Caciques partidários já estão celebrando o “golpe do fundão” e ainda se valendo de um discurso aparentemente puro: o de que é preferível bancar campanhas políticas com dinheiro público a voltar com o financiamento privado.
Não é isso que está em jogo hoje. O argumento é puro sarcasmo.
O financiamento privado, de fato, serviu de bandeja, durante anos, para esquemas corruptos revelados em grande parte pela Lava Jato, aquela operação aniquilada por petistas e bolsonaristas juntos.
A discussão sobre como bancar campanhas públicas poderá, sim, ser retomada em algum momento, com a criação de regras mais rígidas ou estabelecimento de limites de valores, mas isso jamais deveria ocorrer neste momento.
O que o Congresso está fazendo nesta quinta-feira (15), com o apoio ou, no mínimo, a omissão da maioria dos líderes partidários, é dar um soco no estômago de brasileiros que já estão sofrendo com um sociopata no poder em meio a uma pandemia que matou mais de meio milhão de pessoas.
O Parlamento brasileiro escancara hoje, sem pudor algum, a prioridade de grande parte de seus integrantes: no final das contas, de novo e sempre, o que interessa é continuar no poder.
A intensidade da retomada da economia brasileira no esperado pós-pandemia ainda é uma incerteza, a inflação assusta, o desemprego é massivo, a miséria e a fome aumentam e os políticos com mandato em Brasília decidiram, a toque de caixa, em mais uma tratorada, praticamente triplicar o valor do montante do nosso dinheiro destinado às campanhas políticas no ano que vem: de R$ 2 bilhões para R$ 5,7 bilhões.
Enquanto isso, a renda do brasileiro despenca, faltando dinheiro em muitas famílias para o básico, como comprar o botijão de gás de quase R$ 100 e encher o tanque do carro velho, com gasolina em torno de R$ 6 o litro.
Na última terça-feira, os deputados aprovaram um importante projeto para regulamentar a farra dos chamados supersalários no funcionalismo público. A Câmara quis dar recado para a população brasileira de que está disposta — até de maneira surpreendente — a tirar da gaveta propostas que realmente atendam aos anseios da sociedade.
Mas, na hora de “cortar na própria carne” — essa expressão que congressistas adoram usar –, fizeram justamente o contrário. O texto que turbinou o fundão foi apresentado perto da meia-noite de ontem. A votação na Comissão Mista de Orçamento (CMO), pela manhã, foi rapidinha. No início da tarde, já em sessão do Congresso, os deputados optaram pela estratégia da votação simbólica na hora de votar o destaque do “golpe do fundão”. Com isso, impediram os brasileiros de saber como cada um deles votou — mas a votação do texto-base da LDO serve de algum parâmetro.
Em instantes, será a vez de os senadores, na sessão do Congresso ainda em andamento, se posicionarem: ou revertem a decisão da Câmara ou sacramentam um “golpe” em plena pandemia.
O Parlamento se gaba de ter feito muito na crise sanitária, apontando o dedo, com muita facilidade, para gestores locais e para o Executivo, com razão. Mas agora seria a hora de mostrar que não foi teatro e hipocrisia.
De novo: não se discute neste momento o tipo de financiamento de campanha; discute-se, sim, um aumento estrondoso do total de verbas públicas destinadas a que deputados e senadores tentem se reeleger em 2022. Tudo isso como se a dinheirama do Bolsolão, fruto do “orçamento secreto”, que já jorrou bilhões para as bases eleitorais, não fosse suficiente.
O “golpe do fundão” é tão revoltante quanto a postura de Jair Bolsonaro desde o início da pandemia. É a versão do “e daí?” de deputados e senadores
Os diversos protestos contra a ditadura cubana que eclodiram pela Ilha trouxeram ao centro do debate o papel do embargo americano na perene crise de escassez que o país caribenho enfrenta. O que talvez surpreenda o leitor é saber que, mesmo com o embargo, Cuba comercia internacionalmente mais que o Brasil.
Segundo dados do Banco Mundial, na média da década de 2010-19, o país caribenho transacionou internacionalmente 36% de seu PIB, enquanto o Brasil apenas 26%. Algumas características explicam parcialmente essas diferenças.
Países de mercado interno grande, como o Brasil, tendem a comerciar menos com o resto do mundo. Mas o Brasil é um país fechado mesmo quando consideramos suas características particulares.
Nosso nível de comércio é mais baixo que o de países com renda similar ou de população similar à nossa.
É fácil entender porque o embargo prejudica Cuba: ao dificultar o acesso do país a produtos mais baratos, mais variados e de melhor qualidade vindos do exterior, a população tem seu bem estar reduzido.
Além disso, perde-se o intercâmbio internacional que permite a firmas e trabalhadores domésticos terem acesso a novas técnicas e tecnologias.
Tais ganhos em consumo e produtividade são chamados, em economia, de ganhos com o comércio. Há evidência de que eles podem ser grandes. Um influente trabalho de Ralph Ossa mostra que, para a maior parte dos países, os ganhos estáticos, via acesso a produtos mais baratos, é maior que 55% do PIB.
Quando incorporados os ganhos dinâmicos, via difusão de ideias e tecnologias, o efeito é ainda maior. Os economistas Paco Buera e Ezra Oberfield estimam que esse mecanismo pode explicar entre 40% a 70% do imenso ganho de renda experimentado por China, Coreia do Sul e Taiwan entre 1960 e 2000.
O que é mais difícil entender é por que, dados esses potenciais ganhos com o comércio, o Brasil continua tão fechado.
Uma explicação é que há sempre perdedores e ganhadores. Mas se empresas que perderiam com a abertura podem colocar emissários nos corredores em Brasília para evitar mudanças, isso não é verdade para os milhões de consumidores que se beneficiariam de produtos mais baratos.
Como enfatizam os economistas políticos, quando os benefícios de uma reforma são difusos na sociedade e as perdas concentradas em alguns atores, reformar se torna muito difícil.
A estrutura da burocracia comercial brasileira tampouco ajuda. Alterações estruturais nos impostos de importação demandam aprovação de todos os países do Mercosul, com os quais o Brasil compartilha tarifas numa união alfandegária.
Mesmo mudanças pontuais precisam da chancela de diversos ministérios em conselhos onde privilegia-se o consenso. Tudo isso trabalha contrariamente a mudanças.
Outra potencial explicação são os efeitos distributivos regionais. Uma série de trabalhos de autoria de Rafael Dix-Carneiro, economista brasileiro da Universidade Duke, demonstrou que a liberalização comercial parcial realizada no Brasil durante os anos 1990 levou a resultados díspares em regiões distintas do país.
As regiões relativamente mais ricas, que concentravam os setores nos quais a liberalização foi mais intensa, passaram por uma perda relativa de emprego formal em relação às regiões menos afetadas.
Isso ocorreu porque os trabalhadores têm dificuldade de se mover entre regiões e setores após perderem seus empregos, de modo que o ajuste ao choque econômico é lento.
Isso não indica que os ganhos sobre o comércio não existem, mas simplesmente que eles não são distribuídos uniformemente entre regiões e setores. Para ser viável, portanto, uma política de abertura comercial precisa considerar essa realidade e facilitar a reinserção de trabalhadores de regiões afetadas no mercado de trabalho por meio de políticas como seguro-desemprego, subsídios à realocação e cursos de requalificação.
Por fim, há também uma resistência ideológica em reconhecer a realidade dos ganhos com o comércio. A despeito da literatura científica sobre o assunto, muitos políticos e gestores ainda veem as importações como uma perda e não como veículos de ganhos com o comércio.
O exemplo cubano pode ajudar. Quase todos percebem que o embargo imposto contra Cuba limita o bem-estar e prejudica o desenvolvimento da Ilha. Falta a alguns perceberem que o auto-imposto embargo brasileiro tem consequências reais sobre o nosso bem-estar e desenvolvimento.
A indagação que paira sobre as nossas cabeças é se o nosso trenzinho caipira começou, finalmente, a subir a serra, ou se prossegue em seu patético desnorteio, descambando rumo ao abismo.
As últimas semanas trouxeram duas notícias alvissareiras. Primeiro, a de que o impulso do agronegócio tende a dinamizar o crescimento econômico nos próximos meses, a ponto até, quem sabe, de estimular a entrada de investimentos estrangeiros. Segundo, a última pesquisa eleitoral do Datafolha ofereceu claras indicações de que as urnas mandarão o sr. Jair Bolsonaro de volta ao lugar de onde nunca devia ter saído.
Chamar de “trenzinho caipira” um país com um agronegócio poderoso pode soar como um atrevimento. É como chamar de “carroça” a nona ou décima maior economia do mundo. Pelo critério do volume absoluto, não há dúvida, podemos sair por aí batendo nosso bumbo caipira. Mas em seguida precisamos examinar a renda anual por habitante, a catastrófica situação do nosso sistema de ensino, o desempenho de, no mínimo, 30% dos indivíduos com mais de 15 anos, já praticamente vitimados pela sentença de morte do analfabetismo funcional. No tocante ao saneamento – e não precisamos retomar aqui o tema da covid-19 –, sabemos que quase metade dos domicílios continua sem ligação com a coleta pública de esgotos.
Ou seja, pelo ângulo das condições de vida, não há o que discutir. Somos um país paupérrimo e obscenamente desigual.
Neste ponto, cumpre-nos retomar o indiscutível sucesso do agronegócio. Por vigoroso que seja, um processo de crescimento centrado num só setor, sem diversificação, dificilmente nos proporcionará a desejada elevação do piso social a um nível razoável e a redução das desigualdades. Podemos construir um país riquíssimo para 10% ou 20% da população, mas os restantes 90% ou 80% legarão a seus descendentes a mesma triste condição em que lhes foi dado viver. Diversificar como, num país que não consegue impulsionar a pequena empresa, que não se notabiliza pelo desenvolvimento de tecnologias e tem em seu seio um mar de semianalfabetos?
A confirmar-se o cenário eleitoral entreaberto pela pesquisa do Datafolha, e tendo em conta a notória inapetência dos partidos de centro, Lula subirá novamente a rampa do Planalto no dia 1.º de janeiro de 2023 e lá permanecerá p or mais oito anos. Isso é bom ou ruim? Difícil dizer com tanta antecipação, pois Lula não é um, são vários. Há o Lula demagogo, mentiroso, leniente com a corrupção, que imagina resolver os problemas sociais do Brasil apenas com transferências de renda, e há o Lula esperto, afeito ao jogo político, capaz de entender o xadrez das negociações. O que decididamente não lhe convém é pensar que tirará de letra os problemas de seu eventual retorno à Presidência. O Brasil será quase tão pobre como é hoje, as desigualdades serão as mesmas, e será um país muito mais rancoroso, muito menos disposto a comprar suas tiradas de palanqueiro.
A tragédia que se seguiu ao retorno de Getúlio Vargas em 1950 é um paralelo que não deve ser esquecido. O personagem central era o mesmo, mas as condições que ele encontrou pouco tinham que ver com as de seu tempo de ditador.
Cabe aqui mais uma palavra sobre a caricata figura de Jair Bolsonaro. Do desconsolo de sua passagem pela Presidência só consigo extrair um ponto positivo: que desta vez a reforma política entre realmente na agenda política do País. E que se estabeleça, desde já, sem tergiversação, esta premissa básica: reforma política é assunto sério demais para ser deixado sob a responsabilidade apenas dos parlamentares e demais agentes políticos sediados em Brasília. Contribuições e pressões de fora para dentro: eis o nome do jogo. De elites preguiçosas o Brasil já teve o suficiente.
A pedra de toque da reforma política é, sem dúvida, a engrenagem formada pelo sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo) e pelo sistema eleitoral. É fácil prever que certos interesses e certa malta de ignorantes esgrimirá mais uma vez o argumento de que o parlamentarismo não condiz com uma suposta constante de nossa História: a mística devoção à figura do “chefe” e um irresistível desejo de obedecer. Nessa linha de raciocínio, só esse “chefe” pode conferir estabilidade e consistência ao exercício do poder. Essa tese é continuamente esgrimida por uma parcela da classe política que deve ter passado por um surto de amnésia e dele não conseguiu se recuperar.
Nunca é demais lembrar que, além de Getúlio e João Goulart, derrubados, o processo sucessório presidencial passou por turbulências durante os 21 anos do governo militar, deixando entrever fendas graves mesmo entre a alta oficialidade das Forças Armadas. Relembro, a propósito, a pitoresca demissão do ministro do Exército general Sylvio Frota, que sabidamente tramava alguma ação heterodoxa contra o general-presidente Ernesto Geisel. Convocado ao palácio, Frota esboçou uma reação, mas ouviu do general Geisel uma resposta concisa: “O cargo é meu”.
Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. E há quem tenha medo que o medo acabe
Mia Couto
Ai de nós todos omnipresente, reconhecida seja nossa origem e destino comuns. Abertos estejamos aos sinais de que tanto o céu pode resplandecer na terra como pode desabar sobre ela/ Que o sentido último das coisas seja garantir vida plena para todos/ Saciada a fome de pão e mantida insaciável a fome de justiça/ Perdoar e ser perdoados para juntar, reunir, recompor o que foi segregado, devastado e vilipendiado/ Sem mais ganância e soberba, livre dos males da negação dos elos que nos são inerentes.
Esta seria uma releitura possível da Oração sintetizadora do cristianismo nestes tempos catastróficos, na perspectiva dos povos. Na direção contrária, invocada como um código premeditado, torna-se um temerário salvo-conduto, um subterfúgio. Cobertura conveniente para práticas inomináveis. Que conste que em um dos países mais violentos, intolerantes e desiguais do mundo, somos cristãos, ok?
Depois da tragédia nacional programada e consumada, oração sob ordem. Das mãos em arminha às mãos juntas. Comecem a rezar! Silenciem as perguntas, as cobranças, os inquéritos, as investigações. Sob a chantagem de voltar à carga, o criminoso genocida absolve a si mesmo.
O velho método da anistia como esquecimento compulsório. Nós que esqueçamos os extermínios e as pilhagens calculadas. Em troca do apagamento dos efeitos das guerras sujas, e das negociatas nelas embutidas, retirou-se momentaneamente o status de terrorismo ou de banditismo endereçado aos movimentos de resistência popular e democrática. Foi essa a Anistia possível em 1979? E qual anistia propõem agora Bolsonaro e as frações capitalistas que lhe dão suporte direto ou tácito?
O que pedem que esqueçamos?
As centenas de milhares de mortos e sequelados – seja por improvidência governamental, seja por proposição deliberada de turbinar o capitalismo pandêmico com máxima extração de commodities, arrasando territórios, biomas e povos originários. Os massacres generalizados e os assassinatos seletivos perpetrados por forças policiais-milicianas mercenárias a mando de máfias territorializadas no campo e nas periferias das cidades.
Esqueçam os “excessos”, dizem, e aí então voltaremos à velocidade “normal” da máquina de espoliação necroliberal.
A implosão e o desmanche dos instrumentos de regulação dos mercados. A desmoralização e sucateamento dos serviços públicos e perseguição dos servidores públicos que não estejam a serviço de máfias privatistas, livre atuação de quadrilhas parlamentares especializadas na intermediação entre orçamentos públicos e empresas corruptoras. As privatizações como um botim entre amigos do rentismo, leilões ininterruptos de novas oferendas para megafusões do capitalismo global que apequenam e rebaixam a nação. Esqueçam tudo isso, reiteram, esqueçam o que podia ter sido, esqueçam o futuro.
Perdão, na meta-análise de Hannah Arendt, pressupõe recomposição da frágil e complexa teia social. Isso quer dizer: refazimento e reparação, ponto a ponto, nenhum tipo de esquecimento. Por isso imprescritíveis são os crimes de Mariana, Brumadinho, Hydro, Belo Monte, Santo Antônio e Jirau e tantos outros. Não se esquecerá jamais Manaus e demais cidades, deixadas à míngua na pandemia. Sem provisão de insumos básicos para a saúde da população, sem testes, sem leitos, sem oxigênio, sem vacinas, o país conseguiu a “proeza” de abarrotar o mundo de outros “insumos básicos” (grãos, carne e ferro) em função do metabolismo do capital. Os novos bilionários brasileiros, alçados na pandemia, mostram não há paradoxo nisso.
Não há perdão sem reversão das trajetórias que nos trouxeram até o fim deste poço sem fundo. Não é questão de gosto por vingança ou por alguma crença no punitivismo. Uma dívida histórica, social, ecológica e sanitária – contabilizada na contramão da dívida propriamente dita – será cobrada devidamente para que não se perca o horizonte do reaprendizado social necessário e da centralidade da agenda da desconcentração e partilha do poder econômico e político.
O novo normal do bolsonarismo sem Bolsonaro, propalado pela direita empresarial, que tenta se apresentar como centro político, implica em um regime de normalização e consolidação do conjunto das barbáries cometidas nos últimos anos. Normalidade futura oferecida pelos mercados para manter e expandir seus ganhos vinculados a novas precarizações, privatizações e espoliações físicas e simbólicas. O capitalismo pandêmico exponenciado no Brasil não foi uma fatalidade, foi e é uma estratégia, o que não depende necessariamente de uma enteléquia premeditada dos capitais. Trataram de potencializar efeitos socialmente devastadores com focos determinados. Assim, após cada crise “terminal” do capitalismo, tem-se um adicional de calamidade seletiva sobre classes, etnias, territórios e espaços anteriormente segregados.
A banalidade do mal, é preciso que se compreenda, é o mal maior. É quando psicopatia, racismo, sexismo, todas formas de crueldade e ostentação se enraízam em práticas, dispositivos, instituições, mercados e imaginários. O mal extremo não tem profundidade nem dimensão diabólica, vinculada a um único ente irradiador, mas a leviandade de um fungo que se espalha horizontalmente, pedestre e comezinho. O genocídio reinventado no Brasil não se limita à perseguição e extermínio de minorias, mas compreende descartes planejados e justificados por uma lógica intrínseca. Genocídio multidimensional cometido não apenas por tiranos infames, mas por camadas de mandatários da isenção, da mediocridade e do comportamento automatizado pelos mercados.
Perdoai nossas ofensas? Vai passar? Depois de uma sucessão de pilhas de corpos, de amontoados de destroços, não dá para passar por cima disso. Não dá para simplesmente esperar que haja renda, emprego, territórios e instituições nem mesmo nas já precárias condições anteriores. A ofensiva já estava arquitetada quando chegou a covid-19. O fascismo de mercado adotou de pronto a pandemia como um fluidificador geral das relações sociais e econômicas para dar vazão à “seleção natural” ou à espontaneidade das relações de força. Sem mais distinções entre o “de fato” e o “de jure”. Não bastará remover o facínora de plantão.
Depois de colocar a sociedade sob risco e sob ataque deliberado, antes e durante a pandemia; depois de abrir a porteira para as quadrilhas pilharem o setor público, o SUS, o meio ambiente e os territórios; agora posa de vítima perseguida. Falsa polêmica do voto impresso como cortina de fumaça, falsa promessa de desativar o modo-golpe de sua gestão, com o beneplácito made in Fux (they trust).
Em operação “Facada Continuada”, espetacularizam sintomas que advém da trégua escatológica na forma de um quase-martírio, devidamente amparado pelo médico pessoal e sua clínica atestando o mal de origem: a facada como mito de origem. O uso sórdido da teoria conspiratória do “longo braço armado da esquerda” apenas torna mais crível a hipótese do auto-atentado perpetrado por um infiltrado que depois alega insanidade mental.
Vai passar, o que?
Na canção de Chico Buarque, “Vai passar” tem conotação ativa, no sentido de atravessar, de desfilar, sentido imerso naquela multidão solar que veio às ruas em 1984, de onde brotou a canção. O movimento das Diretas Já era o campo representacional do que podia significar o fim da ditadura empresarial-militar de 1964. A loucura necessária frente ao desarrazoado poder; o sanatório geral, a ruptura estrutural contra todas as desigualdades; o “samba popular” passando e triunfando na avenida. Mas o problema é que passou raspando, ou passou longe, a tal da “redemocratização” e não vai mais passar, pelo menos não do mesmo jeito. O que e como vai passar, nesse momento, vai depender da nossa capacidade de transitar pela linha do tempo, de compartilhar práticas, propósitos e sentimentos.
Só aos poucos vai se revelando a dimensão da grande enchente no oeste alemão: dezenas de mortos, numerosos desaparecidos; as massas d'água devastaram localidades inteiras, arrastando consigo árvores, automóveis e casas.Sempre houve catástrofes naturais desse tipo, mesmo antes da era industrial, propelida à base de combustíveis fósseis. Mas, à medida que o ser humano vai duplicando o volume de dióxido de carbono na atmosfera, já tendo aquecido o planeta em 1 ºC, aumentam o número e a proporção dos desastres.A coincidência dos eventos neste verão do Hemisfério Norte forma um quadro alarmante da crise climática global: enquanto vastas áreas da Alemanha estão debaixo d'água, a América do Norte se transformou, em parte, num forno, com mortes por calor, temperaturas-recorde e incêndios florestais que a água sequer consegue apagar, pois se evapora antes.
Pelo menos, neste julho de 2021 pouco a pouco se começa a falar de mitigação, a contenção das piores consequências da mudança climática. A Comissão Europeia acaba de apresentar o pacote Fit for 55, prevendo medidas concretas para a redução de emissões nocivas ao clima, como a proibição de novos motores de combustão em toda a União Europeia a partir de 2035.O candidato conservador cristão à chefia do governo alemão, Armin Laschet, logo se manifestou contra "a política definir uma data". A jovem ativista sueca do clima Greta Thunberg rebateu no Twitter: "Então é oficial: a menos que a UE rasgue o seu pacote #Fitfor55¸ o mundo não ter a menor chance de permanecer abaixo de 1,5 ºC de aquecimento global."Com meus 32 anos, até mesmo em termos de geração estou mais próximo de Thunberg do que de Laschet. Dá-me medo pensar que as enchentes e ondas de calor deste verão sejam apenas um gostinho prévio do estado de coisas que viverei quando tiver a idade que o político democrata-cristão tem hoje – e mais ainda diante do que gerações futuras vão enfrentar.Para que estas tenham uma chance de sobrevivência, a já mencionada mitigação climática é um ponto decisivo, porém praticamente tão importante quanto ela é a adaptação às condições de vida numa Terra superaquecida.Neste verão, a Alemanha teve que suportar, até o momento, uma semana de calor excessivo. E logo o Departamento Federal de Estatísticas registrou 11% mais óbitos. Mal dá para imaginar o que seria do país se as temperaturas subissem a 46, 47 ou 49 ºC, como há pouco na localidade canadense de Lytton. Esta se situa um pouco ao norte do paralelo 50 N, ou seja: bem na latitude de pitorescas cidades alemãs como Boppard ou Coburg.Portanto está mais do que na hora de adotarmos medidas também nesse segundo aspecto. Contra o calor extremo, praticamente não existem medidas de adaptação, mas conceitos urbanísticos podem, ao menos, contribuir um pouco a combatê-lo: corredores de ar fresco, permitindo uma troca de ar; gramados que ajudem a baixar a temperatura, em vez de concreto e asfalto que armazenam ainda mais calor.Também existem recursos comprovados contra inundações e aguaceiros que vão além de canalizações mais eficientes e válvulas para prevenção de escoamento inverso. De fato, ao longo de diversos rios da Alemanha há muito tempo existem diques, barragens e reservatórios. Em alguns pontos há também várzeas, funcionando como zonas-tampão que podem ser inundadas sem problemas.No futuro deverá ser preciso construir esse tipo de áreas de prevenção de enchentes também nas cidades. Em Roterdã, Holanda, por exempo, uma praça contém, intencionalmente, três grandes tanques. Quando o tempo está bom, pode-se sentar nos degraus ou andar de skate pelas tubulações; se chove, os reservatórios enchem-se sucessivamente.Também Miami Beach, Estados Unidos, está implementando uma adaptação climática radical: toda a cidade insular vai sendo gradualmente elevada e provida de um potente sistema subterrâneo de canalizações, bacias e bombas de drenagem, para não ser totalmente submersa apesar da elevação do nível do mar e dos furacões cada vez mais violentos.Existem vários projetos como esses, os quais – mesmo não sendo capazes de evitar todos os danos causados pelas presentes e futuras intempéries extremas – podem ao menos reduzir um pouco seu impacto. Na luta contra a crise climática, o mais importante continua sendo, de fato, dar rapidamente fim às emissões de CO2. Mas também precisamos considerar com maior consequência como nos protegermos melhor de seus efeitos devastadores.David Ehl
O Brasil, guardião do maior bioma tropical do mundo e a caminho de se tornar o principal exportador agrícola, tem uma legislação ambiental exemplar e reúne as condições para ser uma liderança no desenvolvimento ambientalmente sustentável. Mas, apesar das juras protocolares do presidente Jair Bolsonaro na cúpula ambiental promovida em abril pelo presidente norte-americano, Joe Biden, não há sinal de que o seu governo pretende rever sua hostilidade à causa ambiental.
Após a saída desonrosa do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, suspeito de integrar um esquema de exportação de madeira ilegal, o novo ministro, Joaquim Leite, tem ao menos a vantagem de ser mais discreto. Mas talvez seja até demais. Ele ainda está a dever um plano de ação para reverter a escalada do desmatamento. A Conferência do Clima da ONU (COP 26), em novembro, será decisiva para a agenda ambiental global e, logo, para os destinos do Brasil. O ministro precisará de muito mais que discrição para apresentar resultados consistentes e compromissos convincentes.
Sem Salles, a estridência antiambiental foi assumida por próceres bolsonaristas, como a deputada Carla Zambelli (PSL-SP). Sem qualquer experiência na área ambiental, Zambelli foi inoculada pelo governo na presidência da Comissão do Meio Ambiente da Câmara para avançar pautas caras ao seu líder, como o desmonte dos órgãos de fiscalização, a pretexto de combater uma suposta “indústria de multas”, ou propostas intempestivas de interesse puramente corporativo, como o projeto apresentado em 2014 pelo então deputado Jair Bolsonaro de incluir policiais militares e bombeiros no Sistema Nacional do Meio Ambiente.
O Planalto, por sua vez, retirou arbitrariamente a atribuição do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) de divulgar os dados sobre queimadas. A política de “matar o mensageiro” não é nova. Em 2019, o presidente exonerou o diretor do Inpe, Ricardo Galvão. Sem apresentar evidências, Bolsonaro acusou Galvão de agir “a serviço de uma ONG” para “espancar” os dados e prejudicar “o nome do Brasil e do governo”.
O Inpe é um órgão estritamente técnico ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia e bem reputado internacionalmente há décadas. Os dados passarão a ser divulgados pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), ligado ao Ministério da Agricultura. “O Inpe não tinha essa questão de conflito de interesses”, disse Galvão. “Essa mudança, claramente, é para controlar a informação.”
Trata-se de uma verdadeira “pedalada ambiental”, que fere o princípio da transparência da administração pública.
Ante a política de terra arrasada (literalmente) do governo, aumenta a responsabilidade dos governos subnacionais. Como mostrou reportagem do Estado, o grupo Governadores pelo Clima, que conta com todos os governadores, exceto os de Roraima e Rondônia, ambos bolsonaristas, se encontrou com diplomatas europeus para discutir investimentos em energia renovável. Os Estados da Região Amazônica estão apresentando propostas para receberem recursos de fundos de investimento, como o Fundo Leaf, lançado por EUA, Reino Unido e Noruega com a participação de empresas privadas para remunerar iniciativas de preservação nos países tropicais.
Uma pauta crucial para os Estados onde a agropecuária tem força é divulgar iniciativas sustentáveis do agronegócio e medidas de repressão ao desmatamento ilegal. O movimento também chegou aos municípios. Mais de 100 deles relataram ao Instituto Clima e Sociedade (ICS) ter planos de ações climáticas.
São sinais de que se dissemina na gestão pública a consciência de que a pauta ambiental não é apenas um imperativo moral, mas econômico. Em contraste, tal como no combate à pandemia, o obscurantismo de Jair Bolsonaro se comprovou irremediável na área ambiental. Os demais Poderes da República, os governos subnacionais e a sociedade civil não podem poupar esforços para erguer um cordão sanitário capaz ao menos de salvaguardar as conquistas ambientais brasileiras até a chegada de dias melhores.