Na vida real, os impulsos se misturaram com experiências concretas e conferiram concretude a pelo menos três condutas assistenciais. Políticos, propagandistas de medicamentos, recebem pílula, dois eletrocardiogramas diários e acompanhamento médico. Pacientes acessam serviços de saúde públicos ou privados do circuito medicina-pesquisa e obtêm explicações sobre proteção e adoecimento. Parcela da população é beneficiária de pacotes com comprimidos, supostamente eficazes, entregues em casa, espaços públicos improvisados e algumas empresas de planos de saúde.
Presidente da República e prefeitos que recomendam remédio antimalárico e distribuem vermífugos omitem a parte principal da história: quando ficam doentes, correm para hospitais privados de excelência, prestigiados inclusive porque pararam de incluir essas drogas em seus protocolos. Valentes libertários, defensores da liberdade inclusive para se tornar doente e infectar os demais, não usam apenas comprimido e copo com água, contam com uma potente retaguarda. O ímpeto de estar no front de peito aberto é aparente, tanto quanto ilusório o enunciado de vivência pessoal favorável ao medicamento.
A cronologia de declarações favoráveis à hidroxicloroquina mostra a dianteira de Trump como charlatão oficial. Em 19 de março, o presidente dos EUA disse que o medicamento poderia “mudar o jogo”. O mandatário brasileiro imitou o americano. Em 21 de março anunciou aumento da produção de cloroquina. Ambos os presidentes disseram terem tomado o remédio. Trump assegurou no início de junho que não teve efeitos colaterais, e Bolsonaro se dirigiu “aos que torcem contra o uso da cloroquina, mas não apresentam alternativa” para informar que está muito bem.
Celebrar as interações humanas movidas por vontades individuais tem efeitos deletérios sobre a configuração institucional. O sumiço do Ministério da Saúde foi ocupado por novos arranjos institucionais. Empresas de saúde cloroquinistas se uniram a burocratas de ocasião, ocupantes de cargos no Ministério da Saúde que irradiam orientações para a prescrição de remédios para médicos, redes sociais e prefeituras.
Celebrar as interações humanas movidas por vontades individuais tem efeitos deletérios sobre a configuração institucional. O sumiço do Ministério da Saúde foi ocupado por novos arranjos institucionais. Empresas de saúde cloroquinistas se uniram a burocratas de ocasião, ocupantes de cargos no Ministério da Saúde que irradiam orientações para a prescrição de remédios para médicos, redes sociais e prefeituras.
Outro enclave reúne hospitais filantrópicos privados de São Paulo, que atendem a estratos de maior renda, com grandes empresas e algumas instituições públicas. Recursos doados foram aplicados para a expansão da oferta de leitos permanentes e em hospitais de campanha, telemedicina, aquisição de equipamentos e testes. São diretrizes de ação distintas. A primeira cruzada tem como missão levar medicamentos para todos. A segunda concentra-se em torno de lacunas assistenciais. Entretanto, nenhum dos esforços empresariais é capaz de desempenhar o papel de coordenação de estratégias populacionais com as iniciativas de assistência individual — reservado a autoridades sanitárias públicas.
A desconfiguração do SUS exponencia as assimetrias “naturais” de poder e desigualdades, faz do estado de natureza um ideal de sociabilidade. A briga não é entre sujeitos individuais arrojados contra cientistas hesitantes. A defesa da espontaneidade, do apelo aos instintos, ocorre em meio à dissolução dos nexos normativos e regulatórios estatais. Sem a esfera pública, não há autocontenção e reconhecimento dos danos que podemos infligir aos demais. Esse legado de destruição, se não isolado, pode contaminar os processos científicos públicos de avaliação, que determinam a segurança e efetividade de medicamentos, e vacinas que asseguram avanços no controle de doenças. Otimistas são os que não se conformam com uma mortandade de rebanho.
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