados dos fatos, causam indignação. Trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e sobretudo leviana. O ataque gratuito a instituições de Estado não fortalece a democracia”, disse, por meio de uma nota, assinada em conjunto com os três comandantes das Forças Armadas.

A fala de Gilmar acordou um vírus

Em abril do ano passado, quando era ostensiva a participação de militares na administração civil de Jair Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão disse o seguinte:

“Se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas, daí a nossa extrema preocupação.”

Entregar o que prometia, o capitão sabe que não entregará. A pandemia e suas superstições confirmaram sua previsão de março: “Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo.”

Mourão acredita que o ministro Gilmar Mendes “forçou a barra” quando disse que, com a conduta do governo diante da pandemia, “o Exército está se associando a esse genocídio”. Gilmar tem uma queda pelo exagero. Se tivesse dito que o Exército está sendo associado a uma ruína, o vice-presidente não poderia se queixar, pois estaria seguindo o raciocínio que ele enunciou há um ano.



O Ministério da Saúde não tem titular. O general Eduardo Pazuello é um interino e na sua equipe há 24 militares. Com suas certezas epidemiológicas, Bolsonaro jogou-os na fogueira. Nelson Teich, paisano, foi-se embora.

Pinçado, o trecho da fala de Gilmar foi repelido pelo ministro da Defesa e pelos comandantes da Marinha, do Exército e da Força Aérea: “Trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e sobretudo leviana.”

Se o caso ficasse nisso, seriam salvas trocadas, mas o Ministério da Defesa informa que representará contra Gilmar Mendes junto à Procuradoria-Geral da República.

Foi assim que nasceu o Ato Institucional nº 5. Uma conspiração palaciana manipulou um discurso (irrelevante) do deputado Marcio Moreira Alves para que o governo pedisse licença à Câmara para processá-lo. No dia 12 de dezembro o plenário negou o pedido e no dia seguinte o marechal Costa e Silva baixou o Ato. Foram dez anos de ditadura escancarada, torturas e extermínio. No Ministério da Justiça estava um tatarana. A cabeça militar dessa urdidura foi a de um general miúdo, conspirador incorrigível. Jayme Portella de Mello foi para escanteio anos depois, sem ter conseguido a quarta estrela.

Como a manobra de 1968 deu certo, ela foi reciclada sete anos depois. Num discurso, o senador Leite Chaves protestou pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog: “Hitler, quando desejava praticar atos tão ignominiosos como os que estamos presenciando, não se utilizava do Exército, mas sim das forças da SS.” O ministro Sylvio Frota foi ao presidente Ernesto Geisel e, supondo falar em nome do Alto Comando, exigiu a cassação do senador. (O Ato 5 estava em vigor.)

Quando Frota entrou no gabinete de Geisel, esta foi a cena, nas suas palavras:

“Merda! Merda! Vocês querem criar um problema! Eu não quero ser ditador! A ser ditador, que seja um de vocês!”

Frota miou, propôs uma representação contra Leite Chaves e nem isso conseguiu. Com a ajuda do senador Petrônio Portella, um marquês do Império a serviço da República, capaz de tirar a meia sem tocar no sapato, o episódio foi diluído.

As duas semanas de recesso do Judiciário permitem que se jogue água nas cabeças quentes. Mesmo assim, a fala de Gilmar pode ser usada para alimentar uma crise. Para isso, os golpistas precisam dizer que o que eles querem é uma ditadura.
Elio Gaspari