Em entrevista a Marcelo Osakabe, do Valor, Ricardo Paes de Barros, destacado estudioso da pobreza no Brasil, chama atenção para o fato de que os pobres mais pobres estão perdendo suas estratégias de sobrevivência. Isto é, a de busca e uso dos recursos e expedientes de economia marginal que lhes permita sobreviver com as sobras, resíduos e desperdícios do sistema econômico. O mercado marginal da economia dominante e propriamente capitalista.
Nessa importante constatação para compreender a crise econômica e social atual, o economista desenvolve e sugere uma reflexão paralelamente sociológica sobre a economia da pobreza. Perder estratégias de sobrevivência significa que, nos diferentes grupos e categorias sociais, mesmo entre os desvalidos, a sociedade que inventava soluções de emergência para suas adversidades perde sua capacidade de fazê-lo.
Os seres humanos, qualquer que seja sua condição, reinventam a sociedade continuamente, à medida que normas e valores que dão sentido ao seu modo de viver são corroídos e invalidados por transformações econômicas, políticas e sociais que independem de sua vontade.
Isso se torna claramente visível no que pode ser definido como sociabilidade do desemprego, quando a sociedade cria uma estrutura social paralela com base na invenção de regras de vida social anômala para ajustamento de emergência de suas vítimas às condições disponíveis.
Embora a análise de Paes de Barros esteja limitada ao que é propriamente o econômico da pobreza, ela pode ser compreendida, também, do ponto de vista social e sociológico. Nesse caso sua constatação indica a conveniência de estender a reflexão para outros aspectos da realidade social para termos uma compreensão abrangente do drama social da pobreza e de suas repercussões na própria sobrevivência da ordem econômica.
Ressalto dois aspectos desse drama numa sociedade como esta, hoje marcada pela reestruturação produtiva, pela desindustrialização, pelo desemprego, pela desvalorização do trabalho mesmo quando emprego há.
Restringida ao propriamente econômico e à perspectiva do economista, a pobreza, entre nós, ainda não dispõe de todo o elenco de conceitos que podem defini-la e permitir diagnósticos que possam fundamentar políticas de sua superação responsável.
Estados gravíssimos de pobreza, como a nossa, que chega à enormidade de 33 milhões de famintos, têm sua presumível e não comprovada solução limitada à concepção da economia neoliberal de que o crescimento econômico e as transformações dele decorrentes criarão automaticamente o reajustamento da sociedade à nova realidade. Os teóricos dessa linha de interpretação não levam em conta o tempo e a demora desse reajustamento, quase sempre, no mínimo, o de uma geração inteira sacrificada antes do tempo e de concluir seu ciclo de vida.
A desvalorização do trabalho decorre sobretudo da substituição de trabalho por tecnologia, o que é fatal quando o progresso técnico é mais rápido do que o crescimento demográfico. Nessa situação, sempre haverá e tem havido crescente excedente de pessoas sem lugar, à margem das possibilidades de ocupação produtiva nesse modelo de economia. O de cada vez mais trabalhadores em busca de trabalho do que de trabalho à procura de trabalhadores.
Essas interrupções no ciclo de reinserção no trabalho dessocializam o trabalhador, invalidam nele o conhecimento que até então o mantinha no processo produtivo, descartam o capital social contido na formação profissional de quem trabalha. No limite, desestruturam sua personalidade e o marginalizam, socialmente excluído. São os casos de efetiva exclusão com a morte social, comuns entre moradores de rua.
Há um segundo problema decorrente desse processo. Há algum tempo, começaram a surgir sinais de que a cultura que assegura a eficácia dos expedientes do imaginário de sobrevivência das populações em estado de penúria estava se esgotando.
O mais significativo dos sinais foi o da perda de competência imaginativa dos pobres que chegaram ao limite na manipulação das impressões que os outros tinham a seu respeito. Ou seja, a perda de capacidade de construir sua imagem social. Na sociedade moderna, cada um só está integrado se tiver como definir-se para ser socialmente aceito e valorizado. Mesmo em situação de grande pobreza, muitos ainda conseguem imaginar-se para serem reconhecidos e imaginados. É o outro o mediador do nosso renascimento social cotidiano. Isso é a sociedade moderna. O carecimento dessa competência criativa indica não só que a sociedade está se tornando radicalmente pobre, mas que está morrendo. A morte social das minorias excluídas é a morte da sociedade inteira.
Não tem filé mignon para todo mundo
Jair Bolsonaro
A organização da sociedade civil brasileira foi fundamental para evitar qualquer tipo de golpe contra as eleições presidenciais de 2022. O primeiro round pela democracia foi vencido, graças à utilização de um modelo de cartas de princípios que firmam compromissos entre os grupos mais diversos, como UNE, Febraban, centrais sindicais, intelectuais, advogados, Fiesp e outros, a fim de definir o que é prioritário para o futuro do país. Esse modelo deve ser expandido para outros temas porque salvar o regime democrático é apenas o ponto inicial a partir do qual juntaremos as peças necessárias ao desenvolvimento do Brasil.
A “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”, documento-síntese da mobilização contra o golpismo, somou-se à pressão internacional (principalmente dos EUA), permitindo que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, ganhasse o apoio necessário para que a Justiça não ficasse mais sozinha na luta contra os autoritários. Ainda há riscos democráticos caso Bolsonaro vença e tente o plano Orbán de expandir os poderes presidenciais e aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal. Será preciso criar instrumentos de monitoramento, com suporte social amplo e diverso, para acompanhar e evitar que a democracia se quebre sem que haja um golpe de Estado clássico.
Mantida a institucionalidade democrático-liberal, serão necessários outros passos para reconstruir políticas públicas destruídas nos últimos anos e colocar o país nos trilhos do século XXI. Esse processo exigirá diagnósticos técnicos sólidos sobre os principais temas nacionais, pois o custo do amadorismo e do negacionismo científico já foi muito alto e tende a se intensificar com a competição internacional e com a complexificação dos problemas em todo o mundo. Nessa linha de solução, documentos vindos de diversas áreas e com grande qualidade apareceram nos últimos meses. Eles deveriam ser lidos e discutidos obrigatoriamente por todos os candidatos e pelas pessoas preocupadas em melhorar o país.
Um exemplo disso é o “Educação Já”, documento preparado pelo Todos Pela Educação. Nele há um diagnóstico sistêmico da política educacional, mostrando que não há uma bala de prata para resolver as mazelas do ensino brasileiro e que, ao contrário, é preciso atuar em várias frentes. Essa proposta não se baseia apenas em estudos e evidências empíricas robustas. Ela se alimentou da experiência prática de um conjunto seleto de gestores que conhecem as enormes dificuldades para fazer reformas e construir políticas públicas efetivas. Assim, não basta saber o que fazer; é essencial saber como fazer.
O “Educação Já” está sendo apresentado para candidatos em todo o país e também será discutido com diversos setores sociais. O debate educacional é urgente porque os estudos revelam o desastre recente do país nessa área, com um retrocesso gigantesco durante a pandemia. O fato é que o governo Bolsonaro não apenas escolheu mal os seus diversos e inexpressivos ministros da Educação. O MEC, como estrutura de gestão, esteve trancado nos últimos anos e deixou o país à deriva. O resultado disso é condenar uma geração a ter menos oportunidades de vida, particularmente os mais pobres, e o país a ter menos produtividade e pior cidadania no futuro.
Iniciativas como a do Todos Pela Educação têm pipocado noutros setores e estão sendo apresentadas à sociedade e aos políticos. Com certeza, é um processo essencial para que o Brasil adote um caminho condizente com os desafios de nosso tempo. Porém, o alcance dessas excelentes propostas pode ser bem menor, ou nem se efetivar, se não houver uma mobilização ampla da sociedade em torno delas, gritando a todos, em praça pública e com cobertura maciça da mídia, quais são as prioridades inadiáveis. E aqui entra a ideia de expandir o modelo das recentes cartas em defesa da democracia para alguns temas e ações centrais que nenhum governo pode abandonar.
A primeira característica dessa forma de mobilização social é dizer um “não” rotundo a certas práticas e ideias. São coisas que devem ser feitas obrigatoriamente e, se não forem, a sociedade vai às ruas, juntando da Febraban à UNE, da CUT à Fiesp. Claro que isso leva a ter um acordo básico em relação a menos pontos que os documentos de especialistas, que são mais detalhados e profundos. Mas, se houver o compromisso sobre o básico, mais chances haverá de as propostas mais sistêmicas e bem elaboradas serem adotadas em algum grau, provavelmente por um modelo incremental de mudanças.
O básico é definir que não se pode escolher um ministro da Educação sem experiência efetiva em políticas educacionais e que não defenda a escola pública, pois é preciso defender as crianças e jovens em situação mais vulnerável. Os últimos comandantes do MEC tinham horror à população mais pobre. Outro exemplo: se o ministro do Meio Ambiente não tiver um compromisso contra o desmatamento e pela proteção dos principais biomas, bem como pela defesa do Ibama, é preciso ler uma carta contrária a ele por vários dias até que seja demitido. Essa leitura deve ocorrer diariamente nos mais variados locais: no Congresso Nacional, nas praias mais lotadas do país, na Bolsa de Valores, no início de cada jogo do futebol brasileiro e nas universidades antes de qualquer aula.
No fundo, só é possível fazer uma mobilização social constante sobre poucos pontos. Eles devem ser acordados de forma bem ampla, para serem defendidos por políticos de diversos partidos e por muita gente com diferentes lugares na escala social. O espaço público, presencial ou virtual, será mais ocupado pelo grito contra qualquer barbaridade se não deixarmos que o essencial se torne banal.
Expandir o modelo de cartas mobilizadoras da sociedade tem um outro ganho: mostrar que as eleições são o ponto de partida da legitimidade política dos governantes, mas o processo democrático não pode parar aí. É preciso ter alarmes de incêndio que acendam mais rápido a cada decisão que fuja do mínimo indispensável para o país ser mais justo e civilizado. Não é aceitável ter um presidente da Fundação Palmares que cotidianamente coloque em questão a defesa dos direitos dos negros, fazendo troça da enorme desigualdade racial que há no país, como se ele fosse um senhor de engenho do século XIX. Não é possível ter um comandante da política cultural que transforme seu ofício numa forma de desmoralizar a classe artística. É inconcebível que a política ambiental seja liderada por quem quer acelerar o desmatamento e não acredita na mudança climática. É o fim do mundo ter um ministro do MEC que diga que nem todos podem ter o direito ao ensino superior, condenando assim os mais pobres a demorarem mais gerações para terem uma vida mais digna.
Em suma, não se pode ter gente no comando do país que não acredite nos consensos básicos das políticas públicas. Isso é o caminho para a barbárie, para a ridicularização do Brasil nos fóruns internacionais e para o retrocesso para a realidade pré-Constituição de 1988, quando efetivamente se garantiu que os brasileiros eram iguais entre si. Assim, todos deveriam se importar com a democracia e a economia, mas não podem deixar de lado o restante da ação governamental que é essencial para o desenvolvimento mais amplo do país. O futuro de nossos filhos e netos será melhor se tivermos refeições para todos, empregos e direito a voto, só que as pessoas querem mais do que isso. Como diria a icônica música dos Titãs: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.
A escolha pelos temas dessas Cartas mobilizadoras cabe à sociedade, a partir de um amplo debate e aproveitando o momento eleitoral. O cardápio de problemas é grande, mas é possível pensar em três questões essenciais para que o país tenha o mínimo indispensável ao desenvolvimento justo e sustentável. O primeiro é o combate a todas as formas de desigualdade (de renda, regional, racial e de gênero), principal empecilho para sermos uma nação minimamente decente, utilizando-se de políticas sociais bem geridas e voltadas a aumentar a equidade entre as pessoas e as famílias. O segundo é a defesa da questão ambiental como o principal ativo do Brasil para se produzir um novo ciclo de desenvolvimento, beneficiando as próximas gerações e melhorando a posição geopolítica brasileira. E, por fim, deve-se reforçar a tolerância e a diversidade como qualidades culturais e políticas que permitam o respeito mútuo e façam com que convivamos com nossas divergências sem perder o sentido comum de sermos brasileiros.
Os consensos básicos não apagam o fato de que há mais de uma maneira de combater a desigualdade ou alcançar a responsabilidade fiscal. Ademais, nem sempre sabemos de todas as soluções para os problemas públicos, de maneira que só com avaliações, debates e aprendizado com os erros nos tornamos mais capazes de avançar nas políticas públicas. De todo modo, cartas mobilizadoras da sociedade que partam do mais prioritário podem evitar que adotemos um caminho sem volta que nos afaste da resolução dos desafios do século XXI. Defender as eleições foi o primeiro passo; agora urge montar uma agenda mínima para gritarmos e evitarmos a criação de um país sem futuro.
Todo dia tem uma nova tensão. A tensão está no ar. Medos, ódios e incertezas rodam a vida dos brasileiros. Com impulsos primitivos de violência.
Já sabemos que a queda do desemprego e da inflação, e a pequena melhoria na taxa de crescimento de 2022, são resultados com efeitos efêmeros. Efeitos efêmeros estão presentes também no orçamento da União. Aqui, assistimos ao conhecido truque fiscal do aumento da receita causado pela inflação. Combinado, agora, com o corte das despesas pelo congelamento dos salários do funcionalismo por dois anos, na pandemia. Efeitos efêmeros.
Já sabemos, também, que 2023 já está contratado. Deverá ser um ano muito difícil, de crescimento ainda menor do que em 2022 e de continuidade da polarização política. No plano fiscal, o Brasil deve arcar com uma conta adicional de R$ 430 bilhões em 2023, segundo a FGV/Ibre: 4,2% do PIB. A luz vermelha já está acesa e já se fala na providência de um “waiver” fiscal, ou seja, uma licença temporária das regras fiscais para organizar o orçamento. Pérsio Arida estima a necessidade de um “waiver” de R$ 100 bilhões.
Tudo somado, permanece predominante, aqui e agora, a sensação de mal estar dos brasileiros. O infortúnio maior é com a inflação de alimentos. Combinado com a incerteza sobre o como será o amanhã.
Há um grande desencanto e também grande revolta de muitos segmentos da população, como lembrou Christopher Garmam: “a geologia da opinião pública está podre” na América Latina (e no Brasil). Trata-se do problema recorrente da baixa qualidade dos serviços públicos e da falta de confiança nas instituições e nos políticos. Portanto, na Política.
A combinação do desencanto e da revolta com a continuidade do baixo crescimento torna 2023 um grande desafio para quem ganhar a eleição – seja a direita, seja a esquerda. Portanto, o que o país precisa é de um (novo) governo competente e realista. É grande o risco do Brasil reviver e aprofundar a sua realidade de “Belíndia” (a combinação de Bélgica com Índia, na imagem seminal de Edmar Bacha). E, assim, chegar ao extremo da anomia social, da violência e da ingovernabilidade. Estamos próximos dos limites da desigualdade e da pobreza, agora atenuada de maneira efêmera pelo Auxilio Emergencial.
Resta urgente que o debate presidencial precisa apontar saídas para o Brasil, de forma realista. Primeiro, e acima de tudo, o combate à fome e a pobreza, com inclusão produtiva. Missão número um. Segundo, educação e produtividade. Terceiro, a questão climática, para proteger e desenvolver a Amazônia de forma sustentável. O Brasil é uma potência alimentar e ambiental. Estas são três questões essenciais.
Conseguiremos superar o nosso mal estar dos brasileiros? Vamos lembrar que o “mal estar da civilização” (escrito em 1929 por Freud), se refere à teoria freudiana de que o conflito entre as regras sociais e as pulsões primitivas do homem seria a primeira causa dos distúrbios psicológicos daquele tempo. Agora, também? Distúrbios que resultam em medo, ódio e revolta.