quarta-feira, 15 de julho de 2020

“Máscara ideológica” e outras contradições de um Ministério da Saúde militarizado

Nos bastidores do Ministério da Saúde, o clima entre os funcionários é de tensão. Depois que dois ministros desembarcaram do Governo em plena crise do coronavírus por divergências com o presidente Bolsonaro, militares se multiplicaram em cargos chave da pasta, a maioria nomeada pelo ministro interino, general Eduardo Pazuello. O órgão, há 59 dias sob a gestão interina de Pazuello, está imerso em uma teia política e tem perdido protagonismo na grave crise sanitária. Técnicos dizem estar constrangidos até de usar máscaras para se proteger do vírus na Esplanada, com medo de que a ação seja vista como “ideológica”. Também narram que há muita cobrança por prazos e entregas nas reuniões ―nas quais militares evocam sempre o nome do ministro interino― e cada vez menos espaço para as discussões técnicas que norteiam as políticas nacionais de Saúde. Tudo isso, apontam, tem levado a uma ruptura na agenda da pasta, responsável por coordenar a complexa engrenagem do Sistema Único de Saúde (SUS), cujas ações são executadas na ponta por Estados e municípios. E criou fricção até com o Supremo Tribunal Federal, depois que o ministro Gilmar Mendes afirmou que o Exército está se “associando a um genocídio”.


“Estamos vivendo há meses uma situação muito difícil. Lá dentro, os colegas estão muito angustiados. Muitos técnicos continuam trabalhando presencialmente, mas ficam constrangidos até em usar máscara, como se fosse uma atitude ideológica. É como se tivesse virado coisa de comunista. Quem está com o Governo não usa máscara”, conta um funcionário que trabalha há 15 anos na pasta e que conversou com o EL PAÍS na condição de anonimato. O receio é de que ações como essa causem demissões, já que grande parte dos quadros do Ministério da Saúde não é de servidores, mas de contratados terceirizados por outras instituições, como por exemplo a OPAS. No início de junho, técnicos foram demitidos por produzirem um documento que incluía a garantia de segurança às mulheres que abortarem nos casos permitidos pela legislação brasileira durante a pandemia. “Isso virou uma pauta ideológica que trouxe perseguição e faz com que pessoas de outras áreas fiquem com medo de falar”, afirma o funcionário.



A forte presença de militares no órgão ―que começou com a gestão relâmpago de Nelson Teich e se consolidou com a de Pazuello― também tem refletido na tensão interna. Ao menos 25 militares foram nomeados durante a pandemia, muitos sem experiência na área da saúde. Nas reuniões internas, contam técnicos, militares costumam sempre citar o nome do ministro interino Pazuello ao orientar as equipes, algo que não acontecia nas gestões anteriores. Marcados pela hierarquia e disciplina, cobram prazos e entregas. Mas as discussões técnicas perderam relevância, inclusive sobre outras áreas da Saúde que não estão diretamente relacionadas com a pandemia e que não podem ser paralisadas durante a crise, como por exemplo ações para controlar doenças como diabetes e hipertensão, campanhas contra a dengue e políticas para a saúde da mulher.

“Essas agendas estão sendo negligenciadas. A situação interna hoje é muito ruim. As agendas são muito restritas e anti-técnicas. Os militares não conhecem a área e não dão muito espaço para os técnicos se posicionarem. Muitos estão aos poucos deixando de opinar porque é muito constrangimento. Eu sou um deles”, diz um servidor que preferiu não se identificar. Ele alerta que os efeitos de decisões políticas não refletem nos indicadores de Saúde imediatamente, mas diz que consequências poderão ser observadas nos próximos meses e anos.

É um fato claro. O Brasil está há 59 dias sem ministro titular da Saúde. Durante todo esse tempo, o cargo é exercido interinamente pelo general Pazuello. Bolsonaro já disse que ele não deve se manter no posto “para sempre”, mas avisou que não há prazo para efetivar outro nome. Dentro do órgão, servidores acreditam que a interinidade pouco surte efeito no tamanho do espaço que o militar está ocupando. A influência de Pazuello nas decisões internas é vista como mais forte até que a do ex-ministro Teich, que costumava despachar mais do seu gabinete e não interferia tanto no trabalho desenvolvido. “Pazuello está comandando. Ele não é ausente”, diz o servidor.

O problema está na politização que se aglutinou na Saúde nos últimos meses. Enquanto as alas ideológica e militar ocupavam forte espaço em outros ministérios do ultradireitista Jair Bolsonaro ―como por exemplo as pastas da Educação e da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos―, o da Saúde conseguiu se manter relativamente distante dessas questões no primeiro ano da gestão bolsonarista. Com as trocas de ministros durante a pandemia, a crise política afetou a agenda da pasta, que historicamente tem uma posição técnica importante que deu a ela respaldo tanto junto à sociedade quanto na comunidade médica.

Uma das primeiras ações de Pazuello foi publicar um protocolo de tratamento para a covid-19 que inclui a hodroxicloroquina mesmo quando ainda não há comprovação científica da eficácia do medicamento para a doença. O remédio tem sido defendido por Bolsonaro desde o começo da crise. “Nas campanhas, quando fala que o Ministério da Saúde adverte algo, tem um respeito importante na sociedade. Com pandemia, o que estamos vendo é um certo desgaste dele, com posturas menos técnicas”, diz o servidor.

O mais alto órgão da Saúde no país vem perdendo protagonismo durante a crise. Na teoria, seu papel seria definir as regras, regulamentar e financiar as políticas de enfrentamento ao vírus. Caberia a Estados e Municípios executarem a estratégia nacional na ponta. Mas o comportamento errático do presidente ―que se posicionou contra as medidas de isolamento social necessárias para frear o contágio do coronavírus― levou o Supremo Tribunal Federal a deixar que prefeitos e governadores tomassem as decisões sobre este ponto.

O Governo Federal tem usado a decisão como argumento para esvaziar seu papel de coordenador da gestão da epidemia. Virou essencialmente um receptor da demanda posta pelos gestores locais, que frequentemente pedem o envio de respiradores, medicamentos e testes para tratar pacientes infectados. “Houve momentos da pandemia que era impossível estabelecer um diálogo com o Ministério da Saúde. O ministro Pazuello tem se esforçado por um diálogo mais próximo com os secretários”, elogia o presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais da Saúde, Carlos Lula. Mas, segundo especialistas, o Brasil ainda enfrenta uma desarticulação nas ações para conter a epidemia.

“A gente não está olhando o território nacional, apenas porções territoriais. É como se a gente não vivesse uma relação entre os entes federados”, avalia o enfermeiro sanitarista Dário Frederico Pasche, doutor em saúde coletiva e membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Pasche, que trabalhou por dez anos no Ministério da Saúde, diz que há uma deficiência propositiva na pasta sobre as ações da pandemia. Ele analisa que manter a pasta sem um chefe titular e sob o comando interino de um militar sem familiaridade com a área é uma estratégia para seguir a linha errática defendida por Bolsonaro, que tem criticado o isolamento social e tentado se eximir da responsabilidade de minimizar as mortes pelo coronavírus, enquanto o país já soma mais de 70.000 óbitos.

“Essa interinidade [de Pazuello] é uma intervenção política. É o álibi para que o Ministério da Saúde não funcione. E ele não funcionando, acaba delegando para os outros entes atividades de coordenação que não competem a eles. Falta inteligência política e coordenação [nas ações de enfrentamento da pandemia] que cabe ao Ministério”, afirma Pasche. Sem orientações claras, municípios têm adotado seu próprio protocolo de tratamento da covid-19, com vermífugos e outros medicamentos que não têm sequer sua eficácia comprovada. “Temos militares fazendo jogo da necropolítica. Em quase dois meses, não se construiu uma estratégia nacional de combate ao vírus”, acrescenta.

A falta de comando foi alvo, neste final de semana, de críticas por parte do ministro do STF, Gilmar Mendes. Em uma live organizada pela revista Isto É ele afirmou que o vazio “não é aceitável”. ““Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Pode até se dizer que a estratégia é tirar o protagonismo do Governo federal, atribuir a responsabilidade a estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa”, afirmou ele. “Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável”, complementou. A fala causou indignação no Ministério da Defesa. O ministro, Fernando Azevedo e Silva, afirmou que entrará com uma representação na Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Mendes. “Comentários dessa natureza, completamente afastados dos fatos, causam indignação. Trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e sobretudo leviana. O ataque gratuito a instituições de Estado não fortalece a democracia”, disse, por meio de uma nota, assinada em conjunto com os três comandantes das Forças Armadas.

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