sábado, 22 de fevereiro de 2020
O gabinete fardado
O gabinete fardado está sendo analisado como um freio ao extremismo histriônico da ala ideológica do governo, formatada pelo olavismo. O fato poderia ser visto como uma oportunidade para que se imprima um novo estilo de atuação ao governo, reduzindo seu sectarismo e sua visão obnubilada da realidade. Um estilo mais frio não daria trela às baixarias dos ideólogos.
Nessa avaliação, o novo gabinete poderia funcionar como um freio de arrumação, que acomodaria as melancias que o governo deixa chacoalhar na carroceria. Ajudaria a reduzir o destempero presidencial. Formar-se-ia um colegiado decisório que, apoiado na hierarquia militar e na cultura da caserna, faria um contraponto às manifestações bélicas do bolsonarismo. Afinal, em tempos de paz é mais importante saber guardar e reforçar posições do que atacar, sobretudo se os inimigos são imaginários.
Tudo isso a se ver. Antes de tudo será preciso descobrir se os oficiais têm um plano para recuperar a imagem do governo, se atuarão como fator de equilíbrio ou se darão um cheque em branco ao presidente Jair Bolsonaro, estimulando suas intervenções desqualificadas. Aconteceu algo assim com o general Heleno, no início visto como “moderador”, mas que logo se revelou um ativista do bolsonarismo, um “incendiário”.
A Casa Civil está com o general Braga Netto, militar experiente. Órgão estratégico, dele depende a coordenação governamental e a organização de um ambiente favorável no Congresso. Militares são, como todos os cidadãos, seres políticos qualificados para pensar o Estado, a comunidade política. Fazem isso, porém, com uma sólida ideia de lealdade e uma forte carga corporativa, que os impulsiona a verem a si próprios como diferentes dos demais e com interesses que precisariam ser defendidos a ferro e fogo. São treinados para “desconfiar” dos políticos, não para fazer política.
Se não tiver jogo de cintura, um general na Casa Civil pode dificultar ainda mais as relações entre o Executivo e o Legislativo. Pode, também, aprofundar a inserção das Forças Armadas no governo, com o risco de que terminem por trocar o perfil técnico e a missão institucional de proteger o Estado pela gestão dos negócios governamentais e pelos conflitos políticos a eles inerentes. Militares num governo autoritário, como é o de Bolsonaro, não beneficiam a imagem de isenção democrática das Forças Armadas. É algo que as lança no olho do furacão, ainda que sejam apenas alguns oficiais a assumir o encargo.
Um governo com uma ala militar ativa pode transitar em campo minado. Como observou o sociólogo Rodrigo Prando, em caso de rompimento com os militares o governo poderia ver-se numa crise de desfecho imprevisível. Militares sabem ocupar territórios, mas não necessariamente estão preparados para dialogar, mover-se entre ideias plurais e pressões típicas do mundo político.
No Brasil as Forças Armadas são vistas como patrióticas, disciplinadas e “desinteressadas”. Mas carregam o fardo do golpismo e do autoritarismo. Acreditam que os militares existem para salvar o País. É provável que os oficiais mais jovens não compartilhem esse fardo. A caserna, porém, é mais ampla. Seja como for, já estão dadas as condições para que as Forças Armadas contenham os seus impulsos históricos e atuem democraticamente.
A presença militar tenderá a incentivar uma postura focada em resultados estruturais, alheios ao jogo eleitoral. É onde repousa o risco de atrito com a política. Também terá de se haver com as resistências do núcleo civil do governo. A “militarização” coincide com o comportamento autoritário e debochado do presidente, com seu familismo exacerbado. É difícil imaginar que Bolsonaro adote uma conduta mais digna e educada, mais criteriosa com as políticas estratégicas e os interesses nacionais. A questão não é de espaço e poder de pressão, mas de biografia, estilo e modo de pensar.
Deveria ser constrangedor, para a ética militar, que as grosserias, ofensas e aberrações do presidente estejam a ser cometidas nas barbas dos oficiais que integram o núcleo principal do governo. Militares costumam ser discretos, falam pouco, cuidam da linguagem. Não deveriam lavar as mãos diante dos descalabros que jogam a Presidência da República num poço sujo e sem fundo.
O gabinete fardado dará força à tecnocracia? Vai depender, também, da capacidade que tiverem os políticos de equilibrar a balança. O Congresso tem contrastado a falta de iniciativa do Executivo no que tange às reformas e à formulação de políticas públicas. Se calibrar bem a sua atuação e reunir as forças democráticas de oposição, o Congresso poderá ajudar a que se organize uma agenda nacional e se modifique a orientação de uma população que acredita que a saída está fora da política e longe do Parlamento.Marco Aurélio Nogueira
O uso do cachimbo
Se a frase do general tivesse sido pronunciada dentro de um quartel, a democracia brasileira estaria sendo evidentemente ameaçada e, a essa altura, poderia estar quebrada. “Não podemos aceitar esses caras nos chantageando, foda-se!”, disse Heleno, referindo-se ao desejo do Congresso de mexer no Orçamento da União, pressionando por emendas parlamentares. O que isso significa, além de desrespeito? Significa que o general entende como chantagem um poder legítimo dado pela Constituição ao Poder Legislativo.
O ministro deveria ter pedido desculpas imediatamente. Afinal, poderia dizer, foi um papo informal sem a conotação política que se quer dar agora. Mas, não. O que Heleno fez foi confirmar a compreensão equivocada que tem da distribuição de poderes. Ele disse que a conversa foi objeto de vazamento para a imprensa. Não negou o seu teor nem a sua intenção. E esse, vejam só, era o general mais respeitado no início do governo, considerado um moderado quando o temido era o hoje pacificado vice-presidente Hamilton Mourão.
O problema do general é o uso do cachimbo que faz a boca torta. Nenhum militar nasce antidemocrático ou avesso ao cumprimento da Constituição. Ao longo da carreira, o seu inestimável apreço à hierarquia também pode ser medido pelo obsequioso respeito a normas, regras e leis. Ocorre que eventualmente um homem que passou a vida inteira recebendo e dando ordens que não podiam ser contestadas habitua-se a esse mundo do “eu mando e você obedece!”.
Por isso Heleno gritou “foda-se!”. Falava com o cacoete de um general, irado com o que via como insubordinação. Afinal, deve ter concluído, o Orçamento é do Executivo e esses caras deveriam simplesmente sancioná-lo. Claro que apenas o cacoete não construiria uma bobagem do tamanho da expressada pelo ministro. O fato de serem muitos os militares no governo (no Palácio, não há mais civil em cadeira de ministro, são três generais da reserva e um major da PM reformado) tampouco induziria a esse tipo de arroubo. Um outro general, o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, estava negociando com o Congresso a execução de emendas parlamentares quando Heleno atalhou.
Heleno tem as costas quentes, e sabe muito bem quem o protege e por quê. O presidente da República, um veterano parlamentar com sete mandatos de deputado federal, que conhece muito bem como os poderes são distribuídos, deveria ser o primeiro a conter ímpetos totalitários de seus subordinados. Mas, ninguém tem dúvida, Bolsonaro concorda com o equivocado general e ele mesmo não tem lá grande apreço pela democracia. Por isso o ministro segue no seu cargo como se nenhuma barbaridade houvesse pronunciado.
No limiar de um terceiro erro
Nessa linha de raciocínio, podemos dizer que nossa identidade nacional já passou por duas fases — duas versões, duas ilusões — e dois erros colossais, que nos deixaram no limiar de um possível terceiro grande erro. A primeira versão foi a ideia do “brasileiro pacífico”, da conciliação entre as elites políticas, da “cordialidade” entre as pessoas comuns e da inexistência de racismo. No essencial, essa “narrativa” tinha um claro sentido de bajulação ao ditador Getúlio Vargas, exaltado como fundador da nacionalidade, culminando numa concepção do poder central como um Estado poderoso, bondoso e paternalista.
Era um apelo à convergência num país fadado a se transformar profundamente assim que a democracia fosse restabelecida, os conflitos políticos se acirrassem, e sofrêssemos os impactos externos da guerra fria. Uma sociedade concebida pela maioria como quase estática, invulnerável a abalos de monta e avessa a movimentos de mobilização política contrários ao governo.
Precocemente envelhecida, a cultura da cordialidade cedeu lugar ao chamado nacional-desenvolvimentismo, um projeto lastreado materialmente na industrialização substitutiva de importações e ideologicamente no nacionalismo. Essa nova fórmula também fez certo sentido enquanto o modelo de crescimento induzido pelo Estado permaneceu crível. O golpe de misericórdia que a inviabilizou em definitivo foi a tentativa do governo Geisel de acelerar a industrialização com base num enorme endividamento externo, opção liquidada entre 1973 e 1979 pelos choques do petróleo e a abrupta elevação das taxas de juros às quais a dívida fora indexada.
A nação “cordial” e o “nacional-desenvolvimentismo” tinham dois pontos importantes em comum. Primeiro, imaginavam ser possível o desenvolvimento de uma nação que em nenhum momento pôs em prática um projeto vigoroso de educação básica e de capacitação técnica da mão de obra. Segundo, aferraram-se a um doentio anti-liberalismo, à ideia do Estado empreendedor, a uma hostilidade ao mercado e, não menos importante, ao autarcismo, quero dizer, à opção por uma economia fechada. Estes dois componentes estão aí bem à mostra, como os pés de barro do gigante que queríamos (ou queremos) ser.
Imagem do Dia
Brasil vai fazer sucesso no tradicional desfile de segunda-feira, ponto alto do Carnaval de Colônia, um dos mais tradicionais da Alemanha. "Esse é meu carro preferido", derrete-se Holger Kirsch, diretor do desfile, em entrevista ao jornal local Kölner Stadt-Anzeiger. Será o único carro alegórico com personagem isolado. Dez, nota dez, para o orgulho brasileiro
Revolução por revolução, melhor a sem sangue
Na verdade, descartado o jogo de cena, nem a esquerda, nem a direita da privilegiatura admitem que toquem nos privilégios dela. Não ha nada a estranhar no fato de um país naufragado continuar sendo estuprado por aumentos automáticos nos salários do funcionalismo público indemissível. Como todo mundo na vida como ela é, os políticos também só “entregam serviço” para quem tem o poder de “demiti-los”. E o funcionalismo é o único corte da população que tem não só um canal direto de cobrança como também o poder de retaliar esses “patrões” eventuais sabotando os mandatos deles. Para o resto de nós eles são inatingíveis uma vez eleitos.
O político padrão não formula políticas. Isso é coisa de estadista. São apenas oportunistas úteis que atendem demandas do mercado eleitoral para chegar ao poder e continuam a fazê-lo apenas e tão somente para permanecer no poder. A quem amarrar o destino deles é, portanto, a questão que decide tudo. Enquanto a política continuar fechada em si mesma toda ação dos políticos, malgrado todos os esforços dos eventuais estranhos nos ninhos dos Legislativos e dos Executivos, continuará respondendo exclusivamente à única força em condições de submetê-los.
Deu pra levar enquanto havia o bastante para que o País Real se mantivesse em ascensão mesmo sangrado sem parar pelo Pais Oficial. Mas em alguma altura do percurso do tsunami arrecadatório que FHC pôs para rolar e o lulismo acresceu da roubalheira e do empreguismo publico desenfreados, foi contornada a “Curva de Lafer” que assinala o ponto onde o custo do Estado e a carga de impostos matam a economia e a arrecadação diminui mesmo aumentando as alíquotas. Hoje, entre ativos, aposentados e hereditários, eles são por volta de 10 milhões de pessoas. Menos de 0,5% da população, mas que come 97% do trilhão e meio de reais, mais de 40% do PIB, que os governos nos arrancam na forma de impostos todo ano. Seus privilégios podem ser vistos até lá do Banco Mundial que mede a distância entre os ricos e os pobres do mundo. E o buraco do Brasil, onde excluídos os muito ricos e alguns outros espécimes raros em vias de extinção existem os funcionários públicos e os pobres é recorde no planeta.
Quanto às reformas tributária e administrativa e as outras tentativas do ministro Guedes de modular a despesa pela receita a questão é simples. A única solução eficiente é também a única solução decente: flexibilidade absoluta. Qualquer outra não funciona. Qualquer outra é indecente. Só se explica pela preservação de privilégios odiosos.
Não adianta discutir a cada 50 anos a alteração de regras que não serão cumpridas nem gerarão consequências para quem as desrespeitar porque tudo continuará sendo uma ação entre amigos. Enquanto não ligar o fio terra do País Oficial no País Real e fizer toda decisão política começar e acabar no povo continuaremos assistindo essa briga de foice no escuro entre grupos de interesse pelos pedaços do orçamento público. Uma hora está mais pra sindicalista de ladrão, outra mais pra sindicalista de polícia, mas tudo que sobra para o povo é sempre aparar as foiçadas à mão nua.
Só o que resolve é mudar quem tem o poder de punir o descumprimento da regra.
“Eleições” como essas que temos por aqui não chegam nem a arranhar a pele do “Sistema”. O eleitor só é chamado para a disputa de pênaltis de um jogo jogado à sua revelia para chancelar com seu voto os plenos poderes vitalícios e hereditários entregues a mais uma fornada de representantes de si mesmos que nunca vão saber quem foi que os elegeu, antes de ser expulso de campo de novo.
A “petrificação constitucional” do privilégio por “direito adquirido” – que torna exigível à mão armada de lei a repetição ad infinitum de qualquer assalto da privilegiatura ao bolso da escravatura que tiver sido perpetrado uma vez – é o substituto da “vontade de deus” na velha ordem absolutista. “Cola” exclusivamente porque tem por trás a ameaça da “fogueira”, da morte econômica, da paralisia burocraticamente imposta, da devassa permanente, do processo sem fim, do “esculacho” policial e da cadeia. O castigo depende da casta a que o indivíduo pertence mas é absolutamente certo.
Mas certo também como a História mostra que é, isso acaba inevitavelmente em revolução. E revolução por revolução a melhor é a sem sangue. Chama-se “democracia representativa”.
O primeiro passo deve ser, portanto, instalar na “pátria amada” a condição sem a qual uma democracia representativa é impossível: o voto distrital puro com recall que amarra com transparência absoluta, pessoal e intransferível o destino de cada representante eleito à satisfação dos seus representados.
Isso dará aos brasileiros as pernas que hoje lhes faltam para caminhar por si mesmos. Então, bons de drible como sempre fomos, poderemos discutir, diante do que der e vier, para que lado queremos ir.
Que a mentira seja verdade
A linguagem política - e , com variações, isso é válido para todos os partidos políticos, de conservadores a anarquistas - é projetada para fazer que as mentiras soem verdadeiras e o assassinato seja respeitável, e para dar uma aparência de solidez ao puro ventoGeorge Orwell "Como morrem os pobres e outros ensaios"
Tempestade em Brasília faz a democracia se aproximar da faixa de risco
Só o tempo, na minha opinião, poderá ultrapassar a área de atrito e mesmo assim através de uma operação que vai exigir uma reaproximação não tão veloz como é o desejo do Parlamento e também da maioria esmagadora da população brasileira.
Essa reaproximação vai exigir também a presença do presidente Jair Bolsonaro, que, afinal de contas, é o chefe do governo.
Os sinais de que poderiam surgir problemas começaram a se fazer sentir recentemente em Brasília com atitudes temperamentais de Bolsonaro e também em decorrência da nomeação do general Braga Neto para articulador político em substituição a Onyx Lorenzoni.
A reportagem de Naira Trindade, Isabella Macedo, Amanda Almeida e Thais Arbex, O Globo de quinta-feira, focaliza com nitidez a existência de uma trilha de pólvora que necessita ser apagada urgentemente, deixando claro o compromisso de Bolsonaro com a Democracia.
Os riscos do passado recente voltam a estar presentes na caminhada institucional do Brasil depois de 21 anos de ditadura político-militar. Eu disse político-militar porque o partido do governo, a Arena, tentava coonestar os atos de arbítrio. Tais atos chegaram ao ponto de criar a figura do senador biônico e de culminarem com a proibição do ballet Bolshoi, 200 anos de arte, porque era então um ponto de cultura soviética.
Mas isso ficou no passado. Como a propaganda política que foi congelada nas emissoras de televisão e rádio pelo governo Ernesto Geisel.
Agora estamos numa escala em que o regime democrático parecia estar, como tudo indica, consolidado com a vitória de Jair Bolsonaro nas urnas de 2018. Legítimo seu mandato, portanto não necessita de legitimação.
Mas o que exige ações legítimas são os atos e pronunciamentos do governo que incluem tanto o presidente quanto sua equipe ministerial. Sinal de alarme tocou mais forte esta semana com o duelo Augusto Heleno contra Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. Aliás, para ser exato, surgiu até um pouco antes com a baixa ofensa do presidente à repórter da Folha de São Paulo. De tão rude o episódio merece um lugar abominável na história do relacionamento do poder com a imprensa.
O panorama político do país, portanto não é dos melhores. Quando colisões graves começam a ocorrer deve ser sinal de preocupação de todos e não somente do governo.
Brasil novo ou Brasil velho?
A figura ao lado mostra o que ocorreu com os salários e renda familiar per capita das famílias brasileiras em termos reais entre 1981 e 2018, separadamente para os 30% mais pobres, os 30% mais ricos e para os 40% que estão entre esses dois extremos, a chamada “classe média”. Podemos notar, em primeiro lugar, que o salário médio dos trabalhadores que estavam nas famílias mais pobres cresceu 42%, enquanto na classe média o crescimento foi de 25% e entre os trabalhadores mais ricos apenas 14%. Como interpretar esses fatos?
O maior aumento de salário entre os pobres e na classe média deve-se ao forte aumento do salário mínimo e à grande melhora educacional que houve no Brasil nesse período. Cerca de 1/3 dos trabalhadores nas famílias mais pobres tem carteira assinada e recebe o salário mínimo. Já o pequeno crescimento salarial entre os trabalhadores mais ricos num período tão longo deve-se principalmente ao baixo crescimento da produtividade da nossa economia, que nesse período foi de apenas 16%. Além disso, os mais ricos podem estar recebendo uma parcela crescente da sua renda do trabalho através de PJs ao invés de salários.
A renda familiar per capita média dobrou entre os mais pobres e na classe média e cresceu 68% entre os mais ricos. A diferença entre o crescimento da renda per capita e dos salários decorre em grande parte da diminuição do número de filhos que ocorreu em todas as classes. Em 1981 as famílias mais pobres tinham em média quase 7 pessoas morando em casa, ao passo que em 2018 eram apenas 4,5. Na classe média, o número de pessoas passou de 5,5 para 3,5 e entre os mais ricos de 3,8 para 3 pessoas. O aumento na participação das mulheres e os programas de transferências de renda também contribuíram para o aumento da renda familiar. Vale lembrar que as pesquisas domiciliares não capturam muito bem o rendimento total dos muito ricos.
A mudança demográfica ainda persistirá por algum tempo entre os mais pobres, mas o ritmo de queda do número de filhos será cada vez menor. Assim, a renda familiar deverá acompanhar cada vez mais o crescimento dos salários que, por sua vez, irá depender do crescimento da produtividade, já que não haverá mais aumentos reais do salário mínimo.
Na verdade, o comportamento da renda familiar nos últimos 38 anos engloba dois períodos distintos, que podemos chamar de “Brasil velho” (1981 a 1993) e o “Brasil novo” (1993-2018). Durante o Brasil velho, os salários caíram cerca de 30% entre os mais pobres e 15% entre os mais ricos. A renda familiar caiu para todas as classes. Era um período de economia fechada e hiperinflação, em que as pessoas mais pobres eram basicamente relegadas a sua própria sorte, sem acesso à educação, saúde ou assistência social.
No Brasil novo, os salários dos mais pobres dobraram e sua renda aumentou 142%. A renda dos mais ricos aumentou 78%, ou seja, todos ganharam. Foi o período em que o Plano Real acabou com a inflação, a Constituição de 1988 instituiu o SUS e a estratégia Saúde da Família, as vagas no ensino superior triplicaram, o Fundef redistribuiu recursos educacionais para os municípios mais pobres, o salário mínimo foi valorizado e os modernos programas de transferência de renda foram criados.
Agora temos que decidir o que seremos no futuro. Uma das pré-condições para garantir a solvência do país foi fazer a reforma da previdência, que era o nosso principal desafio na área fiscal. As reformas do mercado de trabalho, se não geraram o crescimento esperado de emprego, pelo menos tornaram as leis trabalhistas um pouco menos rígidas. As reformas fiscais, administrativa e tributária que estão na ordem do dia também são importantes para manter a estabilidade fiscal e melhorar a racionalidade econômica. Mas elas serão insuficientes para gerar crescimento de produtividade, renda e emprego no longo prazo.
Para que possamos crescer de forma sustentada teremos que investir nas pessoas. Como a transição demográfica está acabando, será necessário melhorar a educação e saúde dos mais jovens, especialmente das crianças. Nesse sentido, a estagnação do orçamento da área social durante a recessão é uma política típica do Brasil velho, que irá causar problemas enormes no futuro, ao afetar o desenvolvimento infantil. A ausência de um sistema educacional articulado, em que políticas bem sucedidas sejam implementadas em todas as redes, prejudicará muito as novas gerações. Enfim, falta fazer a maior das reformas: igualar as oportunidades entre as crianças (com mais educação, saúde e assistência social) e entre empresas (através de maior competição).
Em suma, a renda dos mais pobres cresceu bastante nas últimas décadas devido à melhora educacional, valorização do salário mínimo, transferências de renda e principalmente devido à redução do número de filhos. O salário entre os mais ricos cresceu apenas 14% em 37 anos, reflexo da falta de crescimento de produtividade. Se ela não aumentar, os próximos 20 anos serão desastrosos para todos. As reformas para arrumar a casa são necessárias, mas insuficientes para um crescimento sustentado de produtividade. Precisamos voltar a investir nas pessoas. Precisamos decidir se queremos voltar a ser o Brasil velho ou se continuaremos na trajetória do Brasil novo.Naercio Menezes Filho
A paga da praga
Há ocasiões em que o uso de uma frase feita se justifica por ser muito benfeita e se aplicar perfeitamente a determinadas situações. A que me ocorre diante das últimas ofensivas de Jair Bolsonaro é aquela segundo a qual um presidente da República pode muito, mas não pode tudo. Não pode, sobretudo, infringir a lei. A uma delas, que contempla os casos que dão margem a pedidos de impeachment, o presidente da República tem agredido permanentemente.
Em seu artigo 9º, a Lei Nº 1079 lista um desses casos ao vedar ao mandatário, sob pena de impedimento, “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro no cargo”. Tal incompatibilidade de procedimentos tem sido uma constante na conduta do presidente, que se acha autorizado a ofender com gestos e palavras qualquer um que lhe pareça merecedor de impropérios.
Em matéria de grosseria guarda semelhanças com o general João Figueiredo e com Luiz Inácio da Silva (pausa para os protestos dos súditos). Ocorre que, além de sua produção de rudezas não chegar aos pés das indelicadezas de seus antecessores, um presidia sob ditadura (já decadente, mas ditadura) e o outro governava sob uma quase unanimidade míope, para não dizer cega.
A falta de educação do atual presidente não encontra paralelo à altura na história do país. Sua ausência de noção do que seja um comportamento condizente com a Presidência da República, tampouco. Todo dia ofende alguém, que não precisa nem estar na oposição. Basta ser visto por ele como adversário, mesmo ocasional, conforme podem atestar Hamilton Mourão e Sergio Moro, os demitidos com humilhação e os rebaixados em feitio de degradação.
Conduzir-se de modo hostil, principalmente quando se detém poder e a agressão se dirige a subordinados, é o sinal mais evidente de grave complexo de inferioridade. É um preceito rudimentar da psicologia. Outro, menos elementar, enquadra esse tipo de complexado na categoria das pessoas com pouca capacidade de avaliação de riscos. Em outras palavras, vocacionadas para a onipotência.
A título de ilustração, recorro a outra frase, esta de autor conhecido, Millôr Fernandes: “Sua excelência chegou ao limite da ignorância e, no entanto, prosseguiu”. Assim tem se conduzido o presidente da República, permanentemente testando e ultrapassando todos os limites da condescendência geral e do respeito devido à instituição Presidência, para a qual foi eleito dentro dos parâmetros de legalidade e legitimidade.
Isso, no entanto, não lhe confere o direito de dar-se ao desfrute de tentar desqualificar governadores tão eleitos quanto ele, de distribuir gestos de “bananas”, de ofender homens, mulheres, familiares de opositores, profissionais de imprensa cujo ofício lhe garante visibilidade, parlamentares ou quaisquer grupos, entidades e cidadãos. Brasileiros ou não.
Desse modo o presidente só desagrega e atrai malefícios para si, embora diga-se que se trata de um método para consolidar a fidelidade daquele eleitorado que o tem como herói da resistência ao politicamente correto e ao (inexistente) avanço da esquerda. Se for isso mesmo, é difícil de entender a eficácia da metodologia.
O que tem ele a ganhar, por exemplo, arrumando confusão com a maioria dos governadores, que em menos de quinze dias divulgaram duas manifestações formais e conjuntas sobre posicionamentos do presidente completamente descabidos? A primeira sobre uma inexequível extinção da cobrança de impostos sobre combustíveis e a segunda a respeito de ação policial resultante na morte de um fugitivo com a qual em tese ele não tem nada a ver. A menos que tenha, sabe-se lá.
Neste ano e meio desde a eleição, Jair Bolsonaro não conquistou apoios novos e ainda deixou vários pelo caminho, perdidos justamente em razão do desvario nas falas e nas maneiras. Denotar apoio ao presidente, se ainda não virou totalmente, está virando uma espécie de carimbo socialmente negativo. Um inegável inconveniente para quem depende de votos.
Mas não pensemos apenas em eleição, até para não incorrer no equívoco de desprezar a influência dos acontecimentos entre uma e outra, como os que se fiam exclusivamente em pesquisas de preferências eleitorais feitas com muita antecedência. Há o cotidiano, e neste o presidente tem imprimido um ritmo de desatinos que podem levá-lo do flerte a relações mais consistentes com o risco de sofrer processo de impedimento.
E é nesse tipo de situação que governantes mais precisam de pontes de diálogo e redes de proteção.
Dora Kramer
Em seu artigo 9º, a Lei Nº 1079 lista um desses casos ao vedar ao mandatário, sob pena de impedimento, “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro no cargo”. Tal incompatibilidade de procedimentos tem sido uma constante na conduta do presidente, que se acha autorizado a ofender com gestos e palavras qualquer um que lhe pareça merecedor de impropérios.
Em matéria de grosseria guarda semelhanças com o general João Figueiredo e com Luiz Inácio da Silva (pausa para os protestos dos súditos). Ocorre que, além de sua produção de rudezas não chegar aos pés das indelicadezas de seus antecessores, um presidia sob ditadura (já decadente, mas ditadura) e o outro governava sob uma quase unanimidade míope, para não dizer cega.
A falta de educação do atual presidente não encontra paralelo à altura na história do país. Sua ausência de noção do que seja um comportamento condizente com a Presidência da República, tampouco. Todo dia ofende alguém, que não precisa nem estar na oposição. Basta ser visto por ele como adversário, mesmo ocasional, conforme podem atestar Hamilton Mourão e Sergio Moro, os demitidos com humilhação e os rebaixados em feitio de degradação.
Conduzir-se de modo hostil, principalmente quando se detém poder e a agressão se dirige a subordinados, é o sinal mais evidente de grave complexo de inferioridade. É um preceito rudimentar da psicologia. Outro, menos elementar, enquadra esse tipo de complexado na categoria das pessoas com pouca capacidade de avaliação de riscos. Em outras palavras, vocacionadas para a onipotência.
A título de ilustração, recorro a outra frase, esta de autor conhecido, Millôr Fernandes: “Sua excelência chegou ao limite da ignorância e, no entanto, prosseguiu”. Assim tem se conduzido o presidente da República, permanentemente testando e ultrapassando todos os limites da condescendência geral e do respeito devido à instituição Presidência, para a qual foi eleito dentro dos parâmetros de legalidade e legitimidade.
Isso, no entanto, não lhe confere o direito de dar-se ao desfrute de tentar desqualificar governadores tão eleitos quanto ele, de distribuir gestos de “bananas”, de ofender homens, mulheres, familiares de opositores, profissionais de imprensa cujo ofício lhe garante visibilidade, parlamentares ou quaisquer grupos, entidades e cidadãos. Brasileiros ou não.
Desse modo o presidente só desagrega e atrai malefícios para si, embora diga-se que se trata de um método para consolidar a fidelidade daquele eleitorado que o tem como herói da resistência ao politicamente correto e ao (inexistente) avanço da esquerda. Se for isso mesmo, é difícil de entender a eficácia da metodologia.
O que tem ele a ganhar, por exemplo, arrumando confusão com a maioria dos governadores, que em menos de quinze dias divulgaram duas manifestações formais e conjuntas sobre posicionamentos do presidente completamente descabidos? A primeira sobre uma inexequível extinção da cobrança de impostos sobre combustíveis e a segunda a respeito de ação policial resultante na morte de um fugitivo com a qual em tese ele não tem nada a ver. A menos que tenha, sabe-se lá.
Neste ano e meio desde a eleição, Jair Bolsonaro não conquistou apoios novos e ainda deixou vários pelo caminho, perdidos justamente em razão do desvario nas falas e nas maneiras. Denotar apoio ao presidente, se ainda não virou totalmente, está virando uma espécie de carimbo socialmente negativo. Um inegável inconveniente para quem depende de votos.
Mas não pensemos apenas em eleição, até para não incorrer no equívoco de desprezar a influência dos acontecimentos entre uma e outra, como os que se fiam exclusivamente em pesquisas de preferências eleitorais feitas com muita antecedência. Há o cotidiano, e neste o presidente tem imprimido um ritmo de desatinos que podem levá-lo do flerte a relações mais consistentes com o risco de sofrer processo de impedimento.
E é nesse tipo de situação que governantes mais precisam de pontes de diálogo e redes de proteção.
Dora Kramer
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