sábado, 28 de setembro de 2019

O lado Chávez de Bolsonaro

Quando a assessora de imprensa anunciou que era sua vez de fazer a pergunta, a repórter dirigiu-se ao microfone. Era uma entrevista coletiva. Apresentou-se, disse o nome do veículo para o qual trabalhava e fez a pergunta. O presidente se irritou. “Estou esperando que vocês me respondam pelas mentiras que vocês transmitem sem nenhuma vergonha. Contam mentira e depois... silêncio! Tenha ética!”, disse, aumentando o constrangimento. “Você conhece a Constituição? Tem certeza? Eu pergunto isso porque vocês gostam de dizer que são jornalistas, mas sua pergunta me mostra que você ignora um monte de coisas. Sua pergunta não tem fundamentação lógica.” Envergonhada, a repórter reclamou do tom do presidente, que retomou a palavra, olhou para os ministros a seu lado e deu uma risada. “Agora se sente ofendida, ela... Não manipule, então!”, disse, em tom sarcástico.


A cena poderia ter se passado em qualquer semana dos nove meses do governo Bolsonaro, na saída do Palácio da Alvorada ou em algum evento no Planalto. Mas o episódio ocorreu em setembro de 2010, no Palácio Miraflores, em Caracas, e o presidente em questão era Hugo Chávez. Tendo atrás de si uma pintura de Simón Bolívar e vestindo o vermelho, azul e amarelo da bandeira venezuelana, Chávez repetia com a repórter Andreína Flores, da Rádio França, o mesmo roteiro de humilhação a que, havia anos, os jornalistas venezuelanos eram submetidos.

Chávez também mantinha uma relação de ódio com a imprensa, que, a exemplo da brasileira hoje, desempenhava o papel central do jornalismo: perguntar, fiscalizar, apontar erros, controlar os poderosos. Raras eram as vezes que ele se abria ao escrutínio público. Os ataques aos profissionais, entretanto, foram o começo de um processo que, ao longo de duas décadas de bolivarianismo, se valeu de diferentes métodos, administrativos, econômicos e até tecnológicos, para calar a imprensa venezuelana.

O primeiro grande golpe de Chávez foi a não renovação, em 2007, da concessão da Radio Caracas Televisión, a RCTV, uma rede de televisão privada fundada na capital venezuelana em 1953. Era a maior audiência da Venezuela. Anos mais tarde, o único canal que ainda permanecia com uma cobertura jornalística crítica, a Globovisión, foi vendido para amigos do regime. Mais tarde, já sob Maduro, veio a perseguição judicial e as prisões. Com isso, os jornalistas passaram a se exilar em massa. De 2014 a 2018, 477 jornalistas fugiram do país.

Bolsonaro tinha tintas de autoritarismo com a imprensa antes de vestir a faixa presidencial. Certa vez, o ainda deputado, questionado por um repórter sobre seu processo no Superior Tribunal Militar, chamou-o, aos berros e com dedo em riste, de “escroto” e disse que ele “fazia um trabalho porco”. Ao se referir à tortura sofrida por Miriam Leitão, deixada no escuro com uma cobra, disse: “Coitada da cobra!”. A frase foi repetida por ele ao filho da jornalista, durante uma entrevista.

Com mulheres, aliás, o presidente parece crescer. A uma repórter da Rede TV!, em 2014, depois de chamá-la de “idiota” e “analfabeta”, disse que não a quis ofender, afinal ela era “bonita”. Uma vez empossado, continuou a carga. Uma repórter foi chamada de “qualquer uma”. Outra ouviu que sua pergunta era “idiota”. Quem quiser ver a truculência em vídeo encontra todos os episódios na internet.

O presidente, entretanto, não se limitou à intimidação de profissionais e também parece disposto a usar a caneta contra a imprensa. Em 5 de agosto, Bolsonaro editou uma medida provisória para alterar uma lei que ele mesmo sancionara apenas quatro meses antes. O texto, que tramitou no Congresso por quatro anos, estipulava janeiro de 2022 como o prazo para que as empresas não fossem mais obrigadas a publicar seus balanços em jornais, uma maneira de dar tempo para que os veículos, especialmente os de pequeno porte, conseguissem contornar o revés em suas contas. A medida provisória determinava para já o fim da obrigatoriedade. Bolsonaro foi claro ao falar sobre por que havia editado o texto: “No dia de ontem eu retribuí parte daquilo que grande parte da mídia me atacou”, afirmou.

Jair Bolsonaro ataca os jornalistas pelos mesmos motivos que Hugo Chávez no passado: é papel dos repórteres perguntar, fiscalizar e apontar os erros dos poderosos. Foto: Yuri Cortez / AFP

O editor venezuelano Joseph Poliszuk está exilado há dois anos. Viveu em Bogotá e hoje mora na Califórnia. Ele e seus dois sócios, donos do site de jornalismo investigativo Armando.Info, um dos mais premiados do jornalismo latino-americano hoje, tiveram de deixar Caracas às pressas para fugir da possibilidade de prisão em um caso aberto por empresários chavistas. Poliszuk, que viu o jornal em que trabalhava, anos atrás, ser comprado e adotar uma linha editorial de defesa do governo, tem observado com preocupação os primeiros meses do governo Bolsonaro. Vê semelhanças com o começo do chavismo.

“O primeiro sintoma que percebemos foi evitar dar respostas, depois começaram a impedir o acesso de veículos críticos. Chávez submetia a imprensa ao escárnio público. Fazia bullying com os jornalistas. Defendia-se dessa forma”, lembrou, em uma conversa recente por telefone.

Poliszuk, que não sabe quando poderá voltar à Venezuela, considera que a censura chavista foi eficaz. “Somos influentes, mas não temos a estrutura nem os recursos dos meios tradicionais. Isso faz falta para a população toda ser informada”, contou. Existe ainda a censura digital, por meio de bloqueios intermitentes dos sites noticiosos. Em alguns momentos do dia o acesso a alguns portais em determinadas partes do país ou áreas de uma grande cidade é vetado. Outra maneira de controle é a restrição de acesso a dólares para veículos críticos, o que os impede de comprar papel-jornal ou outros insumos importados. Quem critica o governo é castigado.

“Minha impressão é que vocês estão no começo do que nós vivemos. Nós estamos sofrendo com a esquerda, e vocês parecem estar sofrendo com a direita. São duas faces da mesma moeda, a tirania. Governantes que não aceitam ser questionados”, analisou Poliszuk.

O Brasil também teve ameaças autoritárias à esquerda. Sem a mesma agressividade, em diferentes episódios, o petismo também atacou repórteres e criou dificuldades para o trabalho jornalístico. Blogueiros financiados pelo governo expunham jornalistas, na tentativa de desacreditá-los e intimidá-los — novamente, não muito diferente do que os youtubers de direita fazem agora ao servir Bolsonaro. Com graus diferentes, também propunham uma conversa sem intermediários com a população, diretamente via redes sociais, o que não é um problema em si. Mas não aceitar a mediação da imprensa é autoritário. Os mandatários têm de prestar contas. Seja em Caracas, seja em Brasília.

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