Os sete proféticos episódios de Families Like Ours, assinados pelo dinamarquês Thomas Vinterberg, foram estreados na última edição do Festival de Veneza ‒ “não havia outro lugar onde pudéssemos mostrar isso senão Veneza”, disse o cineasta, recordando que a cidade corre o risco de afundar-se ‒ e estão a ser exibidos em Portugal desde novembro, nos canais TV Cine. A série de ficção conta-nos a história de oito pessoas que, numa situação de crise ambiental, perdem o país, a casa e o emprego e sentem na pele as dificuldades que milhões de outros refugiados, políticos ou climáticos, tiveram e continuam a ter de enfrentar para obter um visto de residência ou um contrato de trabalho num país europeu.
Embora o realizador de filmes como A Festa, A Caça e Mais uma Rodada tenha afirmado que esta sua primeira série televisiva não é um alerta contra as alterações climáticas, é delas que nos lembramos quando pensamos nas grandes cheias de Valência, ocorridas no final de outubro, ou quando lemos as conclusões de um estudo recente da consultora Boston Consulting Group (BCG), intitulado To Understand Climate Mobility, Follow the Water, assinado por Torsten Kurth e Dean Muruven, quadros da empresa, em colaboração com investigadores da Universidade de Cambridge.
No pior cenário equacionado no estudo, as inundações, secas e tempestades decorrentes das alterações climáticas no planeta poderão obrigar a que, até 2050, cerca de 43 milhões de habitantes tenham de deslocar-se todos os anos – 32 milhões de pessoas dentro do seu próprio país; 11 milhões atravessando fronteiras. Em 2022, o último ano analisado no documento, 99% das deslocações provocadas por desastres naturais foram causadas por “eventos hídricos extremos”, relacionados com a água (e a sua escassez). A mobilidade climática é uma tendência que poderá acentuar-se nas próximas décadas, caso não seja possível mitigar as alterações no clima.
Mobilidade climática
Mas o que é a mobilidade climática? É a designação dada à deslocação, voluntária ou involuntária de pessoas “em busca de maior segurança, água mais limpa, alimentação adequada, meios de subsistência mais sustentáveis e alívio dos conflitos provocados pelo clima.” No estudo da BCG, a água, mais do que qualquer outro fator, é apontada como a causa principal dos movimentos populacionais, uma vez que as perturbações causadas por secas, tempestades e inundações “podem provocar o fracasso das colheitas, degradar e desgastar os solos e as terras circundantes, danificar infraestruturas e propriedades e alterar significativamente os ecossistemas”. Além disso, a alteração dos padrões hídricos “afeta a qualidade e a quantidade de água, o que suscita instabilidade económica e política, agravando a capacidade da sociedade para atenuar e se adaptar aos efeitos do aquecimento global”, lê-se no documento.
As crises hídricas não são iguais em todo o lado. Os objetivos deste estudo passam também por identificar onde é que os riscos são maiores, quem será mais afetado e que medidas devem ser tomadas para diminuir os efeitos. África, Austrália, Médio Oriente e Europa Central são as geografias que enfrentam maior risco de aumento de inundações, enquanto a América Latina, o Sudeste Asiático e também a Europa Central são mais vulneráveis a secas. Na ausência de esforços mais robustos, no sentido da mitigação climática, os riscos aumentarão significativamente para outras regiões do globo.
Como exemplo do impacto das alterações climáticas relacionadas com a água, a BCG cita o caso da Somália, um dos países mais pobres do mundo, localizado na região do Corno de África. “As secas de longa duração fizeram com que o preço dos alimentos disparasse, levando ao que os especialistas chamam de crise de insegurança alimentar. A deterioração das condições sociais, políticas e económicas, incluindo uma governação fraca e tensões étnicas, levaram a conflitos prolongados no país, agravados à medida que grupos terroristas transformaram a água numa arma, destruindo infraestruturas, bloqueando o acesso a fontes de água e envenenando poços. Como resultado, mais de 1,6 milhões de pessoas foram deslocadas involuntariamente nos últimos anos.”
Três cenários…
Perante este estado de alerta ambiental, a BCG analisou os cenários do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), elaborados com base em diferentes níveis de mitigação das emissões de gases com efeito de estufa, para de seguida conceber um modelo de previsão dos movimentos internos e externos da Humanidade até 2050.
No primeiro dos três cenários, que os autores do estudo apelidaram de Seguir a Via Verde, admite-se a possibilidade de uma redução continuada das emissões de gases com efeito de estufa, assim como uma melhoria na gestão dos recursos do planeta, designadamente da água. Com base nestes pressupostos, a mobilidade climática interna aumentaria cerca de 1%, e a mobilidade externa 2,5% em 2050, em comparação com os dados de 2020. No caso da mobilidade interna, significaria que 24 milhões de pessoas (em 2020, foram 23,8 milhões) seriam forçadas a mudar-se para outro lugar, dentro dos seus países de origem.
O segundo cenário, que os investigadores situam no Meio da Estrada, prevê que nada mudará e o planeta atinja um pico de emissões em 2040. Nesse caso, a mobilidade interna crescerá cerca de 14% e a externa aproximadamente 3%. Finalmente, no terceiro e pior cenário, designado por Seguir a Autoestrada, pouco ou nenhum esforço será feito ao nível das políticas climáticas para mitigar as emissões de gases com efeito de estufa, da dependência dos combustíveis fósseis e do desenvolvimento de tecnologias amigas do ambiente. O aumento da mobilidade climática interna subirá 33% face a 2020, afetando 32 milhões de habitantes, e a deslocação além-fronteiras crescerá 3%, envolvendo 11 milhões de pessoas (em 2020, foram 10,7 milhões).
… e três medidas
As alterações climáticas são uma realidade e já estão a forçar pessoas a deslocarem-se, embora ainda não tenham obrigado ao “fecho” de países, como na série televisiva atrás referida. Além da urgência em reduzir as emissões de carbono, o abastecimento de água a nível mundial deve também ser gerido de forma mais eficaz, de modo a reduzir o número de refugiados do clima. O estudo da BCG propõe três medidas para reduzir o impacto das crises hídricas e proteger as populações mais vulneráveis: aumentar a resiliência hídrica, aumentar a resiliência social e colmatar a lacuna entre elas.
Para aumentar a capacidade de resistência a eventos hídricos extremos, como secas e inundações, o documento propõe o desenvolvimento de tecnologias de baixo custo “de captação, armazenamento e distribuição” da água, tais como previsão de caudais, monitorização em tempo real da qualidade e uso da água, irrigação de precisão e técnicas agrícolas regenerativas, e processamento e recuperação de águas residuais. Considerando que os grandes projetos de engenharia, como as megabarragens, não são viáveis para reduzir os desastre hídricos no futuro, os peritos defendem “soluções resilientes” que utilizem “o poder da Natureza juntamente com as infraestruturas existentes para se adaptarem à evolução dos eventos relacionados com a água”. Aconselham também a “pensar na água como um bem ‘comum’ e a tratar o acesso à água limpa e fresca, tanto para uso agrícola como para uso pessoal, como um direito humano, e não como uma commodity explorada para fins lucrativos privados.”
Além da melhoria na resiliência da água, é necessário garantir que os ganhos são duradouros e que os benefícios são distribuídos de forma equitativa. Por isso, os investigadores propõem, como segunda medida, um reforço da resiliência social, juntando “instituições públicas, decisores políticos e comunidades locais” para desenhar políticas e estratégias de governação que permitam aumentar a adaptabilidade hídrica e criar confiança junto da população.
Por fim, o estudo da BCG recomenda o preenchimento da lacuna entre a resiliência da água e a resiliência social, promovendo a interajuda entre pessoas e recursos, académicos e comunidades locais, na procura de soluções para os efeitos dos desastres hídricos. Sublinhando que a mitigação da mobilidade climática exigirá “mecanismos de financiamento inovadores”, entre os quais empréstimos, subsídios, incentivos, garantias governamentais e soluções alternativas como os créditos de carbono, defende ainda que “é crucial estruturar estes acordos para beneficiar as pessoas a nível local”.
“A mobilidade forçada das populaçõe a nível mundial tem como sua principal causa os desastres naturais relacionados com a água, o que reforça a necessidade de acelerar a transição energética e reduzir as emissões de carbono. Além disso, naqueles eventos que não serão possíveis de prevenir, torna-se imperativa a implementação de ações sociais que aliviem o impacto dos desastres hídricos na população”, diz Manuel Luiz, managing director e partner da BCG em Lisboa.
À medida que o planeta aquece e a mobilidade climática afeta cada vez mais habitantes, não teremos outra escolha senão limitar as causas e retardar os efeitos. Para que o mundo seja um lugar seguro e a realidade não ultrapasse a ficção.

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