Ai de nós todos omnipresente, reconhecida seja nossa origem e destino comuns. Abertos estejamos aos sinais de que tanto o céu pode resplandecer na terra como pode desabar sobre ela/ Que o sentido último das coisas seja garantir vida plena para todos/ Saciada a fome de pão e mantida insaciável a fome de justiça/ Perdoar e ser perdoados para juntar, reunir, recompor o que foi segregado, devastado e vilipendiado/ Sem mais ganância e soberba, livre dos males da negação dos elos que nos são inerentes.
Esta seria uma releitura possível da Oração sintetizadora do cristianismo nestes tempos catastróficos, na perspectiva dos povos. Na direção contrária, invocada como um código premeditado, torna-se um temerário salvo-conduto, um subterfúgio. Cobertura conveniente para práticas inomináveis. Que conste que em um dos países mais violentos, intolerantes e desiguais do mundo, somos cristãos, ok?
Depois da tragédia nacional programada e consumada, oração sob ordem. Das mãos em arminha às mãos juntas. Comecem a rezar! Silenciem as perguntas, as cobranças, os inquéritos, as investigações. Sob a chantagem de voltar à carga, o criminoso genocida absolve a si mesmo.
O velho método da anistia como esquecimento compulsório. Nós que esqueçamos os extermínios e as pilhagens calculadas. Em troca do apagamento dos efeitos das guerras sujas, e das negociatas nelas embutidas, retirou-se momentaneamente o status de terrorismo ou de banditismo endereçado aos movimentos de resistência popular e democrática. Foi essa a Anistia possível em 1979? E qual anistia propõem agora Bolsonaro e as frações capitalistas que lhe dão suporte direto ou tácito?
O que pedem que esqueçamos?
As centenas de milhares de mortos e sequelados – seja por improvidência governamental, seja por proposição deliberada de turbinar o capitalismo pandêmico com máxima extração de commodities, arrasando territórios, biomas e povos originários. Os massacres generalizados e os assassinatos seletivos perpetrados por forças policiais-milicianas mercenárias a mando de máfias territorializadas no campo e nas periferias das cidades.
Esqueçam os “excessos”, dizem, e aí então voltaremos à velocidade “normal” da máquina de espoliação necroliberal.
A implosão e o desmanche dos instrumentos de regulação dos mercados. A desmoralização e sucateamento dos serviços públicos e perseguição dos servidores públicos que não estejam a serviço de máfias privatistas, livre atuação de quadrilhas parlamentares especializadas na intermediação entre orçamentos públicos e empresas corruptoras. As privatizações como um botim entre amigos do rentismo, leilões ininterruptos de novas oferendas para megafusões do capitalismo global que apequenam e rebaixam a nação. Esqueçam tudo isso, reiteram, esqueçam o que podia ter sido, esqueçam o futuro.
Perdão, na meta-análise de Hannah Arendt, pressupõe recomposição da frágil e complexa teia social. Isso quer dizer: refazimento e reparação, ponto a ponto, nenhum tipo de esquecimento. Por isso imprescritíveis são os crimes de Mariana, Brumadinho, Hydro, Belo Monte, Santo Antônio e Jirau e tantos outros. Não se esquecerá jamais Manaus e demais cidades, deixadas à míngua na pandemia. Sem provisão de insumos básicos para a saúde da população, sem testes, sem leitos, sem oxigênio, sem vacinas, o país conseguiu a “proeza” de abarrotar o mundo de outros “insumos básicos” (grãos, carne e ferro) em função do metabolismo do capital. Os novos bilionários brasileiros, alçados na pandemia, mostram não há paradoxo nisso.
Não há perdão sem reversão das trajetórias que nos trouxeram até o fim deste poço sem fundo. Não é questão de gosto por vingança ou por alguma crença no punitivismo. Uma dívida histórica, social, ecológica e sanitária – contabilizada na contramão da dívida propriamente dita – será cobrada devidamente para que não se perca o horizonte do reaprendizado social necessário e da centralidade da agenda da desconcentração e partilha do poder econômico e político.
O novo normal do bolsonarismo sem Bolsonaro, propalado pela direita empresarial, que tenta se apresentar como centro político, implica em um regime de normalização e consolidação do conjunto das barbáries cometidas nos últimos anos. Normalidade futura oferecida pelos mercados para manter e expandir seus ganhos vinculados a novas precarizações, privatizações e espoliações físicas e simbólicas. O capitalismo pandêmico exponenciado no Brasil não foi uma fatalidade, foi e é uma estratégia, o que não depende necessariamente de uma enteléquia premeditada dos capitais. Trataram de potencializar efeitos socialmente devastadores com focos determinados. Assim, após cada crise “terminal” do capitalismo, tem-se um adicional de calamidade seletiva sobre classes, etnias, territórios e espaços anteriormente segregados.
A banalidade do mal, é preciso que se compreenda, é o mal maior. É quando psicopatia, racismo, sexismo, todas formas de crueldade e ostentação se enraízam em práticas, dispositivos, instituições, mercados e imaginários. O mal extremo não tem profundidade nem dimensão diabólica, vinculada a um único ente irradiador, mas a leviandade de um fungo que se espalha horizontalmente, pedestre e comezinho. O genocídio reinventado no Brasil não se limita à perseguição e extermínio de minorias, mas compreende descartes planejados e justificados por uma lógica intrínseca. Genocídio multidimensional cometido não apenas por tiranos infames, mas por camadas de mandatários da isenção, da mediocridade e do comportamento automatizado pelos mercados.
Perdoai nossas ofensas? Vai passar? Depois de uma sucessão de pilhas de corpos, de amontoados de destroços, não dá para passar por cima disso. Não dá para simplesmente esperar que haja renda, emprego, territórios e instituições nem mesmo nas já precárias condições anteriores. A ofensiva já estava arquitetada quando chegou a covid-19. O fascismo de mercado adotou de pronto a pandemia como um fluidificador geral das relações sociais e econômicas para dar vazão à “seleção natural” ou à espontaneidade das relações de força. Sem mais distinções entre o “de fato” e o “de jure”. Não bastará remover o facínora de plantão.
Depois de colocar a sociedade sob risco e sob ataque deliberado, antes e durante a pandemia; depois de abrir a porteira para as quadrilhas pilharem o setor público, o SUS, o meio ambiente e os territórios; agora posa de vítima perseguida. Falsa polêmica do voto impresso como cortina de fumaça, falsa promessa de desativar o modo-golpe de sua gestão, com o beneplácito made in Fux (they trust).
Em operação “Facada Continuada”, espetacularizam sintomas que advém da trégua escatológica na forma de um quase-martírio, devidamente amparado pelo médico pessoal e sua clínica atestando o mal de origem: a facada como mito de origem. O uso sórdido da teoria conspiratória do “longo braço armado da esquerda” apenas torna mais crível a hipótese do auto-atentado perpetrado por um infiltrado que depois alega insanidade mental.
Vai passar, o que?
Na canção de Chico Buarque, “Vai passar” tem conotação ativa, no sentido de atravessar, de desfilar, sentido imerso naquela multidão solar que veio às ruas em 1984, de onde brotou a canção. O movimento das Diretas Já era o campo representacional do que podia significar o fim da ditadura empresarial-militar de 1964. A loucura necessária frente ao desarrazoado poder; o sanatório geral, a ruptura estrutural contra todas as desigualdades; o “samba popular” passando e triunfando na avenida. Mas o problema é que passou raspando, ou passou longe, a tal da “redemocratização” e não vai mais passar, pelo menos não do mesmo jeito. O que e como vai passar, nesse momento, vai depender da nossa capacidade de transitar pela linha do tempo, de compartilhar práticas, propósitos e sentimentos.
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