quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Pensamento do Dia

 


E como dói!

Me permita a gramática o pronome enclítico, me permita Vieira o verso fraco e direto, me permita Camões usar sua língua, me permita Homero a rima tão curta, me permita Bandeira os noves fora da vida, me permita Cardoso o encontro dos ventos. Me permita Cecília o motivo da rosa, me permita Vandré o esquecer das flores, me permita Cascudo o ocaso perdido. Me permita Pessoa a alma pequena, me permita Zé Régio o não vou por aí, me permita Quintana a verdade esquecida. E me permita o pensador poeta, arrependido nos versos da dor, ao ver o destino que deram à Pátria, substituir sua Espanha. Não me doem as pernas, não me doem os braços, não me dói o coração. É o Brasil que me dói.

François Silvestre

O convite é para estar no futuro. Agora?

A IA pode ajudar à salvação? A criação artística é também uma construção dessa salvação? É também uma consciência em si? A Arte torna-se uma intrusa ao procurar soluções, por essa consciência feita de invenções. O desafio é aliar natureza, ciência e imaginação. Em perpétuos movimentos e efémeros presentes, para criar futuros de vida

A sala clara e ampla, entre as janelas translúcidas e as brisas do mar, define o ambiente. As Conferências do Estoril, A Future of Hope, aconteceram para a partilha e reflexão sobre ciência, tecnologia e esperança. O ambiente é sereno, sintonizado com a concentração necessária para ver e ouvir algumas das pessoas mais interessantes do mundo. A audiência espera pela conversa sobre Inteligência Artificial entre quatro cientistas: Aaron Ciechanover, bioquímico, Prémio Nobel da Química em 2004; Anindya Ghose, professor de Análise Económica na New York University’s Stern School of Business; Ricardo Gil da Costa, neurocientista e fundador da Neroverse; Chen Zhiyu, presidente da Metro da China, com a moderação de Leid Zejnilovic da Nova SBE.


O futuro está a acontecer, diz-se. E estamos todos convidados. Para o Nobel de Química, a questão é: “Porque precisamos uns dos outros? Estarmos juntos, é fundamental para a natureza humana? Responde, o cientista israelita de 75 anos: a sociabilização é fundamental para a Paz no mundo. Sem empatia, não há Humanidade.

Para Ricardo Gil da Costa, neurocientista formado nos Estado Unidos da América, a IA é uma ferramenta, com vários métodos diferentes. A IA pode ser eficaz e uma tecnologia muito importante ao serviço da humanidade, mas só se o seu desenvolvimento for feito de uma forma pensada, planeada e devidamente estruturada. Se a integração for feita sem precauções, as consequências da utilização desta ferramenta tão poderosa, podem ser devastadoras. A IA pode contribuir para a eficácia e para a justiça da humanidade e ser um recurso, tal como todos os outros, a ser utilizada de forma democrática. Por exemplo, ser utilizada em telemedicina em regiões pobres do mundo, é uma forma de ajudar a essa democratização. Se a IA pode salvar o mundo, essa é outra questão.

Para Ricardo Gil da Costa, nós podemos destruir o mundo, com ou sem IA. Não é a IA que determina a nossa ação. Somos nós. A IA não é mais eficaz que o cérebro humano. O facto de não ter emoções é uma das falhas. Mas não se deve comparar um sistema biológico com um sistema tenológico. Não deve ser acontecer. Não há comparação, acrescenta Gil da Costa. Não se deve perder a liberdade de pensar. A IA nunca deve pensar por nós. É uma questão central ética.

O segundo romance de Margaret Atwood, Ressurgir (Relógio d’Água, 2014) é, supostamente, uma viagem à procura do pai. Torna-se num encontro bruto com a sobrevivência da Natureza. Escreve a autora canadiana:

“O embaraço que algumas pessoas sentem por serem alemãs, pensei, eu sinto-o por ser humana. Em certa medida era estúpido ficar mais perturbada com a morte duma ave do que com aquelas outras coisas, as guerras e os tumultos e os massacres nos jornais.”

Em 1972, quis a romancista escrever sobre a consciência de que, ao matar-se uma ave, morre também o Planeta Terra. É dessa premonição que, à partida é “apenas” literatura, que nos fala António Damásio. Em entrevista ao jornal Público, em 2017, diz o neurocientista: “Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área é Shakespeare.”

No livro Sentir e Saber (Temas e Debates, 2020) dá conta da importância dos sentimentos para a espécie humana, enquanto mecanismo essencial de sobrevivência, e acima de tudo, de evolução. Se os criadores da IA se baseiam em organismos vivos naturais para melhor eficácia da tecnologia, para Damásio, os cientistas omitiram os sentimentos. Enquanto a IA não for vulnerável à dor, ao frio, ao terror e à fantasia, não será IA suficientemente inteligente. Apenas simula. Não pensa. E sem alegria, não há poesia. Sem poesia, não há consciência. A consciência é a última fronteira entre a Máquina e a Humanidade?

Por coincidência, a autora e compositora Bjork veio a Lisboa, para apresentar a digressão Cornucopia. Em cada canção, em cada cenário, em cada tom, sublinhou a importância da tecnologia como ferramenta essencial para o combate às alterações climáticas. A IA pode ajudar à salvação? A criação artística é também uma construção dessa salvação? É também uma consciência em si? A Arte torna-se uma intrusa ao procurar soluções, por essa consciência feita de invenções. O desafio é aliar natureza, ciência e imaginação. Em perpétuos movimentos e efémeros presentes, para criar futuros de vida.

Apocalipse zumbi

Lembram da semana passada? Pois deu tudo certo. Fui num pé, voltei no outro e, no ínterim, passei três dias em San José, capital do Vale do Silício, terceira maior cidade da Califórnia (atrás de Los Angeles e San Diego) e uma das dez mais populosas dos EUA, lar de gigantes como Adobe, Cisco, eBay, PayPal, Zoom e várias outras de que não me lembro, maravilha do mundo ocidental. A parte de trabalho correu às mil maravilhas, mas a minha experiência pessoal com a cidade foi como abrir rapidamente uma janela e ver um pesadelo acontecendo ao vivo.

Não há ninguém nas ruas.

Há carros e, ocasionalmente, algumas bicicletas, mas viver a pé não é opção numa cidade onde cada empresa tem uma sede maior do que a outra no seu próprio campus. Ao mesmo tempo, nunca houve tanta gente na rua — em tendas, debaixo dos viadutos, em pequenas aglomerações precárias. Muitas dessas pessoas são dependentes químicas, mas outras tantas apenas não têm para onde ir.

A Califórnia vive uma crise de moradia sem precedentes, e San José não é exceção.


Para dar uma ideia: o aluguel de um conjugado não sai por menos de U$ 2 mil. Jovens desenvolvedores que precisam estar no coração do mundo da tecnologia pagam U$ 650 pelo aluguel mensal de cápsulas de dormir empilhadas, chamadas pods, que têm 1,20m de altura e onde cabe um colchão de solteiro (e acham bom negócio). Esses hostels supercompactos, onde é difícil conseguir vaga, têm áreas de convivência e banheiros compartilhados, exatamente como os hotéis cápsula de Tóquio ou os claustrofóbicos microapartamentos de Hong-Kong. Não cheguei a ver nenhum deles; descobri que existem ao pesquisar sobre a crise de moradia na cidade, que parece incongruente diante da vastidão dos espaços vazios.

O meu esquema de mala única falhou desta vez, e precisei comprar uma outra mala. O pessoal do hotel indicou um shopping a 15 minutos de Uber. Pois ele estava quase tão vazio quanto as ruas da cidade. Muitas lojas desoladas e caídas, quando não simplesmente fechadas.

Não achei nenhuma mala pequena e barata na gigantesca Macy’s, nem qualquer funcionário que pudesse me esclarecer os preços do que havia. Para não perder a viagem, resolvi comprar um jeans. São dezenas de marcas, centenas de modelos e tamanhos, milhares de unidades; quase todas já vêm rasgadas.

(Você sabe que está velha quando não consegue mais entender a moda.)

Um mar imenso e compacto de peças feias, cabide após cabide... para ninguém. Pensei em fugir correndo, mas encontrei três que poderiam servir; os provadores, porém, estavam fechados. Andei vários minutos com as peças na mão sem encontrar uma única pessoa.

Havia um provador aberto do outro lado da loja. Lá também não havia nenhuma funcionária, nem mesmo aquela clássica figura que costuma conferir, na entrada, quantas peças a gente está levando. As cabines pareciam todas ocupadas; na verdade estavam vazias, mas cheias de roupas que outras clientes haviam experimentado e deixado por lá mesmo.

Além da crise de moradia, a Califórnia vive também, desde a pandemia, uma tremenda crise de mão de obra.

Na Target havia um pouco mais de gente; em compensação, a seção de malas estava bastante desabastecida. Peguei a primeira que vi e pronto. O que havia em abundância eram produtos para o Halloween, um monte de bobagens que vão servir para um único dia e depois serão lixo até o fim dos tempos.

Ah, sim: havia uma funcionária na caixa. Ela não falava inglês.