A cena poderia ter se passado em qualquer semana dos nove meses do governo Bolsonaro, na saída do Palácio da Alvorada ou em algum evento no Planalto. Mas o episódio ocorreu em setembro de 2010, no Palácio Miraflores, em Caracas, e o presidente em questão era Hugo Chávez. Tendo atrás de si uma pintura de Simón Bolívar e vestindo o vermelho, azul e amarelo da bandeira venezuelana, Chávez repetia com a repórter Andreína Flores, da Rádio França, o mesmo roteiro de humilhação a que, havia anos, os jornalistas venezuelanos eram submetidos.
Chávez também mantinha uma relação de ódio com a imprensa, que, a exemplo da brasileira hoje, desempenhava o papel central do jornalismo: perguntar, fiscalizar, apontar erros, controlar os poderosos. Raras eram as vezes que ele se abria ao escrutínio público. Os ataques aos profissionais, entretanto, foram o começo de um processo que, ao longo de duas décadas de bolivarianismo, se valeu de diferentes métodos, administrativos, econômicos e até tecnológicos, para calar a imprensa venezuelana.
O primeiro grande golpe de Chávez foi a não renovação, em 2007, da concessão da Radio Caracas Televisión, a RCTV, uma rede de televisão privada fundada na capital venezuelana em 1953. Era a maior audiência da Venezuela. Anos mais tarde, o único canal que ainda permanecia com uma cobertura jornalística crítica, a Globovisión, foi vendido para amigos do regime. Mais tarde, já sob Maduro, veio a perseguição judicial e as prisões. Com isso, os jornalistas passaram a se exilar em massa. De 2014 a 2018, 477 jornalistas fugiram do país.
Bolsonaro tinha tintas de autoritarismo com a imprensa antes de vestir a faixa presidencial. Certa vez, o ainda deputado, questionado por um repórter sobre seu processo no Superior Tribunal Militar, chamou-o, aos berros e com dedo em riste, de “escroto” e disse que ele “fazia um trabalho porco”. Ao se referir à tortura sofrida por Miriam Leitão, deixada no escuro com uma cobra, disse: “Coitada da cobra!”. A frase foi repetida por ele ao filho da jornalista, durante uma entrevista.
Com mulheres, aliás, o presidente parece crescer. A uma repórter da Rede TV!, em 2014, depois de chamá-la de “idiota” e “analfabeta”, disse que não a quis ofender, afinal ela era “bonita”. Uma vez empossado, continuou a carga. Uma repórter foi chamada de “qualquer uma”. Outra ouviu que sua pergunta era “idiota”. Quem quiser ver a truculência em vídeo encontra todos os episódios na internet.
O presidente, entretanto, não se limitou à intimidação de profissionais e também parece disposto a usar a caneta contra a imprensa. Em 5 de agosto, Bolsonaro editou uma medida provisória para alterar uma lei que ele mesmo sancionara apenas quatro meses antes. O texto, que tramitou no Congresso por quatro anos, estipulava janeiro de 2022 como o prazo para que as empresas não fossem mais obrigadas a publicar seus balanços em jornais, uma maneira de dar tempo para que os veículos, especialmente os de pequeno porte, conseguissem contornar o revés em suas contas. A medida provisória determinava para já o fim da obrigatoriedade. Bolsonaro foi claro ao falar sobre por que havia editado o texto: “No dia de ontem eu retribuí parte daquilo que grande parte da mídia me atacou”, afirmou.
Jair Bolsonaro ataca os jornalistas pelos mesmos motivos que Hugo Chávez no passado: é papel dos repórteres perguntar, fiscalizar e apontar os erros dos poderosos. Foto: Yuri Cortez / AFP
O editor venezuelano Joseph Poliszuk está exilado há dois anos. Viveu em Bogotá e hoje mora na Califórnia. Ele e seus dois sócios, donos do site de jornalismo investigativo Armando.Info, um dos mais premiados do jornalismo latino-americano hoje, tiveram de deixar Caracas às pressas para fugir da possibilidade de prisão em um caso aberto por empresários chavistas. Poliszuk, que viu o jornal em que trabalhava, anos atrás, ser comprado e adotar uma linha editorial de defesa do governo, tem observado com preocupação os primeiros meses do governo Bolsonaro. Vê semelhanças com o começo do chavismo.
“O primeiro sintoma que percebemos foi evitar dar respostas, depois começaram a impedir o acesso de veículos críticos. Chávez submetia a imprensa ao escárnio público. Fazia bullying com os jornalistas. Defendia-se dessa forma”, lembrou, em uma conversa recente por telefone.
Poliszuk, que não sabe quando poderá voltar à Venezuela, considera que a censura chavista foi eficaz. “Somos influentes, mas não temos a estrutura nem os recursos dos meios tradicionais. Isso faz falta para a população toda ser informada”, contou. Existe ainda a censura digital, por meio de bloqueios intermitentes dos sites noticiosos. Em alguns momentos do dia o acesso a alguns portais em determinadas partes do país ou áreas de uma grande cidade é vetado. Outra maneira de controle é a restrição de acesso a dólares para veículos críticos, o que os impede de comprar papel-jornal ou outros insumos importados. Quem critica o governo é castigado.
“Minha impressão é que vocês estão no começo do que nós vivemos. Nós estamos sofrendo com a esquerda, e vocês parecem estar sofrendo com a direita. São duas faces da mesma moeda, a tirania. Governantes que não aceitam ser questionados”, analisou Poliszuk.
O Brasil também teve ameaças autoritárias à esquerda. Sem a mesma agressividade, em diferentes episódios, o petismo também atacou repórteres e criou dificuldades para o trabalho jornalístico. Blogueiros financiados pelo governo expunham jornalistas, na tentativa de desacreditá-los e intimidá-los — novamente, não muito diferente do que os youtubers de direita fazem agora ao servir Bolsonaro. Com graus diferentes, também propunham uma conversa sem intermediários com a população, diretamente via redes sociais, o que não é um problema em si. Mas não aceitar a mediação da imprensa é autoritário. Os mandatários têm de prestar contas. Seja em Caracas, seja em Brasília.