quarta-feira, 11 de junho de 2025
O imbrochável brochou
Quem já foi vítima de abuso sabe: basta uma frase, uma imagem, uma voz. O corpo inteiro responde. Não é escolha, é memória. O trauma volta antes do pensamento. Foi o que senti ao assistir a Jair Bolsonaro no depoimento a Alexandre de Moraes no STF.
E sei que não estou sozinha. Para milhões de brasileiros, Bolsonaro não é apenas um ex-presidente. É um gatilho. Apesar de me dar ojeriza, essa palavra que virou muleta linguística talvez seja o que melhor define a lembrança de viver com a sensação constante de uma mira na nuca durante seu governo. Quatro anos sem um minuto de sossego. Um país assediado moralmente, submetido à pedagogia do ódio.
Mas, diante do ministro, o imbrochável chipado brochou. Pediu desculpas, fez piada, riu de desespero —não chega a dar prazer porque a cara sebosa não permite. Convidou Moraes para ser seu vice em 2026. Foi o momento stand-up no corredor polonês. Inelegível, acuado, constrangendo até os próprios seguidores que esperavam ao menos um grito, um coice, um chilique digno do personagem. Em vez disso, um homem murcho, escolhendo frases domesticadas como quem já cheira o mofo da ficha criminal.
Seria só patético, não fosse o tamanho do estrago. Bolsonaro transformou almoços de domingo em zonas de guerra ideológica. Armou o tio do zap contra a sobrinha feminista, criou patriotas de rede social que confundem corrente do Telegram com Constituição. Fez do verde e amarelo um uniforme de seita. Ele não dividiu apenas o país, ensinou as pessoas a se odiarem com método, disciplina e memes. O preço dessa cartilha do ressentimento ainda será cobrado em prestações longas.
Não tenho alma punitivista, mas amém que Bolsonaro não será perdoado. Que a Justiça o condene. Que a história o engavete. Quero acreditar que nossa democracia saiu um pouco mais madura e preparada para reconhecer o rosto, o tom, a retórica de um abusador, mas sinto que ainda levará bastante tempo. A cada eleição, o país parece disposto a dar chance ao embusteiro da vez, contanto que ele prometa Deus, arma e gasolina barata.
E sei que não estou sozinha. Para milhões de brasileiros, Bolsonaro não é apenas um ex-presidente. É um gatilho. Apesar de me dar ojeriza, essa palavra que virou muleta linguística talvez seja o que melhor define a lembrança de viver com a sensação constante de uma mira na nuca durante seu governo. Quatro anos sem um minuto de sossego. Um país assediado moralmente, submetido à pedagogia do ódio.
Mas, diante do ministro, o imbrochável chipado brochou. Pediu desculpas, fez piada, riu de desespero —não chega a dar prazer porque a cara sebosa não permite. Convidou Moraes para ser seu vice em 2026. Foi o momento stand-up no corredor polonês. Inelegível, acuado, constrangendo até os próprios seguidores que esperavam ao menos um grito, um coice, um chilique digno do personagem. Em vez disso, um homem murcho, escolhendo frases domesticadas como quem já cheira o mofo da ficha criminal.
Seria só patético, não fosse o tamanho do estrago. Bolsonaro transformou almoços de domingo em zonas de guerra ideológica. Armou o tio do zap contra a sobrinha feminista, criou patriotas de rede social que confundem corrente do Telegram com Constituição. Fez do verde e amarelo um uniforme de seita. Ele não dividiu apenas o país, ensinou as pessoas a se odiarem com método, disciplina e memes. O preço dessa cartilha do ressentimento ainda será cobrado em prestações longas.
Não tenho alma punitivista, mas amém que Bolsonaro não será perdoado. Que a Justiça o condene. Que a história o engavete. Quero acreditar que nossa democracia saiu um pouco mais madura e preparada para reconhecer o rosto, o tom, a retórica de um abusador, mas sinto que ainda levará bastante tempo. A cada eleição, o país parece disposto a dar chance ao embusteiro da vez, contanto que ele prometa Deus, arma e gasolina barata.
E se os refugiados do clima formos nós?
Os Países Baixos tentaram combater a subida do nível das águas erguendo muralhas contra o mar, mas acabaram por falir e desaparecer de forma caótica. Mais avisada, a Dinamarca decretou o “fecho” do país, antes de ficar submersa, e definiu um calendário para a saída ordenada dos seus habitantes que, num espaço de poucos meses, viram-se forçados a separar-se de familiares e amigos e a partir para o exílio. Tudo isto se passa na Europa, num futuro não muito longínquo.
Os sete proféticos episódios de Families Like Ours, assinados pelo dinamarquês Thomas Vinterberg, foram estreados na última edição do Festival de Veneza ‒ “não havia outro lugar onde pudéssemos mostrar isso senão Veneza”, disse o cineasta, recordando que a cidade corre o risco de afundar-se ‒ e estão a ser exibidos em Portugal desde novembro, nos canais TV Cine. A série de ficção conta-nos a história de oito pessoas que, numa situação de crise ambiental, perdem o país, a casa e o emprego e sentem na pele as dificuldades que milhões de outros refugiados, políticos ou climáticos, tiveram e continuam a ter de enfrentar para obter um visto de residência ou um contrato de trabalho num país europeu.
Embora o realizador de filmes como A Festa, A Caça e Mais uma Rodada tenha afirmado que esta sua primeira série televisiva não é um alerta contra as alterações climáticas, é delas que nos lembramos quando pensamos nas grandes cheias de Valência, ocorridas no final de outubro, ou quando lemos as conclusões de um estudo recente da consultora Boston Consulting Group (BCG), intitulado To Understand Climate Mobility, Follow the Water, assinado por Torsten Kurth e Dean Muruven, quadros da empresa, em colaboração com investigadores da Universidade de Cambridge.
No pior cenário equacionado no estudo, as inundações, secas e tempestades decorrentes das alterações climáticas no planeta poderão obrigar a que, até 2050, cerca de 43 milhões de habitantes tenham de deslocar-se todos os anos – 32 milhões de pessoas dentro do seu próprio país; 11 milhões atravessando fronteiras. Em 2022, o último ano analisado no documento, 99% das deslocações provocadas por desastres naturais foram causadas por “eventos hídricos extremos”, relacionados com a água (e a sua escassez). A mobilidade climática é uma tendência que poderá acentuar-se nas próximas décadas, caso não seja possível mitigar as alterações no clima.
Mobilidade climática
Mas o que é a mobilidade climática? É a designação dada à deslocação, voluntária ou involuntária de pessoas “em busca de maior segurança, água mais limpa, alimentação adequada, meios de subsistência mais sustentáveis e alívio dos conflitos provocados pelo clima.” No estudo da BCG, a água, mais do que qualquer outro fator, é apontada como a causa principal dos movimentos populacionais, uma vez que as perturbações causadas por secas, tempestades e inundações “podem provocar o fracasso das colheitas, degradar e desgastar os solos e as terras circundantes, danificar infraestruturas e propriedades e alterar significativamente os ecossistemas”. Além disso, a alteração dos padrões hídricos “afeta a qualidade e a quantidade de água, o que suscita instabilidade económica e política, agravando a capacidade da sociedade para atenuar e se adaptar aos efeitos do aquecimento global”, lê-se no documento.
As crises hídricas não são iguais em todo o lado. Os objetivos deste estudo passam também por identificar onde é que os riscos são maiores, quem será mais afetado e que medidas devem ser tomadas para diminuir os efeitos. África, Austrália, Médio Oriente e Europa Central são as geografias que enfrentam maior risco de aumento de inundações, enquanto a América Latina, o Sudeste Asiático e também a Europa Central são mais vulneráveis a secas. Na ausência de esforços mais robustos, no sentido da mitigação climática, os riscos aumentarão significativamente para outras regiões do globo.
Como exemplo do impacto das alterações climáticas relacionadas com a água, a BCG cita o caso da Somália, um dos países mais pobres do mundo, localizado na região do Corno de África. “As secas de longa duração fizeram com que o preço dos alimentos disparasse, levando ao que os especialistas chamam de crise de insegurança alimentar. A deterioração das condições sociais, políticas e económicas, incluindo uma governação fraca e tensões étnicas, levaram a conflitos prolongados no país, agravados à medida que grupos terroristas transformaram a água numa arma, destruindo infraestruturas, bloqueando o acesso a fontes de água e envenenando poços. Como resultado, mais de 1,6 milhões de pessoas foram deslocadas involuntariamente nos últimos anos.”
Três cenários…
Perante este estado de alerta ambiental, a BCG analisou os cenários do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), elaborados com base em diferentes níveis de mitigação das emissões de gases com efeito de estufa, para de seguida conceber um modelo de previsão dos movimentos internos e externos da Humanidade até 2050.
No primeiro dos três cenários, que os autores do estudo apelidaram de Seguir a Via Verde, admite-se a possibilidade de uma redução continuada das emissões de gases com efeito de estufa, assim como uma melhoria na gestão dos recursos do planeta, designadamente da água. Com base nestes pressupostos, a mobilidade climática interna aumentaria cerca de 1%, e a mobilidade externa 2,5% em 2050, em comparação com os dados de 2020. No caso da mobilidade interna, significaria que 24 milhões de pessoas (em 2020, foram 23,8 milhões) seriam forçadas a mudar-se para outro lugar, dentro dos seus países de origem.
O segundo cenário, que os investigadores situam no Meio da Estrada, prevê que nada mudará e o planeta atinja um pico de emissões em 2040. Nesse caso, a mobilidade interna crescerá cerca de 14% e a externa aproximadamente 3%. Finalmente, no terceiro e pior cenário, designado por Seguir a Autoestrada, pouco ou nenhum esforço será feito ao nível das políticas climáticas para mitigar as emissões de gases com efeito de estufa, da dependência dos combustíveis fósseis e do desenvolvimento de tecnologias amigas do ambiente. O aumento da mobilidade climática interna subirá 33% face a 2020, afetando 32 milhões de habitantes, e a deslocação além-fronteiras crescerá 3%, envolvendo 11 milhões de pessoas (em 2020, foram 10,7 milhões).
… e três medidas
As alterações climáticas são uma realidade e já estão a forçar pessoas a deslocarem-se, embora ainda não tenham obrigado ao “fecho” de países, como na série televisiva atrás referida. Além da urgência em reduzir as emissões de carbono, o abastecimento de água a nível mundial deve também ser gerido de forma mais eficaz, de modo a reduzir o número de refugiados do clima. O estudo da BCG propõe três medidas para reduzir o impacto das crises hídricas e proteger as populações mais vulneráveis: aumentar a resiliência hídrica, aumentar a resiliência social e colmatar a lacuna entre elas.
Para aumentar a capacidade de resistência a eventos hídricos extremos, como secas e inundações, o documento propõe o desenvolvimento de tecnologias de baixo custo “de captação, armazenamento e distribuição” da água, tais como previsão de caudais, monitorização em tempo real da qualidade e uso da água, irrigação de precisão e técnicas agrícolas regenerativas, e processamento e recuperação de águas residuais. Considerando que os grandes projetos de engenharia, como as megabarragens, não são viáveis para reduzir os desastre hídricos no futuro, os peritos defendem “soluções resilientes” que utilizem “o poder da Natureza juntamente com as infraestruturas existentes para se adaptarem à evolução dos eventos relacionados com a água”. Aconselham também a “pensar na água como um bem ‘comum’ e a tratar o acesso à água limpa e fresca, tanto para uso agrícola como para uso pessoal, como um direito humano, e não como uma commodity explorada para fins lucrativos privados.”
Além da melhoria na resiliência da água, é necessário garantir que os ganhos são duradouros e que os benefícios são distribuídos de forma equitativa. Por isso, os investigadores propõem, como segunda medida, um reforço da resiliência social, juntando “instituições públicas, decisores políticos e comunidades locais” para desenhar políticas e estratégias de governação que permitam aumentar a adaptabilidade hídrica e criar confiança junto da população.
Por fim, o estudo da BCG recomenda o preenchimento da lacuna entre a resiliência da água e a resiliência social, promovendo a interajuda entre pessoas e recursos, académicos e comunidades locais, na procura de soluções para os efeitos dos desastres hídricos. Sublinhando que a mitigação da mobilidade climática exigirá “mecanismos de financiamento inovadores”, entre os quais empréstimos, subsídios, incentivos, garantias governamentais e soluções alternativas como os créditos de carbono, defende ainda que “é crucial estruturar estes acordos para beneficiar as pessoas a nível local”.
“A mobilidade forçada das populaçõe a nível mundial tem como sua principal causa os desastres naturais relacionados com a água, o que reforça a necessidade de acelerar a transição energética e reduzir as emissões de carbono. Além disso, naqueles eventos que não serão possíveis de prevenir, torna-se imperativa a implementação de ações sociais que aliviem o impacto dos desastres hídricos na população”, diz Manuel Luiz, managing director e partner da BCG em Lisboa.
À medida que o planeta aquece e a mobilidade climática afeta cada vez mais habitantes, não teremos outra escolha senão limitar as causas e retardar os efeitos. Para que o mundo seja um lugar seguro e a realidade não ultrapasse a ficção.
Os sete proféticos episódios de Families Like Ours, assinados pelo dinamarquês Thomas Vinterberg, foram estreados na última edição do Festival de Veneza ‒ “não havia outro lugar onde pudéssemos mostrar isso senão Veneza”, disse o cineasta, recordando que a cidade corre o risco de afundar-se ‒ e estão a ser exibidos em Portugal desde novembro, nos canais TV Cine. A série de ficção conta-nos a história de oito pessoas que, numa situação de crise ambiental, perdem o país, a casa e o emprego e sentem na pele as dificuldades que milhões de outros refugiados, políticos ou climáticos, tiveram e continuam a ter de enfrentar para obter um visto de residência ou um contrato de trabalho num país europeu.
Embora o realizador de filmes como A Festa, A Caça e Mais uma Rodada tenha afirmado que esta sua primeira série televisiva não é um alerta contra as alterações climáticas, é delas que nos lembramos quando pensamos nas grandes cheias de Valência, ocorridas no final de outubro, ou quando lemos as conclusões de um estudo recente da consultora Boston Consulting Group (BCG), intitulado To Understand Climate Mobility, Follow the Water, assinado por Torsten Kurth e Dean Muruven, quadros da empresa, em colaboração com investigadores da Universidade de Cambridge.
No pior cenário equacionado no estudo, as inundações, secas e tempestades decorrentes das alterações climáticas no planeta poderão obrigar a que, até 2050, cerca de 43 milhões de habitantes tenham de deslocar-se todos os anos – 32 milhões de pessoas dentro do seu próprio país; 11 milhões atravessando fronteiras. Em 2022, o último ano analisado no documento, 99% das deslocações provocadas por desastres naturais foram causadas por “eventos hídricos extremos”, relacionados com a água (e a sua escassez). A mobilidade climática é uma tendência que poderá acentuar-se nas próximas décadas, caso não seja possível mitigar as alterações no clima.
Mobilidade climática
Mas o que é a mobilidade climática? É a designação dada à deslocação, voluntária ou involuntária de pessoas “em busca de maior segurança, água mais limpa, alimentação adequada, meios de subsistência mais sustentáveis e alívio dos conflitos provocados pelo clima.” No estudo da BCG, a água, mais do que qualquer outro fator, é apontada como a causa principal dos movimentos populacionais, uma vez que as perturbações causadas por secas, tempestades e inundações “podem provocar o fracasso das colheitas, degradar e desgastar os solos e as terras circundantes, danificar infraestruturas e propriedades e alterar significativamente os ecossistemas”. Além disso, a alteração dos padrões hídricos “afeta a qualidade e a quantidade de água, o que suscita instabilidade económica e política, agravando a capacidade da sociedade para atenuar e se adaptar aos efeitos do aquecimento global”, lê-se no documento.
As crises hídricas não são iguais em todo o lado. Os objetivos deste estudo passam também por identificar onde é que os riscos são maiores, quem será mais afetado e que medidas devem ser tomadas para diminuir os efeitos. África, Austrália, Médio Oriente e Europa Central são as geografias que enfrentam maior risco de aumento de inundações, enquanto a América Latina, o Sudeste Asiático e também a Europa Central são mais vulneráveis a secas. Na ausência de esforços mais robustos, no sentido da mitigação climática, os riscos aumentarão significativamente para outras regiões do globo.
Como exemplo do impacto das alterações climáticas relacionadas com a água, a BCG cita o caso da Somália, um dos países mais pobres do mundo, localizado na região do Corno de África. “As secas de longa duração fizeram com que o preço dos alimentos disparasse, levando ao que os especialistas chamam de crise de insegurança alimentar. A deterioração das condições sociais, políticas e económicas, incluindo uma governação fraca e tensões étnicas, levaram a conflitos prolongados no país, agravados à medida que grupos terroristas transformaram a água numa arma, destruindo infraestruturas, bloqueando o acesso a fontes de água e envenenando poços. Como resultado, mais de 1,6 milhões de pessoas foram deslocadas involuntariamente nos últimos anos.”
Três cenários…
Perante este estado de alerta ambiental, a BCG analisou os cenários do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), elaborados com base em diferentes níveis de mitigação das emissões de gases com efeito de estufa, para de seguida conceber um modelo de previsão dos movimentos internos e externos da Humanidade até 2050.
No primeiro dos três cenários, que os autores do estudo apelidaram de Seguir a Via Verde, admite-se a possibilidade de uma redução continuada das emissões de gases com efeito de estufa, assim como uma melhoria na gestão dos recursos do planeta, designadamente da água. Com base nestes pressupostos, a mobilidade climática interna aumentaria cerca de 1%, e a mobilidade externa 2,5% em 2050, em comparação com os dados de 2020. No caso da mobilidade interna, significaria que 24 milhões de pessoas (em 2020, foram 23,8 milhões) seriam forçadas a mudar-se para outro lugar, dentro dos seus países de origem.
O segundo cenário, que os investigadores situam no Meio da Estrada, prevê que nada mudará e o planeta atinja um pico de emissões em 2040. Nesse caso, a mobilidade interna crescerá cerca de 14% e a externa aproximadamente 3%. Finalmente, no terceiro e pior cenário, designado por Seguir a Autoestrada, pouco ou nenhum esforço será feito ao nível das políticas climáticas para mitigar as emissões de gases com efeito de estufa, da dependência dos combustíveis fósseis e do desenvolvimento de tecnologias amigas do ambiente. O aumento da mobilidade climática interna subirá 33% face a 2020, afetando 32 milhões de habitantes, e a deslocação além-fronteiras crescerá 3%, envolvendo 11 milhões de pessoas (em 2020, foram 10,7 milhões).
… e três medidas
As alterações climáticas são uma realidade e já estão a forçar pessoas a deslocarem-se, embora ainda não tenham obrigado ao “fecho” de países, como na série televisiva atrás referida. Além da urgência em reduzir as emissões de carbono, o abastecimento de água a nível mundial deve também ser gerido de forma mais eficaz, de modo a reduzir o número de refugiados do clima. O estudo da BCG propõe três medidas para reduzir o impacto das crises hídricas e proteger as populações mais vulneráveis: aumentar a resiliência hídrica, aumentar a resiliência social e colmatar a lacuna entre elas.
Para aumentar a capacidade de resistência a eventos hídricos extremos, como secas e inundações, o documento propõe o desenvolvimento de tecnologias de baixo custo “de captação, armazenamento e distribuição” da água, tais como previsão de caudais, monitorização em tempo real da qualidade e uso da água, irrigação de precisão e técnicas agrícolas regenerativas, e processamento e recuperação de águas residuais. Considerando que os grandes projetos de engenharia, como as megabarragens, não são viáveis para reduzir os desastre hídricos no futuro, os peritos defendem “soluções resilientes” que utilizem “o poder da Natureza juntamente com as infraestruturas existentes para se adaptarem à evolução dos eventos relacionados com a água”. Aconselham também a “pensar na água como um bem ‘comum’ e a tratar o acesso à água limpa e fresca, tanto para uso agrícola como para uso pessoal, como um direito humano, e não como uma commodity explorada para fins lucrativos privados.”
Além da melhoria na resiliência da água, é necessário garantir que os ganhos são duradouros e que os benefícios são distribuídos de forma equitativa. Por isso, os investigadores propõem, como segunda medida, um reforço da resiliência social, juntando “instituições públicas, decisores políticos e comunidades locais” para desenhar políticas e estratégias de governação que permitam aumentar a adaptabilidade hídrica e criar confiança junto da população.
Por fim, o estudo da BCG recomenda o preenchimento da lacuna entre a resiliência da água e a resiliência social, promovendo a interajuda entre pessoas e recursos, académicos e comunidades locais, na procura de soluções para os efeitos dos desastres hídricos. Sublinhando que a mitigação da mobilidade climática exigirá “mecanismos de financiamento inovadores”, entre os quais empréstimos, subsídios, incentivos, garantias governamentais e soluções alternativas como os créditos de carbono, defende ainda que “é crucial estruturar estes acordos para beneficiar as pessoas a nível local”.
“A mobilidade forçada das populaçõe a nível mundial tem como sua principal causa os desastres naturais relacionados com a água, o que reforça a necessidade de acelerar a transição energética e reduzir as emissões de carbono. Além disso, naqueles eventos que não serão possíveis de prevenir, torna-se imperativa a implementação de ações sociais que aliviem o impacto dos desastres hídricos na população”, diz Manuel Luiz, managing director e partner da BCG em Lisboa.
À medida que o planeta aquece e a mobilidade climática afeta cada vez mais habitantes, não teremos outra escolha senão limitar as causas e retardar os efeitos. Para que o mundo seja um lugar seguro e a realidade não ultrapasse a ficção.
Coisas que acontecem num certo país infeliz
Num certo país infeliz, espalha-se um enorme pessimismo sobre a economia e, aparentemente, resultados bastante positivos para a vida real de pobres e ricos são quase ignorados nas análises.
Nesse país infeliz, argumenta-se que a inflação está incontrolável, mas ela atingiu em média 4,73% ao ano nos dois últimos anos. Nos quatro anos anteriores, havia alcançado 6,17% ao ano. E a inflação média atual está abaixo da média dos últimos trinta anos (6,5% ao ano), desde que foi criada a atual moeda em circulação.
Nesse país, propala-se que o descontentamento advém das classes mais pobres, que estariam sendo fulminadas por uma inusual inflação dos produtos alimentícios. Mas os alimentos subiram 8% no ano passado, menos que a renda das famílias em geral, que cresceu 10%, e muito menos que a renda das famílias mais pobres, que aumentou 19%.
Nesse país mal-humorado, a taxa de desemprego vem recuando e estava em 6,6% da força de trabalho no primeiro trimestre, em nível próximo do mais baixo da série histórica para o período. A previsão atual é de que caia para 5,9% até dezembro. A informalidade no trabalho recuou para 37,9%, taxa situada entre as menores da série histórica iniciada em 2015.
A desigualdade de renda nesse país infeliz, medida pelo Índice de Gini, foi a mais baixa da história no ano passado. E a renda per capita domiciliar mensal, a maior desde o início da série histórica, em 2012.
Nesse país, segundo o Relatório das Nações Unidas sobre Estado de Insegurança Alimentar no Mundo, o número de pessoas em situação de fome diminuiu de 17,2 milhões em 2022 para 2,5 milhões em 2023. Portanto, cerca de 14,7 milhões de pessoas deixaram de passar fome de um ano para outro nesse país infeliz.
O PIB desse país surpreendeu novamente os pessimistas e cresceu 1,4% no primeiro trimestre, índice superior ao dos países da OCDE e do G7 - ambos os grupos avançaram minguado 0,1%. O crescimento se dá a despeito da imposição de uma assombrosa taxa básica de juros, de 14,75% ao ano, nove pontos percentuais acima da inflação, que desincentiva investimentos.
Essas surpresas do PIB ocorrem desde 2020 nesse país infeliz, quando se projetava recessão de 6,5% e ela foi de 3,3%. Em 2021, a expansão prevista era de 3,4% e a efetivada foi 4,8%. Em 2022, estimava-se 0,3% e deu 3%. Em 2023, o esperado era 1,4% e deu 2,9%. Em 2024, previa-se 1,6% e deu 3,4%.
Nesse país, observa-se que os empresários estariam insatisfeitos, mas os lucros das empresas no primeiro trimestre foram excepcionais e superaram as expectativas do mercado. O lucro líquido das 387 companhias abertas não financeiras subiu 30,3% no trimestre, para R$ 57 bilhões, e as receitas cresceram 13,9%, para R$ 976,7 bilhões.
Na área financeira, os lucros dos quatro maiores bancos no primeiro trimestre cresceram em média 7,3% e somaram R$ 28,2 bilhões. Um bancão aumentou seu resultado em 39% na comparação com o mesmo período do ano passado.
Nesse país pessimista, atingido há décadas pelo vírus da desindustrialização, a indústria voltou a crescer: 3,1% no ano passado. Em março, avançou 1,2% sobre fevereiro e 3,1% sobre março de 2024.
Por que, afinal, a bruma pessimista continua a embaçar toda a economia desse país infeliz? Se prevalecesse a “lei Carville” (É a economia, estúpido!), cunhada na campanha presidencial de Bill Clinton, em 1992, essa neblina não faria sentido.
Resumindo: nesse país infeliz, a inflação está abaixo da média nacional dos últimos 30 anos; a renda dos mais pobres cresce mais que a inflação de alimentos, principal item de consumo nessa faixa de rendimento; o nível de desemprego é o mais baixo da história; o número de pessoas em situação de fome caiu 85% em um ano; a desigualdade de renda é a mais baixa da história, e a renda per capita, a mais alta; o crescimento da produção surpreende positivamente há cinco anos; a safra de alimentos bate recorde; o lucro das empresas financeiras e não financeiras aumenta muito mais que a inflação; a bolsa de valores quebra recordes e rentistas/investidores das classes média e alta ampliam seus patrimônios com os juros de dois dígitos.
Nesse país infeliz, um partido de oposição pôs no ar uma peça publicitária engraçadinha dizendo ter saudade de um ex-presidente porque está tudo “caro”, fazendo rima com o nome do ex. Mas, nos quatro anos desse governo “saudoso”, a inflação média anual foi de 6,17%, índice bem maior que o dos dois primeiros anos do governo atual desse país (4,73%). Os alimentos estariam subindo mais, argumenta-se. Falso. Nos quatro anos “saudosos”, os alimentos subiram em média 8,24% ao ano. Nos dois do atual mandato, 4,36% ao ano.
A peça publicitária foi contestada? Que se saiba, não. O debate econômico se dá basicamente em torno de problemas fiscais, que podem ter impacto nos próximos anos, mas não afetam hoje o humor e o dia a dia das pessoas. Ou esse país infeliz tem graves falhas na comunicação ou talvez sua infelicidade e seu pessimismo não venham da economia, estúpido.
Nesse país infeliz, argumenta-se que a inflação está incontrolável, mas ela atingiu em média 4,73% ao ano nos dois últimos anos. Nos quatro anos anteriores, havia alcançado 6,17% ao ano. E a inflação média atual está abaixo da média dos últimos trinta anos (6,5% ao ano), desde que foi criada a atual moeda em circulação.
Nesse país, propala-se que o descontentamento advém das classes mais pobres, que estariam sendo fulminadas por uma inusual inflação dos produtos alimentícios. Mas os alimentos subiram 8% no ano passado, menos que a renda das famílias em geral, que cresceu 10%, e muito menos que a renda das famílias mais pobres, que aumentou 19%.
A desigualdade de renda nesse país infeliz, medida pelo Índice de Gini, foi a mais baixa da história no ano passado. E a renda per capita domiciliar mensal, a maior desde o início da série histórica, em 2012.
Nesse país, segundo o Relatório das Nações Unidas sobre Estado de Insegurança Alimentar no Mundo, o número de pessoas em situação de fome diminuiu de 17,2 milhões em 2022 para 2,5 milhões em 2023. Portanto, cerca de 14,7 milhões de pessoas deixaram de passar fome de um ano para outro nesse país infeliz.
O PIB desse país surpreendeu novamente os pessimistas e cresceu 1,4% no primeiro trimestre, índice superior ao dos países da OCDE e do G7 - ambos os grupos avançaram minguado 0,1%. O crescimento se dá a despeito da imposição de uma assombrosa taxa básica de juros, de 14,75% ao ano, nove pontos percentuais acima da inflação, que desincentiva investimentos.
Essas surpresas do PIB ocorrem desde 2020 nesse país infeliz, quando se projetava recessão de 6,5% e ela foi de 3,3%. Em 2021, a expansão prevista era de 3,4% e a efetivada foi 4,8%. Em 2022, estimava-se 0,3% e deu 3%. Em 2023, o esperado era 1,4% e deu 2,9%. Em 2024, previa-se 1,6% e deu 3,4%.
Nesse país, observa-se que os empresários estariam insatisfeitos, mas os lucros das empresas no primeiro trimestre foram excepcionais e superaram as expectativas do mercado. O lucro líquido das 387 companhias abertas não financeiras subiu 30,3% no trimestre, para R$ 57 bilhões, e as receitas cresceram 13,9%, para R$ 976,7 bilhões.
Na área financeira, os lucros dos quatro maiores bancos no primeiro trimestre cresceram em média 7,3% e somaram R$ 28,2 bilhões. Um bancão aumentou seu resultado em 39% na comparação com o mesmo período do ano passado.
Nesse país pessimista, atingido há décadas pelo vírus da desindustrialização, a indústria voltou a crescer: 3,1% no ano passado. Em março, avançou 1,2% sobre fevereiro e 3,1% sobre março de 2024.
Por que, afinal, a bruma pessimista continua a embaçar toda a economia desse país infeliz? Se prevalecesse a “lei Carville” (É a economia, estúpido!), cunhada na campanha presidencial de Bill Clinton, em 1992, essa neblina não faria sentido.
Resumindo: nesse país infeliz, a inflação está abaixo da média nacional dos últimos 30 anos; a renda dos mais pobres cresce mais que a inflação de alimentos, principal item de consumo nessa faixa de rendimento; o nível de desemprego é o mais baixo da história; o número de pessoas em situação de fome caiu 85% em um ano; a desigualdade de renda é a mais baixa da história, e a renda per capita, a mais alta; o crescimento da produção surpreende positivamente há cinco anos; a safra de alimentos bate recorde; o lucro das empresas financeiras e não financeiras aumenta muito mais que a inflação; a bolsa de valores quebra recordes e rentistas/investidores das classes média e alta ampliam seus patrimônios com os juros de dois dígitos.
Nesse país infeliz, um partido de oposição pôs no ar uma peça publicitária engraçadinha dizendo ter saudade de um ex-presidente porque está tudo “caro”, fazendo rima com o nome do ex. Mas, nos quatro anos desse governo “saudoso”, a inflação média anual foi de 6,17%, índice bem maior que o dos dois primeiros anos do governo atual desse país (4,73%). Os alimentos estariam subindo mais, argumenta-se. Falso. Nos quatro anos “saudosos”, os alimentos subiram em média 8,24% ao ano. Nos dois do atual mandato, 4,36% ao ano.
A peça publicitária foi contestada? Que se saiba, não. O debate econômico se dá basicamente em torno de problemas fiscais, que podem ter impacto nos próximos anos, mas não afetam hoje o humor e o dia a dia das pessoas. Ou esse país infeliz tem graves falhas na comunicação ou talvez sua infelicidade e seu pessimismo não venham da economia, estúpido.
No fundo da Terra também bate um coração
Quem diria: nosso planeta tem um coração. Ou melhor, não exatamente um coração — mas algo que se assemelha aos seus batimentos. A imagem da Terra pulsando chegou até mim pelo LinkedIn, numa postagem que imediatamente capturou minha atenção. O vídeo, criado a partir de dados de satélite, é uma das coisas mais impressionantes que já vi. E o que seriam esses “batimentos”? Nada menos do que plantas absorvendo CO₂. Em outras palavras, nossa boa e velha fotossíntese.
O vídeo é do @marshmallowlaserfeast, apresentado na experiência imersiva YOU:MATTER, parte da Bradford 2025 — United Kingdom City of Culture, patrocinada pelo UK National Science and Media Museum. Esta experiência artística imersiva tem como objetivo mostrar que tudo na Terra está conectado — inclusive nós — e como o espaço torna essa conexão visível. A exposição fica em cartaz até fevereiro de 2026. Os sortudos que estiverem em terras inglesas podem garantir seu ingresso em bradford2025.co.uk.
Também na Europa, mais precisamente em Berlim, começa a Conferência Global sobre as NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas), um fórum internacional que reunirá representantes de mais de 200 países para discutir governança climática, mobilização de investimentos e o engajamento do setor privado no processo de transição climática.
A urgência por uma ação mais focada e coletiva foi evidenciada (mais uma vez) no último relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM). Entre dados preocupantes, destaca-se a probabilidade de 86% de que um dos próximos cinco anos seja 1,5°C mais quente do que a média entre 1850 e 1900 .
Pode parecer pouco – 1,5°C – mas as consequências são impactantes: estima-se que aproximadamente 350 milhões de pessoas a mais, vivendo em áreas urbanas, ficarão expostas à escassez de água; e cerca de 30 mil pessoas morrerão anualmente por ondas de calor na Europa, um salto significativo em relação às 2.750 mortes atuais.
Enfim, a frase de Christiana Figueres resume bem o cenário: “Negar a mudança climática equivale a dizer que você não acredita na gravidade. A ciência do clima não é uma crença, uma religião ou uma ideologia política. Assim como a gravidade exerce sua força sobre todos nós, acreditemos nela ou não, a mudança climática já está afetando a todos, não importa onde tenhamos nascido ou onde vivamos.”
O vídeo é do @marshmallowlaserfeast, apresentado na experiência imersiva YOU:MATTER, parte da Bradford 2025 — United Kingdom City of Culture, patrocinada pelo UK National Science and Media Museum. Esta experiência artística imersiva tem como objetivo mostrar que tudo na Terra está conectado — inclusive nós — e como o espaço torna essa conexão visível. A exposição fica em cartaz até fevereiro de 2026. Os sortudos que estiverem em terras inglesas podem garantir seu ingresso em bradford2025.co.uk.
Também na Europa, mais precisamente em Berlim, começa a Conferência Global sobre as NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas), um fórum internacional que reunirá representantes de mais de 200 países para discutir governança climática, mobilização de investimentos e o engajamento do setor privado no processo de transição climática.
A urgência por uma ação mais focada e coletiva foi evidenciada (mais uma vez) no último relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM). Entre dados preocupantes, destaca-se a probabilidade de 86% de que um dos próximos cinco anos seja 1,5°C mais quente do que a média entre 1850 e 1900 .
Pode parecer pouco – 1,5°C – mas as consequências são impactantes: estima-se que aproximadamente 350 milhões de pessoas a mais, vivendo em áreas urbanas, ficarão expostas à escassez de água; e cerca de 30 mil pessoas morrerão anualmente por ondas de calor na Europa, um salto significativo em relação às 2.750 mortes atuais.
Enfim, a frase de Christiana Figueres resume bem o cenário: “Negar a mudança climática equivale a dizer que você não acredita na gravidade. A ciência do clima não é uma crença, uma religião ou uma ideologia política. Assim como a gravidade exerce sua força sobre todos nós, acreditemos nela ou não, a mudança climática já está afetando a todos, não importa onde tenhamos nascido ou onde vivamos.”
Deus da Desinfomação: O excesso de luz não ilumina, cega
Os mais otimistas dizem que vivemos um novo Iluminismo. A luz está por todo o lado. Mas não é daquela que inspira poetas, cientistas, santos ou até lunáticos. É a luz fria de hospital, dos ecrãs, das notificações a tocar, como sinos em aldeia onde já quase só vivem descrentes.
Se é verdade que nunca houve tanta informação, também não é mentira que nunca houve tanto ruído. Num universo cada vez mais carregado de respostas à distância de um polegar, nunca nos sentimos tão perdidos, tão desorientados, tão vulneráveis a intrujas que chegaram para nos caçar a atenção. Somos veados a meio da estrada, encandeados, não por faróis de carros, mas pelo atropelo violento da desinformação. Os condutores vão em excesso de tudo, menos de verdade, e raramente perdem alguma coisa, muito menos pontos na carta.
Há uma nova leva de vendedores porta-a-porta e de testemunhas beatas. Novos evangelistas de feed, vendedores de salvação, guardadores de segredos que a ciência rejeita e a imprensa desconfia. Já não nos batem à porta com aspiradores ou enciclopédias, mas vão vendendo verdades em segunda mão, milagres para todas as dores da alma, superstições adaptadas à constituição e aos demónios do parlamento. Se antes pediam licença para entrar, hoje atravessam-se sem cerimónia à nossa frente na timeline ou até no noticiário, à hora de jantar. Já não nos querem falar de Jesus, mas de pandemias, planos secretos para nos substituir, conspirações que vamos ouvindo passivamente em surdina, que o tempo não dá para tudo e questionar é luxo que não cai bem na nossa moleirinha formatada para o preconceito.
Ainda somos um país de portas entreabertas. Entre a cortesia e o cansaço, vamos deixando passar qualquer promessa de redenção, qualquer segurança de um perigo distante, mesmo que seja paga a pequenas prestações que nos sairão demasiado caras. Uns são feiticeiros de gravata, outros curandeiros de carrapito. Uns passam receitas para almas cansadas ou aborrecidas, vendem detox de espírito e mezinhas de autoconfiança; outros chafurdam de tanga em ethos lamacento manosferiano, convidando-nos a mergulhar em teorias de machões, mesmo quando parecem nem gostar assim tanto de mulheres. Outros, ainda, assumem-se como profetas do medo, espalhando a palavra, seja ela sobre Gates, a vacina, o refugiado ou o senhor estrangeiro da mercearia que olha durante demasiado tempo para as raparigas. Vendem livros quase sagrados, editados à pressa, e programas orçamentais de salvação, depois fazem queixinhas sobre o peso da cruz da perseguição de uma imprensa que insiste em apontar-lhes a mentira, onde juram a pés juntos encontrar verdade.
É uma nova forma de folclore. Respostas simples para acontecimentos complexos, que o escuro é farto em vilões quando a razão não topa o que ele esconde. Teorias conspirativas sedutoras, que acendem luz sobre o vazio, exímias a agregar medos e desconfianças que tendem a tocar à maioria. O problema é que o excesso de luz não ilumina, cega. Nesta estranha devoção ao novo deus da desinformação, quanto mais a ciência explica, mais o povo saliva por mistério, superstição e impulso medieval. Na falta de critério, atiram-se pedras em vez de perguntas.
Para alguns é pobreza de espírito, mas eu vejo mais pobreza de tempo. Dez horas de trabalho, mais um par delas no trânsito, os trabalhos de casa dos filhos, o jantar por fazer… Pouco nos sobra para pensar. Restam pequenas migalhas de energia, que juntamos e engolimos à pressa com a explicação que nos pareça mais fácil, mesmo que nos prometa um milagre de pedrinha debaixo da almofada.
Ainda há quem acredite que a verdade reaparece naturalmente com um mercado livre de ideias, mas essa teoria dificilmente cola nos dias que correm. Foi pensada para o minimercado do bairro, e não para a confusão de um hipermercado global, com produtos de validade cada vez mais reduzida. Com tanta oferta e tão pouco tempo para escolher, vai-se pelo rótulo mais colorido, pela promoção de última hora ou pelo jingle que é música para os nossos ouvidos. Depois, rodeamo-nos só de iguais, partilhamos indignações, ouvimos só aquilo que já sabíamos, reforçamos certezas e esfregamos as mãos no quentinho destas novas fogueiras tribais. Cada qual de perna alçada a marcar território nos limites da bolha que escolheu, ronronando com o que queremos ouvir e rosnando a quem nos desafia o conforto daquela paz que só se encontra na ignorância.
Abriram a porta das televisões a cuspidores de fogo, vendedores de banha da cobra e músicos de algibeira, e ainda esperavam que o telespetador não começasse a bater o pezinho ao som do bailarico. A música é boa para embalar preconceito, perfeita para as palminhas sincronizadas com o tempo certo da aldrabice. Nas últimas eleições já se desenhou mais um capítulo deste novo conto folclórico. A gente juntou-se sem paus nem pedras, mas com votos de quem alinhou no feitiço e, por ironia, decidiu começar a correr atrás de bruxas que a razão nunca chegou a encontrar. O populismo está a tornar-se no novo fado nacional. Todos sabem que é mentiroso, mas poucos parecem querer deixar de o cantarolar.
Luís Fonseca de Sousa
Se é verdade que nunca houve tanta informação, também não é mentira que nunca houve tanto ruído. Num universo cada vez mais carregado de respostas à distância de um polegar, nunca nos sentimos tão perdidos, tão desorientados, tão vulneráveis a intrujas que chegaram para nos caçar a atenção. Somos veados a meio da estrada, encandeados, não por faróis de carros, mas pelo atropelo violento da desinformação. Os condutores vão em excesso de tudo, menos de verdade, e raramente perdem alguma coisa, muito menos pontos na carta.
Há uma nova leva de vendedores porta-a-porta e de testemunhas beatas. Novos evangelistas de feed, vendedores de salvação, guardadores de segredos que a ciência rejeita e a imprensa desconfia. Já não nos batem à porta com aspiradores ou enciclopédias, mas vão vendendo verdades em segunda mão, milagres para todas as dores da alma, superstições adaptadas à constituição e aos demónios do parlamento. Se antes pediam licença para entrar, hoje atravessam-se sem cerimónia à nossa frente na timeline ou até no noticiário, à hora de jantar. Já não nos querem falar de Jesus, mas de pandemias, planos secretos para nos substituir, conspirações que vamos ouvindo passivamente em surdina, que o tempo não dá para tudo e questionar é luxo que não cai bem na nossa moleirinha formatada para o preconceito.
Ainda somos um país de portas entreabertas. Entre a cortesia e o cansaço, vamos deixando passar qualquer promessa de redenção, qualquer segurança de um perigo distante, mesmo que seja paga a pequenas prestações que nos sairão demasiado caras. Uns são feiticeiros de gravata, outros curandeiros de carrapito. Uns passam receitas para almas cansadas ou aborrecidas, vendem detox de espírito e mezinhas de autoconfiança; outros chafurdam de tanga em ethos lamacento manosferiano, convidando-nos a mergulhar em teorias de machões, mesmo quando parecem nem gostar assim tanto de mulheres. Outros, ainda, assumem-se como profetas do medo, espalhando a palavra, seja ela sobre Gates, a vacina, o refugiado ou o senhor estrangeiro da mercearia que olha durante demasiado tempo para as raparigas. Vendem livros quase sagrados, editados à pressa, e programas orçamentais de salvação, depois fazem queixinhas sobre o peso da cruz da perseguição de uma imprensa que insiste em apontar-lhes a mentira, onde juram a pés juntos encontrar verdade.
É uma nova forma de folclore. Respostas simples para acontecimentos complexos, que o escuro é farto em vilões quando a razão não topa o que ele esconde. Teorias conspirativas sedutoras, que acendem luz sobre o vazio, exímias a agregar medos e desconfianças que tendem a tocar à maioria. O problema é que o excesso de luz não ilumina, cega. Nesta estranha devoção ao novo deus da desinformação, quanto mais a ciência explica, mais o povo saliva por mistério, superstição e impulso medieval. Na falta de critério, atiram-se pedras em vez de perguntas.
Para alguns é pobreza de espírito, mas eu vejo mais pobreza de tempo. Dez horas de trabalho, mais um par delas no trânsito, os trabalhos de casa dos filhos, o jantar por fazer… Pouco nos sobra para pensar. Restam pequenas migalhas de energia, que juntamos e engolimos à pressa com a explicação que nos pareça mais fácil, mesmo que nos prometa um milagre de pedrinha debaixo da almofada.
Ainda há quem acredite que a verdade reaparece naturalmente com um mercado livre de ideias, mas essa teoria dificilmente cola nos dias que correm. Foi pensada para o minimercado do bairro, e não para a confusão de um hipermercado global, com produtos de validade cada vez mais reduzida. Com tanta oferta e tão pouco tempo para escolher, vai-se pelo rótulo mais colorido, pela promoção de última hora ou pelo jingle que é música para os nossos ouvidos. Depois, rodeamo-nos só de iguais, partilhamos indignações, ouvimos só aquilo que já sabíamos, reforçamos certezas e esfregamos as mãos no quentinho destas novas fogueiras tribais. Cada qual de perna alçada a marcar território nos limites da bolha que escolheu, ronronando com o que queremos ouvir e rosnando a quem nos desafia o conforto daquela paz que só se encontra na ignorância.
Abriram a porta das televisões a cuspidores de fogo, vendedores de banha da cobra e músicos de algibeira, e ainda esperavam que o telespetador não começasse a bater o pezinho ao som do bailarico. A música é boa para embalar preconceito, perfeita para as palminhas sincronizadas com o tempo certo da aldrabice. Nas últimas eleições já se desenhou mais um capítulo deste novo conto folclórico. A gente juntou-se sem paus nem pedras, mas com votos de quem alinhou no feitiço e, por ironia, decidiu começar a correr atrás de bruxas que a razão nunca chegou a encontrar. O populismo está a tornar-se no novo fado nacional. Todos sabem que é mentiroso, mas poucos parecem querer deixar de o cantarolar.
Luís Fonseca de Sousa
Assinar:
Comentários (Atom)





