terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Pensamento do Dia

 


Que violência é essa?

Estamos vivendo uma espécie de ressaca, de rebordosa dos anos de barbárie política e comportamental que vivemos depois de Bolsonaro. E o pior que não havia nenhum projeto político mais sólido por detrás disso tudo. Era só a destruição e isso eles conseguiram. Conseguiram destruir os projetos sociais, o meio ambiente, a cultura, a saúde a e tentaram destruir a política.

Instituíram a violência como linguagem e os resultados estão aí. Crimes à solta, feminicídio, violência, incêndios, fuzilamentos, agressões, assédio sexual, enfim tudo aquilo que uma sociedade mais evoluída não permite e não convive. Sempre que penso nessas coisas me vêm a imagem dos filhos do homem, sem nenhuma preferência, mas como símbolo dessa pós- juventude deturpada e pervertida que estava tomando conta do país. Era fácil. Bastava estabelecer isso como linguagem comportamental que o resto viria.


Estamos quase assim. Ainda somos poucos os que nos revoltamos contra essas situações absurdas que ainda presenciamos. Para eles, as mulheres não valem nada, os gays têm que morrer, os pretos são escravos e quem se meter nessa ordem vai pro brejo também. A quem isso beneficia? Ao mercado sempre. O mercado se faz valer sempre de situações que não criam problemas ao enriquecimento ilícito. Quanto menos questões sociais tivermos, quanto mais negociações (?) salariais diretas entre patrões e empregados, quanto menos decisões coletivas existirem, melhor será para o mercado. E é esse mercado que continua arrogante querendo governar o país que elegeu o Lula. Era isso que essa gente queria.

É por aí que passam todas as notícias terríveis que estamos vendo. O garimpo ilegal com esse ouro que não tem dono, o desmatamento com a madeira sendo exportada do jeito que der, a exploração do trabalho escravo na produção de vinho num estado como o Rio Grande do Sul (não por nada, um dos mais bolsonaristas da União) as mortes, o uso indiscriminado de armas como se não houvesse nem lei nem amanhã.

Mas isso tem que parar. Isso aqui não é a casa da mãe Joana. Eu tenho certeza que lá as regras são mais respeitadas. Vamos colocar ordem nesse terreiro que aqui, agora, quem manda é o povo. A normatização da violência é um risco presente. Não podemos virar a página do jornal depois que lemos que um pai de um filho autista foi assassinado porque seu filho estava incomodando um cidadão de bem. Não podemos dormir tranquilos depois de ler sobre o massacre de Sinop onde pessoas foram mortas depois de um jogo de sinuca. Não podemos ficar tranquilos até que todos os envolvidos no terrorismo do dia 8 de janeiro sejam punidos.

Aquilo nada mais foi do que a tentativa de institucionalizar a violência, a baderna, a destruição como lema tipo deus, pátria e família para eles. Chega. O lema agora é democracia sempre.

Miséria eterna

Santo Amaro do Maranhão: 16.129 habitantes. Apenas 4,2% têm trabalho remunerado, 60% deles recebendo até meio salário mínimo. O município, na rabeira entre os mais pobres do país, paga R$ 4 mil por mês para cada um de seus 11 vereadores. O absurdo se repete em mais da metade das cidades brasileiras, 32,5% delas – 1.704 das 5.570 – incapazes de arcar com suas despesas funcionais, sobrevivendo de repasses federais e estaduais. A 237 quilômetros da capital São Luís, a Santo Amaro maranhense é só uma ponta da indecente teia de gastos públicos que abastece privilegiados e eterniza a miséria.

Congresso Nacional. Os 513 deputados federais, 27 senadores da legislatura anterior e os que deixaram a Casa receberam R$ 39,3 mil cada um a título de auxílio-mudança para Brasília ou para voltar aos seus estados. Nada menos do que R$ 40 milhões acintosamente desperdiçados em um mimo que inclui até reeleitos já residentes na capital e parlamentares do Distrito Federal. Essa outra ponta é apenas um dos milhares de exemplos da farra que se faz com o dinheiro dos impostos.


O cruzamento de dados do IBGE com o Índice de Gestão Fiscal (IFGF) da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), ambos tendo como base o ano de 2020, e os do site Transparência Brasil, escancaram o que o país sabe e insiste em esconder sobre o destino dos impostos pagos pelo cidadão: gasta-se muito – e muito mal.

Ainda que não seja mensurável em volumes de dinheiro, os arranjos de desperdício, leniência, má-fé e corrupção que unem essas pontas inviabilizam o país. Tanto faz se na rica e soberba Brasília ou nos quase 2.700 municípios que simplesmente não conseguem pôr um único real em investimentos em prol dos que neles vivem.

No Maranhão, estado-sede das quatro cidades brasileiras mais pobres, Matões do Norte, com 17 mil habitantes, tem 9 vereadores ao custo de R$ 5 mil cada, mesmo número de representantes da Câmara da pequena Primeira Cruz, com 15,5 mil moradores e salários mensais de R$ 6,1 mil para os seus parlamentares. Cajari fecha o grupo com 10 vereadores a R$ 3,5 mil para representar 19 mil habitantes. E não há uma viva alma com culhões para discutir o valor pago aos edis, a quantidade e a necessidade deles.

As chances de o Congresso mexer em suas próprias regalias também são nulas. Ao contrário. A tendência é de gastos crescentes. A verba parlamentar deu um salto significativo na esteira da reeleição do presidente da Câmara, Arthur Lira. A cota para suporte a deslocamentos saltou de R$ 45 mil para R$ 51 mil mensais, o reembolso-combustível foi de R$ 6 mil para R$ 9,4 mil e a verba de representação de R$ 111,6 mil para R$ 118,3 mil. E, usando o chapéu dos pagadores de impostos, o bonzinho Lira já prometeu novos aumentos até 2024.

O Judiciário não fica atrás. Suas verbas de custeio cresceram 40% em dois anos e os salários dos ministros do Supremo, que regem os demais vencimentos de servidores públicos do país, serão reajustados a partir de 1º de abril, passando de R$ 39,3 mil para R$ 41,6 mil, com novos aumentos já aprovados para 1º de fevereiro de 2024 e de 2025.

No Executivo, tanto na União quanto nos estados, é uma festa. Na esteira do STF, o presidente da República e seus ministros também tiveram seus salários elevados em 16,3%. Nas empresas estatais, os vencimentos chegam a R$ 80 mil no BNDES, passam de R$ 100 mil na Petrobrás.

Mais grave do que salários estratosféricos em um país no qual 30% vivem na miséria são a incompetência e a leniência. Nesta semana, o Tribunal de Contas da União deve se reunir com governadores de Minas Gerais, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco para apresentar um relatório no qual aponta erros fatais na prevenção aos desastres naturais. Nele, constata-se que o dinheiro público destinado às emergências como as que aniquilaram São Sebastião durante o carnaval não é utilizado ou, quando é, some nos escaninhos da burocracia: demora 100 dias para chegar na assistência aos vitimados. Em suma, dinheiro jogado no lixo.

Somam-se ainda gastos inexplicáveis, como os R$ 75 milhões no cartão corporativo do ex-presidente Jair Bolsonaro. E os abomináveis, a exemplo dos R$ 432 mil em diárias e alimentação da equipe de apoio do ex nos Estados Unidos, pagos com o suado dinheirinho dos brasileiros. Pode até parecer coisa pequena, mas em menos de três meses Bolsonaro consumiu 86% do volume de R$ 502 mil despendidos pela União para seis ex-presidentes em todo o ano de 2021.

O rol de impropriedades com o dinheiro público em todas as esferas de poder é quase infinito. Mas, em vez de ser um norte para impulsionar mudanças, a gastança desenfreada é avalizada por cada novo plantel que assume o comando. Isso inclui o sr. Luiz Inácio Lula da Silva e os acordos de “governança” com o Centrão e cia que, como se sabe, só visam a manter privilégios.


O Brasil é um imenso Santo Amaro do Maranhão.

Os militares e a Constituição

Fatos são incontornáveis, apesar de diferentes narrativas procurarem contorná-los, deformá-los ou, mesmo, os falsificarem. Resistem, por isso mesmo, a abordagens ideológicas que obedecem a propósitos meramente políticos, cujos objetivos consistem em impor uma mera versão carente de verdade.

Se não houve golpe no Brasil, é porque os militares não quiseram embarcar numa aventura inconstitucional. Golpes são atos de violência que requerem o uso da força, sem a qual suas chances de sucesso, se existentes, são mínimas. Chávez, na Venezuela, só consumou sua dominação despótica após ter cooptado as Forças Armadas, corrompendo-as. Por via de consequência, se o Brasil não sucumbiu à tentação autoritária de Bolsonaro e seus êmulos, isso se deve a que os militares optaram por seguir a Constituição. Divergências internas entre militares golpistas e democráticos foram resolvidas com a vitória destes últimos e do Brasil.


Narrativas atuais procurando responsabilizar os militares por delírios bolsonaristas não resistem aos fatos. Se fossem verdadeiras, o golpe teria se consumado. Houve, sim, grupos militares que procuraram se afastar da Constituição, mas foram barrados por generais do alto comando que se formaram no respeito à democracia. Foram nos currículos das escolas militares educados e formados. Não lhes foi inculcado o desrespeito às normas constitucionais. A tentativa atual de certos grupos ideologizados de aproveitarem as circunstâncias do 8 de janeiro para alterarem a formação militar deveria precisamente suscitar a seguinte pergunta: o que neles há de certo que os militares neles formados aprenderam a respeitar a democracia? Se tivessem sido formados na preparação do golpe, a situação do País seria totalmente diferente.

Golpe, enquanto ato de violência, não precisa recorrer a nenhum artigo constitucional – na ocorrência, o 142. Prescindem, por definição, de um tal recurso. Se alguns a ele recorreram foi com o intuito de subverter o arcabouço constitucional. No entanto, como essa discussão entrou em pauta, a partir de projetos para alterá-lo, cabem algumas observações.

Primeiro, golpes não necessitam de nenhum parecer para serem executados. Seria nada mais do que um artifício retórico. Imaginem uma intervenção militar amparada em um parecer, como se esse tivesse força de lei ou, mais do que isso, estivesse situado acima da Constituição e do Supremo Tribunal Federal. Seria, pura e simplesmente, um disparate. Um advogado determinado seria ungido à posição de árbitro constitucional, ao qual ministros deveriam obediência.

Segundo, o artigo 142 não contempla nenhum poder moderador a ser atribuído às Forças Armadas. Trata-se de uma mera ficção. Tampouco nele consta que as Forças Armadas possam se autoposicionar como fiéis depositárias das “garantias constitucionais”. Ou seja, elas não podem se autoconvocar, por estarem, precisamente, subordinadas ao poder civil. Sua convocação depende de atos dos presidentes de alguns dos Poderes, a saber, Executivo, Judiciário e Legislativo. Cabe, portanto, ao poder civil, neste caso do presidente da República, a convocação dos militares para ações determinadas como a GLO, a missão de Garantia da Lei e da Ordem.

Terceiro, a GLO só pode ser acionada com propósito preciso, com funções determinadas, num local restrito e com duração definida, além da escolha do comandante desta operação específica. Foram acionadas dezenas de vezes por vários governantes após a Constituição de 1988, e nenhuma delas ensejou um golpe qualquer. O maior beneficiário foi sempre o País. Não há convocação possível da GLO para dar um golpe, algo totalmente implausível. Isso só ocorre no devaneio do desconhecimento e, talvez, da tentativa de tumultuar a estabilidade institucional.

Quanto à participação dos militares em funções civis – recurso usado abusivamente pelo presidente Bolsonaro –, a solução é simples e carece de qualquer Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Tratase de um assunto infraconstitucional, podendo ser resolvido em sua particular esfera legal. Por exemplo, um militar convocado para ocupar um cargo civil deveria passar imediatamente à reserva, cabendo-lhe a decisão de querer ou não se manter na instituição militar. O que não pode é usufruir de uma, servindo à outra.

É mais do que urgente pacificar o País e fortalecer a instituição militar em seu compromisso democrático, demonstrado no estertor do governo Bolsonaro. Recorrer, agora, a uma PEC para alterar esse artigo só produzirá novos conflitos e polarizações. Toda vez que ele foi empregado, seus efeitos foram benéficos, não se tendo prestado a nenhuma tentativa golpista. Na situação atual, mais vale apaziguar os ânimos e não embarcar em controvérsias cujo desfecho é imprevisível. Quando se entra numa discussão deste tipo, necessariamente controversa e polarizada, não se pode prever o seu resultado. O Brasil tem temas mais relevantes a tratar e deveria olhar para o futuro, não se atendo a radicalizações passadas.

Quando o passado chega ao presente

Passado mais de um mês dos atos de terror vandálico de 8 de janeiro em Brasília, é necessário voltar àqueles acontecimentos para que a memória histórica não se apague. Somos um país desmemoriado e, por isso, volto às profundezas dos atos que buscavam criar o caos para propiciar uma “intervenção militar”, como os baderneiros apelidaram o golpe de Estado.

Assim, nunca é demais relembrar o golpe militar de 1964, que instituiu uma ditadura que durou 21 anos no Brasil, apontando diferenças e semelhanças.

Comecemos pelas diferenças. Em 1964, o golpe foi produto da “guerra fria”, instigado pelo governo dos Estados Unidos, como se comprova com a documentação que apresento em meu livro 1964 – O Golpe. Agora, o governo Biden foi o primeiro a pronunciar-se contra as intenções do vandalismo de 8 de janeiro.

Como um todo, o Brasil em 1964 era mais atrasado em pensamento e visão de mundo. As desigualdades sociais eram tidas como “invenção comunista”, ainda que milhões de nordestinos famintos rumassem a São Paulo e ao Sudeste em busca de emprego.


Hoje, a insistência de Jair Bolsonaro sobre o “perigo” de que o atual governo “implante o comunismo” soa como anedota de bêbado.

O espírito e as ações derivadas da “guerra fria” dominavam o mundo naquele 1964 e se sobrepunham, em cada país, aos problemas e às soluções locais. Hoje, as mudanças climáticas são a grande ameaça e nenhum governo se atreve a negá-las.

Por que, então, o vandalismo em Brasília nos preocupa e faz relembrar 1964?

Será porque os baderneiros tiveram cobertura militar ao acamparem em frente ao QG do Exército em Brasília? Ou porque entraram livremente no Palácio do Planalto, sem que o Batalhão da Guarda Presidencial sequer tentasse impedir o assalto? Ou porque concentrar milhares de pessoas numa passeata recorda o desfile da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que em 1964 pedia o golpe?

A diferença é que nas marchas de 1964 todos desfilavam em paz, exercendo o direito de protesto. Até gritavam, no direito de berrar, mas sem o vandalismo que, em 2023, marcou a insânia terrorista do dia 8 de janeiro.

Existe, no entanto, uma diferença fundamental com 1964. Agora, todos os meios de comunicação – dos jornais às revistas, do rádio à televisão – rejeitam o golpe e criticam o terror dos baderneiros. As cenas de vandalismo apresentadas por diferentes redes de TV são algo a não esquecer como ameaça não apenas às instituições democráticas, mas ao próprio estilo de vida de cada um de nós. Até o dia 8 de janeiro, jamais havíamos visto no Brasil o ódio transformar-se em atitude política individual.

As cenas de destruição nas sedes dos Três Poderes em Brasília mostraram uma turba enfurecida, recrutada País afora por meio das invencionices e mentiras das redes sociais para destruir o que encontrasse à frente.

Em 1964, parte dos meios de comunicação acompanhou a posição dos partidos políticos que, no Congresso, se opunham ao governo e admitiam até a sua destituição. Alguns foram além dos limites da liberdade de expressão, como o jornal carioca Correio da Manhã, que chegou a dar a senha do golpe num furioso editorial de primeira página.

Agora, chama a atenção o fanatismo implantado em parte da população e que os bolsonaristas cultivam alimentando o ódio e nos dividindo em dois grupos em guerra. É normal que a política desperte paixões, mas é anormal que leve ao ódio destrutivo e ameaçador de 8 de janeiro.

Além disso, as cenas brutais, mostradas na TV, de milhares de indígenas Yanomamis envenenados pelo mercúrio dos garimpeiros ilegais buscando ouro nos rios amazônicos transforma-se na nova versão de um genocídio. Não importa sequer se genocídio implica plano prévio de extermínio de um grupo (como na Alemanha de Hitler contra os judeus), mas sim os efeitos e resultados. Tal qual os judeus na Alemanha, os Yanomamis não cometeram crime algum, mas são desprezados – num desprezo que se transforma em perseguição, unicamente por serem indígenas.

Os rios amazônicos continuarão envenenados pelo mercúrio dos garimpeiros por mais de um século. Não bastará que a sociedade brasileira, como um todo, derrote nas urnas os adeptos do horror, porque isso não limpará os rios da Amazônia do mercúrio que polui as águas nem devolverá cabelo às crianças indígenas escalpeladas pela contaminação.

As cenas que a TV mostra agora superam em horror a própria maldade.

O terror vandálico de 8 de janeiro em Brasília, por outro lado, desatou uma perigosa aceitação tácita de tudo o que venha do governo de Lula da Silva. O vandalismo bolsonarista foi tão horripilante que poderá, até mesmo, nos fazer perder a visão crítica do que faça o atual governo lulista, se repetir as fraudes do tempo passado em que nos governou.

Que cada um, portanto, esteja vigilante para que o horror não volte ao presente, mesmo disfarçado de benigno.

O que esconde a Internet

É terrível como se pensa que o que não está na Internet não existe. É capaz de ser o erro mais pernicioso do nosso tempo. Se vamos pensar através de simplificações grosseiras, é mais frutífero partir do princípio que não está nada na Internet.

Mesmo pagando as assinaturas – caríssimas – das bases de dados que são usadas pelas bibliotecas universitárias, é óbvio que não cobrem nem uma pequena percentagem dos documentos existentes. E mesmo a totalidade desses documentos também não cobre senão uma pequena percentagem da realidade estudável.

Só no meu escritório, com os dicionários que tenho, sou capaz de encontrar 20 vezes mais informações sobre palavras e ideias do que encontro online, pelo simples facto de quase nenhuns dos livros estar digitalmente disponível.


É sempre preciso ir às bibliotecas, mas não é só pelos livros: é para perceber a escala, para ganhar humildade, mas também companhia. É para descobrir não só o tamanho do que não se sabe, mas a excitação de poder saber, de estar no sítio certo.

Antes, os ignorantes não tinham conforto. O conselho que seguiam era bom: se não sabes, mais vale ficar calado. Assim, pode haver quem pense que sabes. Mas, se abrires a boca, passam a ter a certeza de que não sabes.

Agora, o conforto dos ignorantes é a ideia que têm a sabedoria no bolso. Não só não é preciso saber, como já não vale a pena. Se quiser saber qualquer coisa, é só fazer uma busquinha, e a busquinha vomita tudo o que há para saber.

O resultado é desastroso: a Internet apaga o que não contém. Vai-se à procura de pessoas importantes e conhecidas que nasceram há apenas cem anos, e não há nada sobre elas. Então conclui-se estupidamente: é porque não existem, ou porque não tiveram importância.

Em contrapartida, vejam-se as pessoas que enchem a Internet. Essas, sim, são muito importantes e merecem ser lembradas para todo o sempre.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Pensamento do Dia

 

Quino

É pau, é pedra, é o fim do caminho

Quando nasci, em fevereiro, choveu muito. As pessoas tinham de se mover em canoas, contavam meus pais. Eu me acostumei com a ideia dos temporais de verão; às vezes, brincava na enxurrada sob protestos maternos.

As chuvas costumam ir além de fevereiro, como mostra a canção de Tom Jobim “Águas de março”, uma das mais belas de nossa música popular.

Como adulto, as chuvas tornaram-se parte do meu trabalho de jornalista ou mesmo de deputado. Sempre estive próximo. Da catástrofe na Serra Fluminense às cheias de Trizidela do Vale, no interior do Maranhão.

Um pouco descrente de governos, pensei em fortalecer as próprias comunidades. A ideia era preparar um manual para as grandes chuvas, como os caribenhos e americanos fazem com os ciclones. Coisas simples, como ter a lista de todos com dificuldade de locomoção, para ser retirados com prioridade.


Nas enchentes em Santo Antônio de Pádua, aprendi um pouco mais: o hospital foi inundado. Era preciso buscar em casa os dependentes de hemodiálise, transportá-los de helicóptero. Mais um item no caderno, que já tinha indicação dos abrigos, lugares onde se guardam barcos e botes, rotas de fuga.

Cheguei a formular um projeto que ensinasse defesa civil nas escolas, pois contava com as crianças para alertar os pais. Vejo hoje que Marina Silva tem um plano mais ambicioso: mobilizar todo o Ministério da Educação para tratar das mudanças climáticas.

Não fazemos tantas simulações, como os japoneses. Mas conseguimos realizá-las no caso de Angra dos Reis, por causa das usinas nucleares. De qualquer forma, o quadro hoje é mais claro: 4,5 milhões de pessoas em áreas de alto risco, distribuídas por mais de 14 mil pontos críticos.

Isso demanda um projeto especial porque dificilmente terão casa segura antes das próximas chuvas. Um projeto que aumente a resiliência das cidades brasileiras, adaptando o país às mudanças climáticas, tem chance de financiamento por meio do Acordo de Paris.

Há muito trabalho pela frente. É uma ilusão supor que o obstáculo é apenas o negacionismo de Bolsonaro. Muitos políticos aceitam as mudanças climáticas, mas, na prática cotidiana, as negam.

O Litoral Norte de São Paulo sofreu o impacto de uma chuva recorde. Mas a prefeitura de São Sebastião já fora intimada 37 vezes por não realizar obras nas encostas. Um projeto da ONG Escola Verde tinha apoio do BID para construir casas populares na Barra do Sahy, centro do grande drama. Conseguiram até terreno, mas o projeto dormiu sete anos na gaveta do governo estadual.

Existe um negacionismo simpático, do “tudo bem, deixa conosco”, mas que vai empurrando soluções com a barriga até que a tragédia aconteça.

Na verdade, se olharmos de uma perspectiva histórica, a tragédia no litoral brasileiro acontece em câmera lenta. No norte de São Paulo, os caiçaras foram expulsos de suas aldeias de pescadores pela especulação imobiliária. Os ricos se instalaram nas praias, e os pobres foram morar na encosta da Serra do Mar, onde vivem de prestar serviços e da construção. A especulação imobiliária controla prefeitos e vereadores.

Dois repórteres do Estado de S. Paulo, Renata Cafardo e Tiago Queiroz, foram agredidos num condomínio de luxo, em Maresias, apenas porque estavam cobrindo o impacto do temporal:

— Comunistas — gritavam os moradores.

Uma das constatações mais duras no avanço das mudanças climáticas é que os pobres são realmente os mais atingidos, não em todos os casos, mas na maioria das vezes. Isso cria em muita gente a sensação de que o problema existe, mas está muito longe, lá onde não sujamos nossos sapatos de lama.

O momento é de sentar e discutir uma saída para este mundo em transformação, que nos abala tanto. O negacionismo é suicida, não é possível que um país sucumba à própria ignorância.

Fósseis vivos da escravidão

O sociólogo brasileiro é antes de tudo um paleontólogo da escravidão. Ao redor, a sociedade é um sítio de fósseis daquele tempo, às vezes parecendo ainda vivos.

As favelas: O próprio nome favela foi criado pelos ex-escravos quando migraram do cativeiro para a liberdade: das fazendas para a periferia de cada cidade. Até hoje são fósseis do que eram as senzalas, com condições sanitárias ainda piores, devido ao descuido com o tratamento dos dejetos humanos e lixo expelidos nas monstrópoles superpovoadas do século XXI.



Os condomínios: Graças ao avanço técnico, 130 anos depois da Abolição, os descendentes-sociais-dos-escravocratas vivem em melhores condições que seus antepassados no tempo da escravidão, e ainda mais desiguais em relação aos atuais descendentes-sociais-dos-escravos. O condomínio, horizontal ou vertical, é um fóssil da casa grande.

Analfabetismo: A permanência de 10 milhões de adultos iletrados, em pleno século XXI, é um fóssil social dos anos de escravidão. Retrato do tratamento educacional dado às pessoas escravizadas e aos seus descendentes sociais, aos quais a escola foi negada, que atravessam a vida adulta em situação de analfabetismo. Fóssil tão vivo que é uma forma de escravidão: está solto, mas não está livre, uma vez que não conhece o mapa que lhe permite caminhar no moderno mundo letrado.

Desigualdade escolar: Durante os 100 anos seguintes à Abolição, o Brasil negou escola aos filhos dos pobres, da mesma forma que negava aos filhos dos escravos. O direito à escolaridade só virou lei no século XXI: Lei 11.700/2008 para o ensino fundamental e Lei 12.061/2009 para o ensino médio, que até hoje não são plenamente cumpridas. Mantém-se o fóssil vivo da escravidão sob a forma da desigualdade entre a qualidade e os resultados da educação conforme a renda da criança pobre em “escola senzala” e da rica em “escola casa grande”.

As empresas de alocação de trabalhadores. O uso sistemático de trabalhadores terceirizados, contratados a um baixo custo por empresas que os alugam a outras empresas ou ao setor público, é cópia de prática escravocrata, quando os proprietários alugavam cativos a outras pessoas. Hoje, o trabalhador livre pode recusar o emprego, mas a prática é fóssil do período anterior à Lei Áurea, porque, na prática, o pobre brasileiro não tem como recusar o emprego, continua acorrentado.

Concentração de renda: O Brasil atravessou toda sua história posterior à Abolição e à República como um dos campeões mundiais em concentração de renda, de patrimônio, de acesso aos serviços sociais, como um fóssil da escravidão. O grau de concentração deixa um abismo e não uma simples desigualdade, uma apartação. Um fóssil do tempo que o país era dividido entre pretos e brancos, agora entre pobres e ricos.

Racismo: O racismo contra os negros é um fóssil vivo da escravidão.

Menino de rua: Antes da Lei do Ventre Livre, o filho de escrava não era abandonado, porque era uma mercadoria, tinha valor de mercado e podia ser vendido. A Lei do Ventre Livre acabou com este valor e começou a tradição brasileira do abandono infantil. A modernização industrial, a urbanização, novos valores sociais e novas estruturas familiares provocaram o fenômeno da infância abandonada, porque no lugar de ter suas crianças na escola, os descendentes-sociais-dos-escravos passaram a depender da renda do trabalho ou da mendicância de seus filhos. O resultado foi que o moderno português falado no Brasil criou palavras como “menino de rua”, “menina da noite”, “prostituta infantil”, “pivete”, como conceitos que não existiam antes de 1888, mas são, mesmo assim, fósseis vivos da escravidão.

Pobres: Em muitos países e sociedades, a pobreza é um fenômeno decorrente da densidade demográfica, da escassez de recursos naturais, do colonialismo recente, até mesmo de características religiosas. No Brasil, a permanência da pobreza é um fóssil da escravidão.

Deus não dá carta de recomendação


Deus não precisa ser defendido por ninguém. E não quer que seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas. Peço a todos que parem de instrumentalizar as religiões para incitar ao ódio, à violência, ao extremismo e ao fanatismo cego.
Papa Francisco

Deixem o Bolsonaro em paz. Não lhe peçam o que ele não pode dar

Bolsonaro vai às compras em supermercado de Orlando, cidade onde se refugiou desde que abandonou o Brasil em 30 de dezembro para não passar a faixa a Lula; e, segundo se desconfia, para que não o ligassem ao golpe fracassado de 8 de janeiro.

Bolsonaro está praticamente recluso na casa que lhe foi emprestada por um lutador brasileiro de MMA. Ali, não recebe ninguém. Vez por outra é visto na porta da casa posando para fotos com brasileiros que moram no mesmo condomínio, e o admiram.


Bolsonaro saiu outro dia na companhia de um dos filhos para visitar o departamento de polícia de Oklahoma. Quando presidente, em uma de suas viagens aos Estados Unidos, visitou a sede da CIA, agência de espionagem, não se sabe para quê.

Bolsonaro foi fotografado ao lado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), do ex-ministro do Turismo, o sanfoneiro desafinado Gilson Machado, e de Tércio Arnaud Thomaz, ex-assessor e um dos integrantes do chamado “gabinete do ódio”.

Bolsonaro, ontem, apareceu em uma live com o cantor sertanejo Rick, da dupla com Renner, e o ex-presidente da Caixa, Pedro Guimarães, investigado por assédio sexual e moral de funcionários do banco público. Bolsonaro permaneceu de cara amarrada.

No Brasil, políticos de peso, desnorteados com a ausência dele, reclamam da agenda “irrelevante” de Bolsonaro nos Estados Unidos. Dizem que ele se deixa influenciar em excesso pelo grupo que o cerca por lá, formado por auxiliares sem experiência política.

Tolice! Desde quando Bolsonaro destacou-se por cumprir uma agenda de compromissos relevantes em viagens ao exterior? Viajou pouco. E em eventos internacionais obrigatórios, quase sempre se manteve isolado ou acabou isolado pelos demais chefes de Estado.

Não há notícias de visitas a museus, teatros e shows musicais. Não pôs os pés em universidades de prestígio por falta de convite. Comeu um pedaço de pizza em uma rua de Nova Iorque. Discursou para seus seguidores, em Londres, no funeral da rainha Elisabeth.

Não seria agora, derrotado para sua amargura, sem direito a foro especial, investigado em dezenas de processos, e com medo de ser preso caso volte ao Brasil, que Bolsonaro se comportará de maneira diferente. Ele é o que sempre foi. Deixem-no em paz.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Pensamento do Dia

 




Desafios do novo sebastianismo

Muito provavelmente, o restabelecimento da ordem após a catástrofe econômica e política de quatro anos de incitação à baderna não é a única na importância e na urgência. É preciso mais para superar o governo que desgovernou para criar um vazio proposital, redesenhar o Estado e fragilizar a sociedade. A articulação golpista de 2018 não foi feita apenas para ganhar uma eleição, mas para subjugar um país.

Falas presidenciais valorizaram a desordem. A bandeira do bolsonarismo não tinha disfarce: era a de substituir valores, normas, direitos, concepções políticas e conquistas sociais exatamente pelo seu contrário. O objetivo era evidente: implantar o caos, transformar o país num caso de polícia, criar a necessidade de repressão para enquadrar um inimigo fantasioso e fora de moda.


Analistas e comentaristas políticos experientes começam a chamar a atenção para o fato de que Bolsonaro não tem competência para as tarefas intelectuais de arquitetar as minúcias do que foi o desastre de seu governo e das pretensões do bolsonarismo. Poderiam dizer que tudo se encaixa desde antes de sua posse e durante todo o seu governo. Nenhuma bobagem, nenhuma tolice fora do lugar. Ao mesmo tempo é o todo que está fora de lugar. Uma articulação de longa duração, algo montado para transformar qualquer presidente que fosse o eleito em 2018 em mandatário de curto mandato, mesmo o próprio Bolsonaro. Ele deu indicações de consciência do descarte.

O bolsonarismo foi planejado como permanência do ausente, visibilidade do invisível, morto que fala e acha que vai ressuscitar.

Em todo canto que se vá, seu fantasma está lá, com muitas caras, muitas vozes. Ele mesmo, no entanto, é cada vez mais um ninguém. O que propõe a indagação: quem é o verdadeiro Bolsonaro? Onde está ele? Quem o sustenta? Pode-se ver-lhe a sombra nos mais estranhos e diferentes lugares.

A grande surpresa nesse processo foi a disponibilidade do enorme número de cúmplices, civis e militares, de gente ansiosa por se armar e se tornar caçadora, prontos para se tornar “patriotas”, sem levar em conta que patriota de verdade pega no batente duro. Surgiu o patriota de fantasia, bandeira nacional transformada em trapo para substituir blusa e cueca. Em Brasília, uma multidão sebastianista na agonia da espera, fora e dentro do quartel.

A estratégia do bolsonarismo foi ampla, atacou em todas as frentes e todas articuladas: Forças Armadas, igrejas e religiões, profissões, partidos, grupos humanos residuais com traços claros e limítrofes de identidade marginal. Tudo que, de diferentes modos, se situa no terreno complicado do que o sociólogo Everett Stonequist definiu como “homem marginal”. Os casos mais extremos dessa marginalidade são os dos seres humanos que não se encontram, julgando-se permanentemente do lado oposto daquele em que gostariam de estar. São pessoas que não são, seu lado mais perigoso. Todo o tempo passando para o lado de lá sem sair do lá de cá. Querendo voltar sem ter atravessado a barreira da ida.

Essa situação sugere a necessidade urgente de dar à restauração da ordem a dimensão severa de um projeto de reconstrução nacional e de despoluição ideológica do país.

Os vencedores da guerra de 1939-1945 tiveram a lucidez de não repetir o erro de 1918. O programa de desnazificação decorrente da derrota da Alemanha abriu espaço para uma redemocratização socialmente enraizada. Não deixou restos de sementes no cisco da história.

Tudo que se sabe sobre Hitler é que ele não tinha competência para fazer o que fez ou o que em seu nome fizeram. Já no governo, passava boa parte do tempo fechado em seu quarto, levantava tarde e passava a maior parte do tempo conversando a mesma conversa todos os dias. Hitler foi sendo inventado pelos cúmplices, pelos bajuladores, pelos covardes, pelos oportunistas. Foi um ser imaginário, rodeado de gente que nele via alguém que não existia de fato, mas que achava ser real.

A trajetória e o declínio de Bolsonaro já nos dias anteriores ao término do mandato indica algo parecido. A situação esquisita de que se tornou personagem, de certo modo, sugere que é ele uma invenção, uma construção. Ele é o todo de cada um que com ele se identifica, que nele vê o que julga ser. O rápido esvaziamento do ex-presidente o transformou num ser murcho, com perfil de ator à espera de um papel enquanto o enredo flui.

Poderá ser grave engano considerá-lo de plantão à espera da próxima eleição presidencial para eventual retorno ao poder. A personagem oculta maquinada nas sombras, que ele personificou de 2019 a 2022, provavelmente encarnará em outra figura que, com mais talento para o mal, dê continuidade ao desmonte da nação.

A extrema direita veio para ficar, talvez mais fraca. Já Bolsonaro…

Do seu refúgio em um condomínio de luxo em Orlando, na Flórida, o ex-presidente Jair Bolsonaro mandou dizer que não comentou com ninguém as declarações da deputada Carla Zambelli (PL-SP) a seu respeito, e que nem sequer as leu.

Pode não ter comentado, mas sem dúvida as leu. Um dos seus filhos (adivinha qual!) repassou a informação de que ele sabia que Zambelli fez um acordo com o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, para não ser presa.


Fez parte do acordo ela sair atirando em Bolsonaro. Devota do ex-presidente, sua fiel escudeira nos últimos quatro anos, Zambelli, só ontem, perdeu quase 10 mil seguidores no Instagram por ter dito que Bolsonaro abandonou sua tropa e que deveria estar aqui.

Foi além: criticou-o por não ter condenado os acampamentos de golpistas à porta de quartéis do Exército, e sugeriu que a direita procure um novo líder, que reúna condições para vencer as eleições de 2026. Soou a rompimento de relações com Bolsonaro.

Zambelli é investigada pelo Supremo Tribunal Federal por ter postado nas redes sociais que duvidava da lisura do processo eleitoral do ano passado. Insinuou que houve fraude. Ela confessa que temeu ser presa e que, por isso, procurou Moraes.

O que retém Bolsonaro nos Estados Unidos é também o medo de ser preso. Sem mais direito a ser julgado exclusivamente pelo Supremo, muitos dos processos a que responde foram parar na primeira instância da Justiça. E aí mora o perigo para ele.

Uma vez de volta, poderá ser preso temporariamente por um juiz qualquer. Como foi Michel Temer quando saiu da Presidência da República. Se Zambelli afirma que Bolsonaro deixou órfãos os que lhe foram leais, o inverso parece também estar em curso.

Uma fatia expressiva do Centrão, que apoiou Bolsonaro, negocia o apoio a Lula. Sob a desculpa de que os estados não sobrevivem sem a União, governadores procuram Lula em busca de ajuda, e ele está sempre disposto a ajudá-los. Uma mão lava a outra.

Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador de São Paulo, diz-se encantado por Lula, que o socorreu na hora em que ele mais precisava, em meio à tragédia de São Sebastião. Ali, o número de mortos pelas chuvas fortes ultrapassará, hoje, a casa dos 50.

Ronaldo Caiado (União), governador de Goiás, e Celina Leão (PP), governadora em exercício do Distrito Federal, estão com trânsito livre no Palácio do Planalto. Os dois batalharam pela reeleição de Bolsonaro, mais Celina do que Caiado. Não deu, não deu.

A extrema direita jamais deixará de existir, embora mais fraca. Quanto a Bolsonaro…

País tem duas correntes políticas baseadas no horror

Mesmo depois das Trevas Bolsonaristas, última etapa da fase de devastação da vida pública nacional que foi motivada por uma enorme onda de sentimento antipolítica, há ainda quem realmente considere que o desprezo pela política é coisa muito sofisticada e nitidamente superior.

Mas não foi o antipetismo o combustível do ciclo de autodestruição que estará completando uma década este ano e que alimentou as várias camadas de crise que nos levaram quase ao fundo do abismo?

Certamente, mas o antipetismo é tão somente uma forma aguda do sentimento antipolítica que emergiu numa circunstância em que o PT vinha de três mandatos presidenciais seguidos.

Tanto é verdade que os portadores da atitude antipolítica viraram ferozes anti-Temer apenas seis meses depois de consolidado o impeachment de Dilma, sem nem trocar de luvas ou discurso. E os que permaneceram lúcidos também se tornaram antibolsonaristas quando se deram conta da farsa da "nova política" prometida pelo "mito" e da sua mais completa submissão às velhas raposas do Congresso.

O fato é que o sentimento antipolítica continua o básico da afetação de quem continua acompanhando a política institucional e o funcionamento do governo apenas para desprezá-los de pertinho.


Por outro lado, falar mal da política e de quem governa é tradição desde que os humanos inventaram formas de comunidade política. E um certo grau de hostilidade e desconfiança com relação ao poder político é um bom sinal de saúde política e autonomia de pensamento.

A antipolítica, contudo, é mais que isso: acontece quando numa sociedade há um baixíssimo grau de confiança nas instituições e nos atores da política contrastando com um elevado nível de ódio contra tudo que se refere à vida pública.

Resumo a crença antipolítica nacional em cinco dogmas: 1) a política é uma atividade indigna praticada por indivíduos rebaixados que lutam apenas pelos próprios interesses; 2) todo governo é uma corja; 3) todo partido político é uma quadrilha; 4) todos os políticos e portadores de mandatos são ou parasitas ou ativos delinquentes à espreita de uma oportunidade; 5) essas coisas só acontecem no Brasil.

Atualmente, há pelo menos duas grandes correntes de antipolítica no país. A primeira parte de uma posição superior que repete que Brasília é uma cloaca, não há político que preste, todo governante é um gângster.

E adora citar "a melô do despeitado" de Ruy Barbosa: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto".

Ruy merecia melhor sorte do que virar patrono do "mimimi" antipolítica.

A segunda posição antipolítica pode ser sintetizada na máxima de Danilo Gentili: "Existem níveis para otários. O otário nível master é aquele que acredita em político". O gentilismo provém do modelo-CQC, que considera que insultar e humilhar políticos é um ato de justiça.

Diferenciam-se basicamente porque o primeiro tipo é um decadentista bem-educado e o segundo tem na grosseria um dos seus programas fundamentais. Além disso, o gentilismo é instintivamente conservador (no caso, antiesquerdista visceral), embora os recursos intelectuais arregimentados para defender a sua posição nunca passem de dogmas.

Ambos os tipos consideram a política uma atividade rebaixada, mas o segundo não se contenta em desprezar grandes categorias como "os políticos", "os partidos" ou "o governo"; o seu desprezo precisa ser mostrado no varejo e ser "fulanizado": Sarney é ladrão, Dirceu é corrupto, Renan é patife, Lula é o nine, Dilma... Bem o que eles diziam de Dilma em 2014 eu prefiro não repetir.

Na antipolítica grossa, pessoas e instituições precisam ser ofendidas pessoalmente.

O segundo tipo é mais fácil de descartar intelectualmente, dada a sua brutalidade, mas é a forma mais difícil de ser superada na prática, não só porque dez anos de raiva política nos deixaram viciados, mas por ser o insulto muito menos exigente que o argumento.

O primeiro tipo, por outro lado, é mais difícil de se enfrentar intelectualmente, a não ser pela provocação clássica que diz que não há problema em se detestar a política, desde que se saiba que você será governado por quem gosta dela.

Refazendo a história

Nascido na Martinica, Aimé Césaire (1913-2008) é o mais importante poeta surrealista. Na década de 1930, época em que estudou em Paris, escreveu no jornal L’Étudiant Noir o artigo “Nègreries: conscience raciale et révolution sociale”, no qual formula o conceito de “negritude”, no sentido de ideologia e/ou ontologia. Na síntese de Jean-Paul Sartre, “contra a Europa e a colonização”.

Em 1950, Aimé Césaire lança o Discurso sobre o colonialismo. Tornada a bíblia dos militantes anticolonialistas, inspirou a doutrina pan-africana e os Panteras Negras. É citada na abertura do livro Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon. Compõe o acervo básico das bibliotecas escolares francesas, de segundo grau. A autorreflexão pelos colonizados é um ato performático de libertação. A atualidade do libelo está em apontar o fascismo como produto do colonialismo.

Para o intelectual insurgente, “embora se disfarce de humanista e cristão, o burguês carrega consigo um Hitler sem saber, Hitler vive nele, Hitler é seu demônio, se o vitupera é por falta de lógica; o que ele não perdoa em Hitler não é o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco; é haver aplicado na Europa os procedimentos colonialistas que atingiam apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África”. Corta, agora, para uma breve recapitulação da história verde-amarela recente.

Dois meses e meio depois de assumir a presidência, Jair Bolsonaro reuniu-se nos Estados Unidos com representantes da extrema direita estadunidense. Com todas as letras, expôs o programa de destruição das bravas conquistas alcançadas pelos governos progressistas, no primeiro decênio do século XXI. Foi incisivo ao anunciar o ataque aos direitos sociais pelo desgoverno que iniciava.


O desprezo aos direitos humanos já era de conhecimento geral. Fora reiterado em cerimônias laudatórias a covardes torturadores. Assim, quando as entidades empresariais, o aparato judicial e a mídia corporativa brasileira avalizaram o golpe ao mandato legítimo de uma presidenta honesta para, a seguir, cancelar o líder das intenções de voto nas pesquisas, em 2018, as “elites do atraso” tinham ciência de que seu Hitler interno chancelava um Hitler externo. Ninguém foi ludibriado. “Essa é a acusação que eu dirijo ao pseudo-humanismo: ter reduzido os direitos humanos, ter uma concepção tendenciosa deles e, sordidamente, racista”, parafraseando a denúncia do vate caribenho.

Isso não tirou o sono das pessoas de bem, nem constrangeu o lero sobre a liberdade e a igualdade nos saraus da “casa grande”. Os pobres, na maioria negros e pardos, pagariam a conta. A esquerda levaria a culpa. Tudo delineado de acordo com a gramática da tradição para perpetuar as hierarquias sociais herdadas do domínio colonial. O caráter extrativista da burguesia local não viu nenhum problema no retrocesso que fez, o Brasil, voltar a ser um mero entreposto comercial das potências maiores. As privatizações de empresas e de riquezas estratégicas bloquearam o promissor projeto desenvolvimentista para amainar as iniquidades, que avolumavam na periferia. Com o que os vira-latas do capital abraçaram um homem sem qualidades, com a alegação de que era “sincero”.

As oscilações das classes dirigentes dependem do comprometimento com o sistema-mundo. Para o agronegócio, tanto faz se a nação preserva o Estado democrático de direito ou se encarna o regime iliberal. “Os países compram alimentos, sem perguntar sobre a procedência”. A convicção utilitária reproduz o imperialismo das commodities. A fábula meritocrática dos exportadores nutre-se de ideias inescrupulosas. Os ressentidos, sublinhe-se, não com as cruéis injustiças que infernizam a população, mas com sua posição específica no edifício das discriminações, respaldaram o candidato que elogiava os 500 anos do status quo de desigualdades, para que suspendesse a mobilidade social.

Os setores globalizados da economia tendem à contemporização. Não por que possuam uma ética superior, afinal, endossaram a escalada ao Palácio do Planalto do “palhaço sociopata”, na expressão de Noam Chomsky. Prospectam negócios, com mais variáveis intervenientes. Não quer dizer que os aspectos processuais da trama sejam secundários, e sim que a identificação ideológico-moral com o extremismo de direita foi decisiva para a adesão da escumalha elitista. O Coisa Ruim é o seu “eu” profundo, onde fracos não têm vez, gays são linchados, mulheres se acomodam no degrau debaixo, negros obedecem ao sinhô, negras servem à concupiscência e precarizados limpam os banheiros.

Tristes trópicos em que as classes detentoras do poder concentram a renda e o consumo, não a capacidade de socializar a cidadania e garantir a soberania nacional. Por instinto de sobrevivência, dias antes do memorável segundo turno, banqueiros, investidores, empresários declararam apoio à chapa que aglutinou a Frente da Esperança contra a corja de canalhas, encabeçada pelo genocida.

Anos atrás, o Estado de São Paulo cravara, em editorial, que a escolha era difícil. A mentalidade antirrepublicana não se alterou. Em 2022, as classes médias retornaram à cena do crime e quase reelegeram o corrupto que vocalizou os preconceitos colonialistas da dominação e subordinação. O país ainda não ultrapassou a fase de acumulação primitiva, o que explica os delitos dos bilionários. Se o andar de cima não cuida do ralo da pia, a caixa de gordura entupida transborda no condomínio.

Sob o tacão bolsonarista, a ignorância e a truculência eram normais. La bête humaine, porém, era um pária em assembleias da ONU, sem que uma alma se dignasse cumprimentar. O negacionismo científico em plena pandemia do coronavírus, o negacionismo político em relação à importância das instituições republicanas, o negacionismo afetivo com o sofrimento de vulneráveis empurrados para o mapa da fome e o negacionismo climático frente ao desmatamento da floresta amazônica feriram a razão iluminista ocidental que, apesar dos pesares, influiu na opinião pública esclarecida. As maneiras de miliciano, desbocado, esteve sempre em contradição com o respeito e o decoro.

A invasão do Capitólio pela turba trumpista acendeu o alerta. Uma generalização dos Estados de exceção acarretaria uma instabilidade no planeta, transformando-o num barril de pólvora, e deixaria a bandeira da paz e da democracia de posse dos defensores radicais da justiça social e ambiental.

Acostumadas a cálculos geopolíticos, frações da burguesia perceberam que, criar o Frankenstein, é uma tarefa simples comparada ao controle do monstrengo, uma vez instalado no centro do aparelho estatal na condição de comandante-em-chefe das Forças Armadas. A lição, amiúde esquecida, remonta à experiência na Alemanha, com o Führer, o exterminador de estimação dos extremistas.

O capitalismo tem se mostrado, incapaz, de assegurar um direito dos povos (vide o fracasso das conferências sobre o clima) e, impotente, para estabelecer uma moralidade individual (vide o papel dos yuppies na crise de 2008, fruto da especulação financeira e da desregulamentação econômica). “No final do beco, há Hitler. No fundo do capitalismo, ansioso por sobreviver, há Hitler. No fundo do humanismo formal e da renúncia filosófica, há Hitler”. Trump, Putin, Orbán, Erdogan, Meloni…

O núcleo do hitlerismo está condensado na seguinte assertiva: “Nós aspiramos, não à igualdade, mas à dominação. O país de raça estrangeira terá que se tornar novamente um país de servos, diaristas agrícolas ou trabalhadores industriais. Não se trata de eliminar as desigualdades entre os homens, mas de ampliá-las e torná-las uma lei”. A receita de selvageria foi adotada pelo Consenso de Washington, nos estertores da Guerra Fria. Era o neoliberalismo que, com pompa, se apresentava como La nouvelle raison du monde, para evocar a ótima obra de Pierre Dardot e Christian Laval.

Políticas impúblicas necessitam do autoritarismo para impor o laissez-faire protoescravista. O mercado recicla e renova as graves disparidades no tecido social, e barra ou omite as contestações orgânicas por parte dos ofendidos, em cada momento. O modelo ideal de gestão da modernização neoliberal combina o velho colonialismo com o novo fascismo – a trágica tríade da necropolítica.

Os Yanomami, a exemplo dos demais povos originários, compreendem o dilema. Submetidos ao totalitarismo da mercadoria, em que a devastação da natureza anda junto com a extração ilegal de minerais (ouro, diamantes) em terras oficiais demarcadas, a comunidade é um obstáculo à rapina. O mesmo vale para os trabalhadores excluídos da cadeia produtiva, que formam o triste exército de marginalizados rumo à “solução final”. A dinâmica capitalista, ao justificar a colonização, premiou a força e a morte. “A civilização doente, de negação em negação, chama seu Hitler, seu castigo”.

Aimé Césaire incomoda os reacionários. Em uma ocasião, um deputado direitista confrontou-o diretamente. “O que seria de você sem a França?” – “Um homem de quem não teriam tentado tirar a liberdade”, respondeu. “Mas você ficou feliz que nós o tenhamos ensinado a ler!” – “Aprendi a ler graças ao sacrifício de milhares e milhares de martinicanos que sangraram suas veias para que seus filhos pudessem ser educados e pudessem defendê-los um dia”, arrematou com altivez e destemor.

“Posso ver bem o que a colonização destruiu: as admiráveis civilizações indígenas, e nem Deterding nem a Royal Dutch, nem a Standard Oil jamais me consolarão dos astecas ou dos incas”, desabafa o poeta. Imagine o quadro Angelus novus, de Paul Klee, em que o anjo é empurrado para a frente pelo progresso, enquanto volta a cabeça e olha para as terríveis ruínas do belo que ficam pelo caminho.

A colonização é igual à coisificação. Não há espaço para o efetivo exercício dos afetos autênticos na dialética entre o colonizador e o colonizado. Só há espaço para o trabalho forçado, a intimidação, a pressão, a polícia, os impostos, o roubo, o estupro, a imposição cultural, o desprezo, a desconfiança, as covas rasas, a presunção, a grosseria, o insulto, a loucura, as elites descerebradas, as massas aviltadas. “Falo de proletarização e mistificação. Faço a apologia das civilizações para-europeias”.

A Europa burguesa liquidou civilizações inteiras, dissolveu pátrias, arruinou nacionalidades e arrancou a raiz da diversidade. Maquiou a barbárie com avenidas cheias de automóveis, o moderno shopping norte-americano e a crença em soluções hiperindividualistas. Multiplicou a violência, o excesso, o desperdício, o mercantilismo, o comportamento de manada, a vulgaridade, a desordem. Se prevaleceu, é que o sistema aprendeu a absorver a “grande recusa”, interpreta Herbert Marcuse.

Reconhecer o continuum que liga o colonialismo ao neoliberalismo e ao fascismo, por meio de Estados de exceção, significa assumir a longa história de duras batalhas (o “bom combate”, a que se referia o apóstolo Paulo) pela emancipação dos oprimidos e explorados. Significa enriquecer o imaginário e as práxis populares com o elã de personagens anônimas, que resistiram às atrocidades. Organização sociopolítica e de parentesco, linguagem, cosmologia, artesanato, ritualística, cultos, hábitos, vivências, lendas, conflitos, mártires são memórias que perpassam as múltiplas gerações.

“Transformar o mundo”, disse Karl Marx. “Mudar a vida”, disse Arthur Rimbaud. As duas palavras de ordem se encontram na encruzilhada esperada da historicidade com a cotidianidade. Quando restabelecemos os elos escondidos da corrente de opressão e exploração; quando recuperamos a percepção coletiva de lutadores redivivos sobre elos perdidos de dignidade e resiliência, em nossa ancestralidade, reapropriamo-nos da energia capaz de erguer a democracia igualitária e libertária, com participação cidadã. Refazendo a história, o horizonte se reabre e a utopia afigura-se perto.

Com o otimismo da vontade, é possível quebrar os grilhões. Como nos versos surreais do poema de título A hurler (A uivar): “Mon temps viendra que je salue / grand large / simple // Et là là / bonne sangsue / là origine des temps / là fin des temps (Meu tempo virá e eu o saúdo / grande vasto / simples // E então então / boa sanguessuga / então a origem dos tempos / então o fim dos tempos).

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

A natureza devolve as agressões que recebe, e os pobres pagam a conta

Sai barato para o poder público instalar sirenes que soam poucas horas antes de vendavais, socorrer depois os desabrigados e enterrar os mortos. Sai barato prometer que tomará providências para que tragédias como a de São Sebastião não mais se repitam.

Quando elas se repetem sob a mesma administração, prefeitos e governadores alegam que faltou dinheiro e jogam a culpa no governo federal. E caso se repitam em novas administrações, essas culpam as anteriores, e é vida que segue, cada vez pior.


Não há notícias sobre a morte de afortunados. Muitos, ilhados em suas casas, conseguiram ser resgatados por helicópteros e outros meios fora do alcance da maioria. O número de mortos deverá ultrapassar a casa dos 50, e há milhares de desabrigados.

Em alguns locais do litoral paulista, caíram em poucas horas mais de 600 mm. Dito de outra maneira: mais de 600 litros por metro quadrado, acima da média esperada para todo o mês de fevereiro. Culpa de São Pedro que abriu as comportas do céu?

Foi um evento extremo, concordo. Antigamente, só ocorriam de séculos em séculos, ou a intervalos maiores; amiudaram-se em consequência das mudanças do clima provocadas pelo aquecimento da atmosfera. Mas isso também era previsível.

Estima-se que 5% dos brasileiros moram em áreas sujeitas a inundações e deslizamentos de terras. Estima-se, porque o país não dispõe de dados confiáveis a respeito. E por não dispor, entra governo, sai governo e falta plano que informe sobre o que fazer.

Foi bonito ver três políticos de partidos adversários – Lula (PT), o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o prefeito de São Sebastião, do PSDB -, somarem esforços no socorro às vítimas de mais uma tragédia anunciada. Foi bonito. Não basta, porém.

Por inépcia e omissão das autoridades até aqui, a natureza agredida devolveu e continuará a devolver as agressões que recebe.

Tragédia que se repete

Há mais de 30 anos passei férias em Barra do Sahy, hoje duramente atingida pelas chuvas no litoral norte de São Paulo. O lugar é lindo, lembra o litoral do Vietnam, montanhas, florestas, rio e mar. Lindo realmente, mas chove. Chove muito e muitos pobres moram nas encostas como acontece em todo o Brasil. Nos 30 dias que passei por lá choveu durante 25, pelo menos. Choveu tanto que a parede da casa foi escurecendo de humidade. A uma certa altura comecei a ir para a praia com chuva mesmo.

Durante os poucos dias que amanhecia sem chuva ficávamos olhando para as montanhas tentando adivinhar de qual delas ia surgir a primeira nuvem. Tenho amigos que têm casa em Maresias, ali ao lado e eles relatam as chuvas como elementos da natureza presentes à região. Agora, com a tragédia acontecida pensamos, são tantos anos, a natureza tão teimosa e repetitiva e nada foi feito diante do que acontece com maior ou menor intensidade todos os anos. O Brasil é um país tropical, abençoado por deus(?) e bonito por natureza, mas chove justamente por isso e porque a benção de deus é uma coisa não confiável.


Barra do Sahy, Bahia, Rio de Janeiro, Petrópolis é tudo igual. A natureza faz parte do país. É preciso pensar nela para evitar desmatamento, genocídios e mortes dos habitantes em qualquer lugar, vítimas de natureza que se repete. E as autoridades só olham.

Isso não é seleção natural, nem vontade de deus. Isso é desleixo, falta de vontade política, inércia e crime. Quando veremos obras estruturais que não atraem a atenção nem votos, mas que evitam mortes? O povo precisa comer, ter trabalho e morar num lugar seguro. Isso é fundamental. Não basta só ajudar depois que acontece. Isso é o básico. É importante que não aconteça.

Chover pode até diminuir se desmatarmos menos o ambiente. Mas, vai continuar só que nem toda a chuva deve destruir e matar. As pessoas precisam morar em lugares decentes, não os que sobram. Somos um país pobre, sim, mas também por causa disso. Banco central, juros, inflação são temporais que matam lentamente e só pioram as condições de quem mora em áreas de risco.

O Brasil está virando uma enorme área de risco. Será que vamos sobreviver ou estamos juntando todos os pobres, indígenas, negros e flagelados num mesmo projeto de genocídio por descaso e desprezo.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Pensamento do Dia

 


Que fase!!!!

Por falar nisso, uma fase de energia da minha casa acabou de cair. Televisão funciona, mas ar-condicionado, não. Internet não entra, nem geladeira. Me viro com o que resta no freezer e o celular como modem. Esta é a fase que estamos vivendo no verão brasileiro, calor e muita chuva e essa é a constante dos moradores do Rio de Janeiro. E olha que eu moro na Zona Sul num bairro de classe média alta, onde também moram classes mais baixas. Outra característica do Rio. Minha casa já encheu de água algumas vezes, inclusive agora, nessas chuvas recentes e acabei tendo um prejuízo enorme com um notebook que molhou.


Desastres naturais fazem parte das nossas vidas, mas quando a gravidade deles depende da atuação do poder público aí eu fico passado. Não é a primeira vez. Quem vive nesses doces trópicos deveria estar habituado a bolsões, enchentes, deslizamentos, desabamentos e mortes. Só que nunca nos habituamos, é claro.

Há um ano da tragédia de Petrópolis aqui no estado do Rio nos perguntamos o que foi feito? Podemos responder que assim como os outros desastres, nada. Em Brumadinho também, nada, em Angra dos Reis, nada, no estado de São Paulo, nada. É assim, nada é feito. A prevenção de desastres não gera votos. O desastre é visto como uma decisão divina inquestionável que só nos resta festejar e agradecer a Deus se escapamos, e lamentar os mortos se este for o destino dos nossos próximos. Deus também quis chama-los mais cedo. Ou seja, vemos choros, lamentações, orações e não vemos nada sendo feito para evitar essas tragédias.

A ocupação irregular das encostas, das margens dos rios fazem desta população, que ali constroe suas casas, um grupo de alto risco. Quem morre não vota e quem fica lamenta mais a perda do que transforma a raiva em atitude politica. As tragédias passam eas autoridades responsáveis por isso continuam nas suas posições. Verbas para obras de contenção, de transformação das áreas para evitar desastres são pulverizadas em outras finalidades.

Desde que me conheço por gente que o Rio de Janeiro alaga. Em 1966 uma famosa tempestade matou gente, provocou deslizamentos e virou um escândalo. Deste eu ainda me lembro. Dai pra frente foram vários aqui no Rio e arredores. Faltar luz é uma consequência quase que natural. Poderia até ser desde que conseguíssemos falar com a concessionária. A privatizada Light que revela não ter condições de cumprir o que prometeu confirma seu mau atendimento. Fica difícil ser contribuinte assim.

Os guardas de trânsito já tão difíceis de se achar numa situação legal, quando chove desaparecem de vez. O cidadão fica alagado e desorientado. Uma vez, trabalhando no antigo Teatro Fênix aqui entre a Lagoa e a rua Jardim Botânico, local de históricas enchentes, me vi na rua, com água pelas canelas orientando o trânsito para manter um mínimo de ordem e evitar o caos maior. Não sou nem nunca fui guarda de trânsito ou agente da defesa civil, mas como cidadão senti e continuo sentindo esse impulso. Já não tenho mais tanta energia e depois de tanto tempo achava que as autoridades podiam fazer esse serviço pra mim. Vou adorar e aplaudir.

Onde mora o perigo

Quase dois meses da defenestração do fascismo tabajara do Estado já se respira melhor e o alento da esperança se faz sentir mesmo no caminho de pedras que temos pela frente. Verdade que o governo democrático tem agido com tino, reforçando e ampliando suas alianças, além de perseguir pautas de larga aceitação como as da consolidação das nossas instituições e, principalmente, na sua opção pelos temas ambientais, hoje quase consensuais. Contudo, o cenário, na aparência inofensivo, mal esconde as ameaças que nos rondam. Estropiado como está, depois do insucesso da trama golpista de 8 de janeiro, o bolsonarismo ainda é um movimento político com forte representação no poder legislativo e conseguiu atrair segmentos da população curtidos pelo ressentimento, homens e mulheres, boa parte de meia idade, que encontraram nele um sentido para suas vidas obscuras e solitárias e deve persistir como força eleitoral, ao menos a curto prazo.


Seu movimento não se expressou na forma partido, provavelmente porque Bolsonaro, formado na cultura política do AI-5, dominante nos desvãos da caserna dos anos 1970, sempre se orientou tendo em vista um golpe militar, refratário à política e aos movimentos de massa, apenas mobilizados para fins de agitação e de valorização do seu papel de condottieri. O resultado desastrado da intentona do infausto dia 8, segundo recente declaração sua, parece que lhe abriu os olhos para a política. Daí para a forma partido falta um passo.

O fascismo como ideologia política não nos é estranho, conhecemos, nos anos 1930, o partido Integralista, com forte presença entre militares e intelectuais, influente na criação do Estado Novo, em 1937, e na promulgação autocrática da Constituição fascista que lhe seguiu. A tentativa malograda do golpe dos integralistas contra o governo Vargas, em 1938, resultou na dissolução do integralismo como movimento social, mas não da Carta fascista de 1937, vigente até a democratização de 1945.

Como registra a melhor bibliografia, a nova Carta de 1946 de índole liberal em suas linhas principais garantiu sobrevida a muitas das normas contidas na anterior, em particular as que disciplinavam o mundo do trabalho, preservando a fórmula corporativa e a tutela dos sindicatos pelo Estado e a legislação sobre segurança nacional, além da manutenção do estatuto do exclusivo agrário com que garantiu a coalizão reacionária entre as elites. Com essa construção, sob forma encapuzada o fascismo se manteve em estado latente na ordem liberal entre 1946 e 1964, até que, após o golpe militar, nos fins de 1968, com o AI-5, rompe com ela numa ressurgência do fascismo dos anos 1930.

Com a ascensão de Bolsonaro, um rebento nostálgico do regime do AI-5, à presidência, contando com o beneplácito de setores importantes das elites econômicas, os rumos do seu governo se fixam obsessivamente em solapar as instituições e os fundamentos da Carta de 88 que tinha guarnecido com um sistema defensivo a ordem democrático-liberal que criara. Infrutíferas todas as tentativas, recorreu a uma meticulosa preparação de um golpe de Estado, a que lhe faltou, como sabido, respaldo suficiente na hora decisiva nos altos comandos militares.

Do fiasco, sobrou-lhe sua armata brancaleone, boa parte ainda fiel a ele, e que lhe deve ter serventia para uma eventual organização partidária. Derrotadas pela via da conspiração, as hostes bolsonaristas se orientam, reiterando o movimento da extrema direita em vários países, para o caminho das disputas eleitorais, quando o seu principal objetivo se define pela conquista de posições na chamada direita civilizada, no suposto de que a reação às políticas democratizadoras do novo governo afetando seus interesses, venham a facultar suas pretensões.

Aí é que mora o perigo. Diversa é uma arregimentação para sustentar uma pregação fascista limitada aos porões dos ressentidos da que se encontra escorada em setores das elites dominantes. Franz Neumann, em Behemoth, obra clássica de sociologia política sobre a ascensão do nazismo na Alemanha, e Luchino Visconti, em os Deuses Malditos, filme também clássico, são exemplares narrativas das letais ameaças frutos dessa associação entre as elites e os partidos de ideologias totalitárias.

Nesse sentido, é motivo de preocupação o teor de algumas manifestações publicadas na grande imprensa favoráveis a que se passe um pano no envolvimento do ex-presidente na intentona antidemocrática de 8 de janeiro, na intenção de preservá-lo eleitoralmente, e, principalmente, o fato do presidente do Banco Central, filho excelso da elite econômica brasileira, ter feito profissão de fé na candidatura Bolsonaro e se expor publicamente com vestimenta usual a seus seguidores.

Daí ser imperativo que as lideranças democráticas dos partidos ora responsáveis pelas políticas governamentais estarem atentas a esse processo, ainda larvar, a fim de obstar sua propagação, considerando em cada passo as suas consequências, para as quais estão credenciadas pelos bons resultados até aqui conquistados, por que ainda falta muito para que cheguemos a um porto seguro.