domingo, 31 de janeiro de 2021

Bolsonaro paga o preço do estelionato eleitoral para blindar o governo

Duas versões de Jair Bolsonaro circulam em Brasília. Num dia, o presidente diz a apoiadores na portaria do Palácio da Alvorada que não pretende trocar ministros para acomodar aliados políticos. Depois, a portas fechadas, negocia com os caciques do centrão indicações para o primeiro escalão do governo.

A aliança de Bolsonaro com esses partidos é um caso típico de estelionato eleitoral. Durante a campanha e por mais de um ano de mandato, o presidente sustentou a promessa de que não faria um loteamento político do governo. Aos poucos, ele cedeu espaço aos parlamentares, sem se preocupar com os custos da violação desse princípio.

O cálculo do Planalto é simples. A entrada do centrão em postos-chave frustra eleitores do presidente, mas o governo vê benefícios políticos que superam os riscos da operação. Bolsonaro topa pagar o preço de desmontar um item central de sua plataforma porque sabe que os apoiadores são mais leais do que os políticos que mantêm o governo de pé.



O presidente já provocou ranger de dentes entre seguidores um punhado de vezes. Bolsonaro irritou sua base com a demissão de Sergio Moro, a nomeação de Kassio Nunes Marques para o Supremo e a aliança para eleger Arthur Lira (PP) na Câmara, mas conseguiu o perdão dos eleitores mais fiéis. Os partidos do centrão não seriam tão generosos.

Essas siglas oferecem apoio para blindar o presidente no Congresso e conter o desgaste político que poderia abreviar seu governo, mas esperam que os compromissos da negociação sejam honrados pelo Planalto. Nessa mesa, a velha retórica de campanha de Bolsonaro não tem valor, em nenhum dos dois lados.

O estelionato é mais um reflexo da inadequação do presidente para o cargo. Bolsonaro acreditou que poderia governar em conflito com o Congresso para abrilhantar seu figurino antissistema. As investigações que cercam seu grupo político o obrigam a decidir se prefere trair os eleitores ou a nova tropa de choque. A escolha parece estar feita.

Palavras e silêncios

‘Kintsugi’ (algo como reparação dourada) é a arte japonesa de devolver vida a objetos de cerâmica quebrados, remendando-os com pó de ouro. Essa centenária artesania nasce da ideia de que, ao aceitarmos imperfeições e falhas, ao mantermos visível a cicatriz, podemos criar algo ainda mais forte, ainda mais belo do que o original único agora despedaçado. Nada mais atual, eterno e multiuso do que essa arte, visto que ela pode ser aplicada tanto a um pote quebrado como a pessoas, à democracia estalante de hoje e à própria vida. Quando exigimos a perfeição em tudo e todos, inclusive em nós mesmos, acabamos criando um mundo cruel em que recursos e possibilidades são descartados.

Só que, para recorrer ao restauro, é necessário, antes, reconhecer que algo quebrou. Nos Estados Unidos e no Brasil, passou da hora de reconhecer que as normas democráticas racharam fundo sob Donald Trump e Jair Bolsonaro. Lá, o recém-empossado Joe Biden tenta iniciar o remendo sem estardalhaço, mas com gravidade, pois a hora é mesmo grave. Ao contrário do antecessor, Biden assina sua aguardada cota de decretos executivos como se fosse um burocrata apressado em carimbar formulários inúteis. É o oposto. Alguns desses decretos têm consequências planetárias, visam a corrigir cursos que apontavam para o abismo na questão climática. Outros abrem caminho para reparar desigualdades gritantes no próprio país.



Talvez algum dia venham a ser olhados como obra de kintsugi da democracia trincada, mas por enquanto são apenas decretos, sem a permanência de leis, e nenhuma garantia de que o remendo trabalhado não seja obstruído. Têm muito a conspirar contra. Continua intacta a dependência dos republicanos da máquina eleitoral fiel a Trump. O arrojo do extremismo branco aumentou desde o ataque do dia 6 contra o Legislativo. O Capitólio e seu entorno permanecem enjaulados por precaução. A deputada de primeiro mandato Lauren Boebert, conspiracionista fervorosa, já anunciou que não abre mão de circular pelo Capitólio com sua pistola Glock carregada, e Marjorie Greene, também eleita em 2020 por apoiadores da seita QAnon, já elogiou quem defende “enfiar uma bala na cabeça” da presidente da Casa, a democrata Nancy Pelosi. É da própria Pelosi, a frase da semana que melhor exprime a preocupação com as instituições do país: “O inimigo está dentro da Câmara de Representantes”. Terrível para a nação fundadora do sonho democrático moderno.

O labor pela democracia nunca acaba, ensinou Walt Whitman. O grande poeta da Guerra Civil Americana repetia que a palavra é grandiosa, mas sua história permanece em branco, porque ainda precisa ser encenada. Algo como o tempo passado e o tempo futuro lutando pelo controle do presente, definiu o maravilhoso Lewis H. Lapham, fundador e alma da “Lapham’s Quarterly”.

No Brasil, o pote está tão esmigalhado que é difícil ver algum remendo no horizonte. Faltam vacina e decência, sobram condenados à morte por asfixia. Pela peculiaridade da Covid-19, são perdas silenciadas atrás de portas de hospitais, de casas funerárias, de cemitérios, enterros em covas onde o distanciamento já não cabe mais. Um horror amplificado pelos pequenos horrores do cotidiano nacional, como um hospital federal que sofre queda de energia e compromete 720 doses da vacina da vida.

Por sistêmicas, as indignidades infligidas à vida brasileira já fazem parte do esperado. Só vez por outra o caldo ferve no cidadão obrigado a economizar energia para aguentar o amanhã. Na quarta-feira passada, a mais recente patifaria verbal de Jair Bolsonaro entornou um desses caldos de indignação. Ela merece registro neste espaço por dizer o essencial sobre a excrescência que habita no Palácio da Alvorada. No evento fechado de uma churrascaria de Brasília, o presidente estava de pé, microfone em mãos. Sentados em mesas abarrotadas, a ruidosa confraria de áulicos, que incluía o chanceler Ernesto Araújo. Explodiram de gáudio quando Bolsonaro respondeu assim a críticas recebidas por gastos alimentícios do governo: “E, quando eu vejo a imprensa me atacar dizendo que comprei 2 milhões e meio de latas de leite condensado, vai pra puta que o pariu. Imprensa de merda essa aí. É pra enfiar no rabo de vocês aí...”. O perigo à democracia brasileira já não é mais o Mito. São os adoradores decididos a perpetuar o mito.

Melhor procurar refúgio noutro marco da cultura japonesa: o caractere Ma, que representa a arte do silêncio, o espaço sagrado do silêncio em todas as atividades humanas. No Ocidente, sentimos desconforto quando se estabelece um vazio durante uma conversa a dois ou uma reunião em grupo. Nossa tendência é preencher esse vazio com qualquer abobrinha. Para japoneses, não se trata de um vazio, e sim de uma forma sublime de se conectar através desse espaço silencioso. O que seria da música sem os silêncios que conectam os sons? Não seria música, seriam apenas sons. Bonito, não?

Por aqui, estamos em outro diapasão.

Pilatos brasileiro

Maarten Wolterink (Holanda)
Não é competência nossa e nem atribuição levar o oxigênio para lá (Amazonas). Demos os meios
Jair Bolsonaro

Palácio e picadeiro, incontinências de Bolsonaro

Das cenas grotescas protagonizadas pelo presidente Jair Bolsonaro, a que foi exibida no último dia 27 de janeiro é das mais repulsivas. Cercado por tietes, ele exibiu todo o ódio à imprensa. A causa do destempero encontra-se na denúncia sobre os estranhos gastos do Executivo federal com alimentos. Um estadista responderia com números e documentos. Mas, ao proferir, sorrindo, vocábulos pornográficos, o governante recebeu ovações de arruaceiros e chaleiras. Tal vitupério exige processo judicial por indecente uso do cargo. Frases que no pior bordel são evitadas, nos lábios de um presidente causam asco.

O “mito” não entenderá a citação abaixo, pois sua força cognitiva é pequena. Mas entre ministros, políticos que a ele se aliam e antigos apoiadores talvez exista algum saber. A eles me dirijo. Ao discutir a governabilidade, diz Spinoza: “A república não pode fazer com que os homens (...) respeitem o que gera riso ou náusea. (...) Para garantir o poder é preciso guardar as causas do medo e do respeito, caso oposto não há mais um Estado. É impossível para os que operam o mando político (...) bancar o palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis por eles mesmos estabelecidas, pois assim eles perdem a majestade e mudam o medo em indignação e o estado civil em estado de guerra” (Tratado Político). Tais enunciados vêm de Maquiavel, pensador das práticas que permitem manter o poderio civil.



Repito: o presidente nada compreende de semelhantes teses. Mas quem negou sua utilidade perdeu cargos, para não mencionar a cabeça. Assim foi com Carlos I da Inglaterra e Luís XVI na França. Sempre chega a vez de quem imagina a si mesmo como impune e infenso às leis.

O decoro na fala e na postura corporal integra toda autoridade política, jurídica, religiosa, militar. Menciono outro escrito que certamente não será compreendido pelo sr. Jair Bolsonaro e seus marombeiros. Trata-se de Hannah Arendt: “Se for preciso verdadeiramente definir a autoridade, deve-se fazê-lo opondo-a ao mesmo tempo ao constrangimento pela força e à persuasão por argumentos”. No setor público ou privado cada um reconhece a superior hierarquia de quem ostenta autoridade. Não é pelo vezo de prender ou censurar, perseguir ou caluniar aos berros os oponentes que alguém consegue respeito público.

Dito de outro modo: se você precisa gritar para que lhe obedeçam, sua autoridade não existe. Inteligência, decoro, respeito à hierarquia, autoridade: um estadista pode receber da vida doses desiguais desses elementos. Ele compensa a fraqueza de um com a força de outro. Mas o dirigente que enxovalha o seu cargo não tem autoridade, só lhe cabe o título atribuído por Spinoza: palhaço.

Todo clown possui dupla face: a risível e a trágica. A primeira é exibida a cada novo dia pelo sr. Jair Bolsonaro. A trágica surge em decisões imprudentes e impudentes durante a pandemia. Tantas sandices comete o “mito” – e aí vai um alerta aos militares responsáveis pela força física estatal – que podemos temer: a indignação diante do descalabro pode “mudar o estado civil em estado de guerra”.

Aliás, são hábitos do líder a mão armada e o incentivo aos instrumentos da morte que impulsionam fraturas civis. Junto vem o boicote pérfido a vacinas como a Coronavac – esperanças de vida – por mesquinhos alvos políticos. A teoria infame de Carl Schmitt é praticada por ele: a política como forma de gerar o inimigo. E assim são corroídos os elos que garantem a união interna do Estado.

Recordo o dito usado por João de Salisbury (Policraticus) sobre governantes desprovidos de saber. Rex illiteratus quasi asinus coronatus est (um rei iletrado é quase um asno coroado). Para governar urge mover conceitos políticos, militares, filosóficos, jurídicos e outros. A edificação do Estado moderno se norteia pelo preparo do governante. Erasmo publicou um tratado sobre o tema, Institutio Principis Christiani. Ele cita Salisbury: “Liberdade real e virtude só podem ser obtidas onde existe a liberdade de palavra. O bom príncipe do bom Estado deve aceitar pacientemente as palavras livres, quaisquer que elas sejam”. Os turpilóquios de Bolsonaro contra a imprensa ameaçam o verbo independente. Erasmo adverte contra os aduladores. Na educação do príncipe o cavalo ensina a governar, pois não aceita violência e recusa imperícia ou lisonja. O sáfaro que ignora tais peculiaridades equinas vai ao chão. Aduladores, como os do espetáculo obsceno indicado no início deste artigo, lambem botas do poderoso ocasional. Se ele perde força, as línguas de aluguel procuram outra fonte de poder.

Gabriel Naudé, autor das Considerações Políticas Sobre os Golpes de Estado (1640), louva o saber do governante e recorda o dito de Luís XI: “Quem não sabe dissimular não sabe governar”. Se o líder pensa com os intestinos, em vez do cérebro, e não domina ódios pessoais, perde acatamento político.

Os destemperos de Jair Bolsonaro evidenciam carência de autoridade, decoro, saber. Ele quer os poderes do Legislativo e do Judiciário. O lugar que lhe cabe, no entanto, não é no palácio, mas na arena ou picadeiro.

Pensamento do Dia

 


Unidade e Transição

Na véspera de iniciar nosso terceiro centenário, precisamos mais que nunca de um presidente capaz de inspirar coesão no presente e rumo para o futuro. Estamos divididos em grupos que não se reconhecem como partes de um mesmo povo, seja pela desigualdade na renda ou pelo sectarismo nas ideias. Estamos ficando para trás na história, sem sintonia com o mundo, por falta de base científica e tecnológica, de capacidade de produzir e poupar, falta de infraestrutura econômica, de solidariedade social e nacional, sobretudo de educação de qualidade para todos. Mas, apesar destes desafios para o terceiro milênio, nossa tarefa imediata é impedir a continuação do atual quadro de divisão sectária, negação da realidade, incompetência gerencial e falta de visão de futuro.

Em 1985, consciente da responsabilidade de impedir a continuação do regime militar, os democratas se uniram, desde os mais progressistas aos mais conservadores, com exceção do PT, que preferiu não votar em Tancredo Neves. A união permitiu cinco anos de democracia, com sucessivas eleições para escolher rumos conforme a proposta de cada candidato. Por nossos erros, nossas divisões, por prioridades e comportamentos equivocados, deixamos que forças autoritárias e retrógradas voltassem ao poder com o voto dos eleitores. Corremos o risco desta interrupção de nossa marcha ao futuro continuar, reeleita pelo eleitor.

Para eleger um presidente que nos conduza ao futuro é preciso primeiro impedir um presidente que só vê o passado e destrói o presente construído nos últimos 35 anos de democracia. Nossa tarefa imediata é impedir a continuação do retrocesso. Elegermos um presidente que permita retomar o debate democrático com bom senso, respeito à verdade e ao contraditório, e então ganharmos impulso para os anos adiante.

Entre 1985 e 1919 fomos capazes de construir uma democracia sob Constituição duradoura; estamos no mais longo período de estabilidade monetária, com uma única moeda; implantamos programas de solidariedade com transferência de renda para os pobres; colocamos quase todas nossas crianças em escolas; mais que dobramos o número de estudantes universitários; conseguimos presença internacional respeitada; demos substanciais avanços nos direitos humanos; mas estamos ameaçados de perder tudo isto.

Temos a obrigação de voltarmos a nos unir em 2022, para elegermos um presidente comprometido em recuperar as conquistas dos últimos 35 anos. Para enfrentar o presidente atual, precisamos apresentar um candidato único, desde o primeiro turno, com baixa rejeição entre os eleitores. Os atuais candidatos precisam deixar seus projetos, metas e interesses nacionais e pessoais para a eleição seguinte; se unirem agora em torno àquele que assuma o compromisso de manter os acertos da democracia e que tenha as melhores condições para atrair os eleitores, graças à menor rejeição ao seu nome, e assuma o compromisso de apenas um mandato. Os demais candidatos adiam suas disputas para 2026 ou assumem o risco de verem 2022 repetir 2018. Os candidatos naturais em 1985, grandes líderes, entenderam o que a história precisava e adiaram suas candidaturas para 1989, dentro do marco democrático. Fizeram unidade e garantiram transição.

Cristovam Buarque

'Coveirão' do Brasil

Esse boicote sistemático (de Bolsonaro à imunização em massa) justifica mais de 220 mil óbitos? Ele é o único culpado? É claro que não, a culpa é de muitos, especialmente dos egoístas estúpidos que se aglomeram sem máscara nos bares e nas festas.

No entanto, pela natureza do cargo que ocupa, os absurdos que fala e a indignidade dos exemplos que dá, o presidente da República tem sido o grande responsável pela disseminação da epidemia. Não é por acaso que somos o segundo país com o maior número de mortes
Drauzio Varella 

A hipocrisia de fazer do ministro Pazuello o bode expiatório para tentar salvar Bolsonaro

O fato de o Supremo Tribunal Federal ter acatado o pedido de inquérito apresentado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, contra o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, por seus possíveis crimes no combate à pandemia em Manaus, enquanto poupou o presidente Bolsonaro, é uma grande hipocrisia. É fazer de Pazuello o bode expiatório para salvar seu chefe.

Não que o ministro seja inocente e não mereça ser incriminado. O que é um escândalo para a sociedade é que ambos não sejam processados. Todas as falhas do ministério da Saúde que levaram a tantos mortos e a desacreditar a vacina foram perpetradas pelo presidente e pelo ministro juntos. Mas começou quando Pazuello ainda não era ministro.

Pesa sobre a responsabilidade do presidente que foi ele quem expulsou médicos competentes do ministério para colocar um militar sem nenhuma garantia científica e assim poder dominá-lo e fazer dele um simples fantoche.

O general Pazuello deve ser recriminado por ter aceitado de cabeça baixa todas as imposições de Bolsonaro sem ter se rebelado. Além disso, alardeava que, como militar, tinha de obedecer ao chefe, aliás, um simples capitão expulso do Exército.



A jogada de Aras de pedir para investigar Pazuello poupando Bolsonaro foi tão tosca que é impossível escondê-la da opinião pública. Todo o Brasil já sabe que a tragédia da pandemia foi fomentada por Bolsonaro, que levou o Brasil ao descrédito mundial.

O fato de Bolsonaro tentar agora ganhar o Congresso e o Senado impondo à presidência dois de seus defensores revela seu medo de acabar deposto por sua incapacidade de governar um país da importância do Brasil. Bolsonaro, que bancava o Napoleão, na verdade começa a ver que seu reino está desmoronando. É por isso que agora se refugia no Congresso, oferecendo-lhe o que este pede e muito mais.

Que o reino de Bolsonaro está começando a entrar em colapso é demonstrado pelo fato de que seus seguidores mais fanáticos e ideológicos estão começando a ficar em silêncio ou desiludidos com ele. Onde estão eles senão na fúria do ideólogo do bolsonarismo fanático e autoritário, o pseudofilósofo Olavo de Carvalho? Há silêncios mais eloquentes do que a gritaria.

No final, teremos o paradoxo de que Bolsonaro veja sua onipotência ser tolhida como o Sansão bíblico, e como ele acabe na prisão e esquecido. Na política são frequentes as noites dos longos punhais em que se tramam as grandes traições. Vimos isso com Dilma Rousseff e poderemos ver com Bolsonaro.

Quem chegou para acabar com a política, pensando que não precisava das outras instituições para governar, parece cada vez mais claro que será a velha política que o obrigará a baixar a crista de galo para se tornar uma simples galinha.

O caso do ministro Pazuello, que tentou transformar em bode expiatório que carregasse seus pecados poderia ser paradoxalmente o fim de suas arrogâncias que estão colocando o Brasil à beira de uma crise econômica que acabará caindo sobre seus ombros.

Os primeiros a detectar isso começam a ser os grandes empresários que um dia lhe deram sua confiança acreditando que o presidente apoiaria o ministro da Economia, Paulo Guedes, em sua política econômica liberal e hoje começam a se preocupar e a se afastar dele. Juntas, a desilusão do poder econômico e a pressão popular que começa a crescer podem acabar com o mito e seu pesadelo que colocou o Brasil entre os párias do mundo.

Pela primeira vez, aliás, até a Igreja começa a dar as costas ao mito. Assim o revela o fato de que um pedido de impeachment esteja sendo assinado por religiosos críticos do Governo. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, a petição inclui católicos, luteranos, metodistas e até pastores evangélicos.

Bolsonaro tem apenas duas opções: ou ser presidente de um grupo menor, continuando com suas bravatas e sonhos golpistas, ou se inserir completamente no modelo clássico da política brasileira.

Será um teste interessante para saber se essas bravatas e destemperos do capitão-presidente são fruto, como pensam alguns psicanalistas, de distúrbios psíquicos ou de puro cálculo político.

No caso de que as loucuras de Bolsonaro sejam resultado de perturbações psíquicas que o levam a desafiar a ciência e a democracia, será impossível para ele abandonar sua estratégia para manter vivo seu grupo de extremistas e fanáticos, feras que precisam de que mais carne lhes seja atirada todos os dias.

E no caso de ser apenas uma questão de estratégia política e que esteja se convertendo na normalidade democrática para não perder o poder, não é difícil que, com um apoio cada vez menor da opinião pública, um político sem a força de um partido próprio importante acabe relegado e devorado por políticos especialistas em se manter no poder.

Uma vez que Bolsonaro acabe convertido à política clássica e deixe seus desatinos antidemocráticos e se converta à ortodoxia, poderia muito bem ser que nas eleições presidenciais acabe voltando ao caldeirão do baixo clero do Congresso, onde vegetou por quase 30 anos. Se os grupos parlamentares virem que foram capazes de domesticar o velho cavalo desbocado, Bolsonaro perderá todas as chances de se reeleger. A velha política está, com efeito, esperando para retomar o poder.

Resta saber se o Congresso que Bolsonaro adotou permitirá que ele continue, por exemplo, com sua perseguição aos meios de comunicação e com os insultos grosseiros aos jornalistas, que já estão sendo até investigados pela polícia como se não houvesse liberdade de imprensa e já estivéssemos em uma ditadura.

O último exemplo de suas grosserias indignas de um chefe de Estado aconteceu dias atrás, quando foram questionadas as despesas do Governo com leite condensado. Bolsonaro, perguntado sobre o assunto, respondeu com desfaçatez que o leite condensado era “para enfiar no rabo dos jornalistas”.

Enquanto isso, Bolsonaro continua com seu negacionismo da pandemia e acaba de colocar em dúvida os dados sobre o número de vítimas e infectados apresentados por seu próprio ministério.

Uma pergunta que se impõe ao longo desta história de querer fazer de Pazuello o bode expiatório de Bolsonaro leva a pensar se os militares não se sentirão humilhados ao ver um general da ativa ser investigado por crimes contra a vida.

Até quando os militares continuarão apoiando Bolsonaro no Governo? É uma pergunta que se torna cada dia mais urgente e alarmante. Sua perseverança em participar de um Governo que perdeu prestígio nacional e internacional pode acabar manchando toda a instituição do Exército, que sempre gozou de grande apoio popular.

Aqueles que tomam Bolsonaro por um simples palhaço deveriam estudar história. Muitos outros governantes no passado também considerados palhaços inócuos acabaram produzindo rios de sangue, empobrecendo e despojando as pessoas de suas liberdades.

Bolsonaro corrupto

Já se falou quase tudo do governo de Jair Bolsonaro. Da sua índole intolerante e antidemocrática, da sua beligerância permanente, das baixarias que produz em escala industrial, dos seus inúmeros crimes de responsabilidade, da sua fraqueza moral, dos atentados que comete contra a vida humana no tratamento que dispensa à pandemia do coronavírus. Agora, pode-se também afirmar que esse governo é corrupto. O capitão, que foi eleito prometendo varrer a corrupção de Brasília, montou ele próprio um esquema para se defender e proteger as falcatruas de seus filhos e aliados.

São várias as evidências desse esquema ao redor do presidente. Bolsonaro controla tanto a Procuradoria-Geral da República quanto a Polícia Federal com absoluto rigor. Apesar de manter a aparência de independência, Augusto Aras e Rolando Alexandre de Souza fazem o que for preciso para não desagradar ao presidente. Outras instituições do Estado, além da PF, são usadas sem constrangimento. Tanto o Ministério da Justiça quanto a Advocacia- Geral da União foram instrumentalizadas por Bolsonaro para defender ele mesmo, os seus três zeros e a sua turma.



Com o centrão no comando da pauta do governo, o que teremos até o desfecho deste lamentável mandato será apenas mais um governo corrupto. Sabe-se desde já que na Câmara Bolsonaro vai comer pelas mãos de Arthur Lira (corrupção ativa, lavagem de dinheiro, violência doméstica) e seus parceiros. Lira deve ganhar a presidência da Casa, mas mesmo que perca, será o guia do capitão naquele plenário. No Senado, com Rodrigo Pacheco ocorrerá o mesmo. Como noticiou o Estadão na quinta-feira, o deputado já anunciou que, sendo eleito, vai torpedear CPIs contra o Planalto. Duas já estão na sua mira, a das Fake News e a da Saúde. E o senador avisou que não gosta de CPIs. Oras.

O governo vai voar em céu de brigadeiro e só sentirá turbulência se não soltar lastro toda vez que for exigido pelos aliados gulosos. Vai precisar se livrar de muito peso, é bom que se diga. Já sinalizou inclusive que pode criar novos ministérios para abrigar a turminha. Bolsonaro vai fazer concessões, nenhuma dúvida, mas não terá sequer uma agenda que consiga pelo menos balancear possíveis estragos que vierem a ser feitos por larápios. Como se viu na demissão do presidente da Eletrobrás, nem a agenda liberal sobreviveu a dois anos de governo. Fora o escancaramento na liberação de armas e munições, a pauta conservadora também não anda, porque a turma não é tão besta assim. O que vai sobrar é o velho toma-lá-dá-cá.

A Transparência Internacional divulgou esta semana o ranking atualizado de percepção de corrupção em que avalia 180 países. ªO Brasil ficou na 94ª posição, a pior de toda a América Latina. No ano passado, bateu seu recorde histórico. Este ano, melhorou três pontos em cem, mas continua em patamar mais baixo do que todos os anos anteriores. A explicação é simples. Segundo a ONG, a principal causa é a interferência política de Bolsonaro nos instrumentos de combate à corrupção, como nas já citadas AGU, PGR e PF. Também por influência do capitão foram fritadas as operações Lava Jato e Greenfield.

Mas, e daí? Qual a surpresa? Antes mesmo de ser eleito presidente, Bolsonaro já se valia dos cofres públicos para enriquecer. Ao ser flagrado desviando verba do auxílio moradia da Câmara, disse ao jornal “Folha de S. Paulo” que usava o dinheiro público “para comer gente”. Um corrupto de largo espectro, inclusive moral.

sábado, 30 de janeiro de 2021

Ação deliberada de espalhar vírus

Crime de epidemia. Essa é a acusação feita a Jair Bolsonaro na representação encaminhada à Procuradoria-Geral da República para que ele ofereça denúncia contra o presidente. “Da mesma forma que alguém que agrave uma lesão existente responde por lesão corporal, presidente que intensifica a epidemia existente responde por esse crime. Jair Bolsonaro sempre soube das consequências de suas condutas, mas resolveu correr o risco.

Esse crime é previsto no artigo 267 do Código Penal. “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos” e a punição é prisão de 10 a 15 anos, podendo agravar-se a pena se houver morte. Torna-se então crime hediondo. Houve outras ações às quais essa representação se refere e que apontaram vários artigos do Código Penal que ele teria infringido, como o 132, que é pôr em perigo a vida ou a saúde de outrem.


O grupo de procuradores aposentados — alguns exerceram até recentemente postos elevados no Ministério Público — e um desembargador que entrou com a ação apoiou-se em pesquisa. Recentemente publicado, o estudo faz uma linha do tempo dos atos e palavras do presidente da República nesta pandemia, para assim mostrar que houve uma ação deliberada do presidente de contaminar o máximo de pessoas, na suposição de que assim se atingiria a tal “imunidade de rebanho”.

A representação foi apresentada ao Procurador-Geral da República pela, até recentemente, procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, pelo ex-PGR Claudio Fonteles, por dois ex-procuradores federais dos Direitos do Cidadão, Álvaro Augusto Ribeiro Costa e Wagner Gonçalves, o subprocurador-geral aposentado Paulo de Tarso Braz Lucas e o desembargador aposentado do TRF da 4ª Região Manoel Lauro Volkmer de Castilho.

O começo da cronologia que apresentam é o dia 7 de março. Havia seis infectados no Brasil. O presidente foi a Miami, área de risco para a pandemia. “No dia 15 daquele mês, já de volta ao Brasil, convoca e participa de manifestações políticas com grande aglomeração, sempre sem máscara, tendo contato físico com manifestantes, desrespeitando a recomendação da quarentena após retorno. E, mais grave, pelo menos desde a véspera do evento, ou seja, em 14 de março, já era pública a informação de que parte da comitiva presidencial tinha sido infectada pelo novo coronavírus. Portanto, Bolsonaro foi para a manifestação ciente de que poderia ser um vetor de propagação de um vírus até então de baixa presença no território nacional.” A longa fila de eventos em que o presidente estimulou a contaminação, à qual a representação se refere, está na pesquisa CEPEDISA/FSP/USP e Conectas Direitos Humanos.

O mundo inteiro está sendo atingido pela mesma tragédia sanitária. Mas o ponto sustentado pelos autores da ação é que aqui houve mais. “No caso do Brasil, ao evento natural somou-se a ação criminosa de um presidente da República, que expôs, desde o início da pandemia até os dias atuais, a população a um risco efetivo de contaminação”, diz o texto da representação.<br/>O procurador-geral Augusto Aras pode simplesmente ignorar o documento em sua mesa? Não pode. Ele pode arquivar, mas ele tem obrigação de tomar providências. Ignorar uma representação como essa é uma impossibilidade institucional, me explica um especialista.

Conversei com outro procurador que permanece no serviço público e perguntei que chances tem essa ação de avançar. Aras, como já disse explicitamente, acha que essa não é a sua função, apesar de ser. O problema é que o próprio Aras pode ser acusado de prevaricação, por deixar de cumprir seu dever. E pode ser acusado pelos seus colegas.

— O artigo 51 da lei complementar 75/1993, lei orgânica do MPU, diz que “a ação penal pública contra o procurador-geral da República, quando no exercício do cargo, caberá ao subprocurador-geral da República que for designado pelo Conselho Superior do Ministério Público” — explicou um procurador.

Aras não tem maioria no CSMP. A ação seria diretamente levada ao Supremo Tribunal Federal. Aras tem esperança de ser indicado para uma vaga no STF. Concorre com outros dois fortes candidatos, o ministro da Justiça, André Mendonça, e o ministro do STJ Humberto Martins. 

Bolsonaro se blindou, mas tem tido, como diz a representação, inúmeras “condutas criminosas” durante esta pandemia. E nessa ação foi acusado de crime grave.
Míriam Leitão

Paisagem brasileira

 


Entre os imbecis e os filhos da puta

Não existe argumento mais forte que o resultado. João Dória fez a parte que lhe cabia e pôs a vacina que batalhou aqui. Jair Bolsonaro não fez a dele. Ou pior, fez a que se atribuiu e resulta em que ha nos centros de saude publica toneladas de falsos remédios e nenhuma ampola do remédio que cura porque, contra todas as evidências, concentrou-se sempre em providenciar uns e nunca em providenciar o outro. Ao contrário, além de menosprezar a virulência da doença, que logo passou a dispensar “comprovação científica” porque estava matando nossos amigos e vizinhos diante dos nossos olhos leigos, dedicou-se a negar o que ha séculos todos os fatos afirmam e confirmam sobre a eficácia da vacinação como única forma de deter epidemias e, para além de salvar vidas, permitir que os países voltem a trabalhar, que é o que ele sempre disse ser a sua prioridade.

Se dos testes resultou que a vacina CoronaVac é menos eficiente do que gostaríamos que fosse, isso nada tem a ver com a parte do trabalho que cabia a João Dória. Assim como Jair Bolsonaro nada teve a ver com o resultado melhor alcançado pelos testes da vacina da Oxford em que algum lúcido do seu governo, meio à revelia dele, conseguiu apostar afinal.

Tudo isso é fato. Tudo isso é história. Nada disso é “fake news”.

Mas nem a monumental estupidez cometida por Jair Bolsonaro, nem a admiração dele pela monumental estupidez de Donald Trump, alteram em um milímetro sequer a monumental cupidez da canalha que chupa o Brasil para além do bagaço.

Os governadores que superfaturam respiradores, que montam e desmontam hospitais de campanha sem usá-los, que desviam vacinas da fila de prioridades, que roubam o ar que a gente respira, continuam sendo o que são.

O mesmo SUS onde o Brasil pobre se foi abrigar da pandemia porque esta é a parte que lhe cabe deste latifúndio, onde pelejam os heróis que perdem sempre sabotados pela multidão dos ladrões que não perdem nunca, continua sendo, como a maior das contas estatais, o maior ralo da República, porque é para comprar barões ao rei e ser eternamente aparelhada e ordenhada que conta estatal existe em todo lugar do mundo, variando apenas o grau de cumplicidade das polícias.

Os vereadores, os deputados, os senadores; os políticos de todos os calibres e de todas as famílias que inflam morbidamente o custo do funcionalismo público num país miserável para fazer “rachadinhas” continuam sendo o que sempre foram.

Os autores do “maior assalto de todos os tempos”, conforme descrito pelo Banco Mundial que mede os efeitos dos cataclismos do gênero no planeta inteiro, continuam sendo os maiores ladrões de todos os tempos, embora soltos.



Os ministros do Supremo Tribunal Federal que dão sentenças contra “atos antidemocráticos” enquanto anulam monocraticamente votações inteiras do Congresso dos representantes eleitos do povo; os ministros que soltam de ladrões eméritos da Republica a chefões do PCC; os ministros que enriquecem com suas redes de “escritórios de advocacia” familiares a ponto de manter segundas casas em euros e em dólares ganhando R$ 39 mil por mês (US$ 7.330 ou E$ 6.037 ao cambio de ontem) continuam sendo exatamente o que os seus atos e os sinais exteriores de riqueza que emitem dizem que são.

Nunca se viu ou sequer ouviu qualquer membro da lista acima propor ou batalhar pela devolução de um privilégio, por menor que fosse, para salvar vidas, para tirar mães da miséria, para resgatar bebês da fome. Os poucos que o fizeram penam o ódio eterno de seus pares. Ao contrário. Agora mesmo, enquanto você lê, passando por cima de supostas “inimizades históricas” entre “direita” e “esquerda” – a divisão horizontal que nunca suplantou o corte vertical “nobreza” x “plebeus” que rege este país – estão tramando às claras, oficialmente, a tomada do comando do Congresso Nacional contra o compromisso solene de agir unidos contra o favelão nacional para não ter, jamais, nenhum dos seus privilégios vencidos.

A máfia que nos faz andar para traz, de década em década perdida, continua sendo a máfia que, sempre por motivo torpe e sem dar chance de defesa à vítima, tem feito o Brasil mergulhar mais fundo na miséria a cada dia que passa desde que escreveu e nos impingiu goela abaixo sem referendo a constituição da privivelgiatura, pela privilegiatura e para a privilegiatura. Só varia o primeiro lugar da fila dos excluídos de qualquer ameaça das eternamente “urgentes reformas” que, afinal, nunca acontecem: ora os marajás do Judiciário e os professores das universidades públicas que comem cada um por 50 professorinhas de pobre, ora os policiais e os militares de todos os denominadores e calibres.

Tudo isso também é fato. Tudo isso também é história. Nada disso, também, é “fake news”.

O Brasil é um país disputado a tapa entre os imbecis e os filhos da puta, com uma imprensa imbecil automaticamente alinhada aos imbecis e uma filha da puta automaticamente alinhada aos filhos da puta, o que faz os imbecis cada vez mais imbecis e os filhos da puta cada vez mais filhos da puta.

É preciso quebrar essa espiral do desastre.

Não, nem um gênio, nem um iluminado nem um salvador da pátria, pelamôr!

O povo, senhoras e senhores! O povo!

Aproveitemos essa rara janela de aplauso amplo, geral e irrestrito à democracia americana antes sempre tão apedrejada. Adotemos, nós também, o remédio que ela ensinou e que todo o mundo que deu certo adotou.

Nós, o povo!

O povo que não é ninguém. O povo que não é nem um grupo em especial. O povo que não é “de direita” nem “de esquerda”. O povo que é média e que é móvel…

Só ele tem legitimidade para ser governo. Só ele tem legitimidade para mandar no governo. O resto, QUALQUER poder desamarrado da prerrogativa de sanção pelo povo por um minuto que seja é, por definição, antidemocrático, e invariavelmente predatório.

País da piada pronta

O problema, meus caros amigos, é que o futuro ser previsível aqui não adianta nada: vejam as enchentes, aquele fenômeno para o qual as cidades nunca estão preparadas apesar de ele acontecer TODO ANO na mesma época. Somos como o português da piada, que está andando pela calçada, vê uma casca de banana lá na frente e diz ‘ai, Jesus, lá vou eu escorregar de novo’. "Olha lá, vamos votar num idiota populista de novo; ih, votei no idiota; ai, meu Deus, me estabaquei mais uma vez”

Ruy Goiaba 

Fim do auxílio congestiona miséria

Em dois domingos consecutivos de janeiro, o historiador Raphael Ruvenal, de 31 anos, saiu de casa, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, às 5h45 para, depois de três horas de trem, ônibus e barca, chegar a um colégio estadual em Niterói, a mais de 50 km dali, onde foi fiscal do Enem. Apesar de as provas só terem início às 13h30, todos os fiscais deveriam se apresentar às 8h45. Liberado às 19h, Raphael chegou em casa às 22h.

Por cada um dos dias do Enem, recebeu R$ 90. Descontado o transporte, sobraram R$ 73. Se as provas tivessem acontecido dez dias depois, seus vencimentos teriam sido 25,5% menores por causa do reajuste no transporte metropolitano já confirmado para o início de fevereiro. O ganho líquido só não foi mais reduzido porque a direção da escola ofereceu lanche para a jornada de 16 horas.

Para ser selecionado como fiscal, ele teve que se submeter a um curso on-line de 20 horas e a uma avaliação. Formado, com a ajuda do Prouni, e pós-graduado em história, roteirista e escritor, Raphael está desempregado há mais de um ano e tem penado para dar aulas particulares remotamente. Os R$ 146 que lhe renderam o Enem foram sua única renda ao longo de janeiro.

Falante, articulado e lido, Raphael resume numa frase a pedreira que enfrentou como fiscal do Enem: “Recusa trabalho quem pode”. Filho de uma diarista e de um agente administrativo do Ministério da Saúde, com renda de R$ 3,5 mil, Raphael não entrou para a fila da miséria porque vive com os pais. Beneficiário do auxílio emergencial até dezembro, o historiador da Baixada Fluminense é parte das mudanças no perfil da pobreza que emergiram com o fim do benefício.

Pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole na USP e estudioso de desigualdade social, Rogério Barbosa apenas começou a mapeá-los, mas já descobriu que os novos empobrecidos pelo fim do auxílio estão no meio da distribuição de renda. Em sua maioria, são egressos do mercado formal que ainda não se recuperou e tinham, antes da pandemia, uma renda domiciliar per capita média de R$ 859. O pesquisador vê os pobres apenas de volta ao assento de baixo de uma gangorra da qual não saem desde 2015. Quem grudou no chão com o fim do auxílio, e não sabem como nem quando poderão sair, foram os mais remediados.



Morador do Chapéu Mangueira, comunidade da zona sul do Rio, Eduardo Henrique Baptista levava uma vida de classe média até o início do ano passado. Tocava, junto com a mulher, o bar do sogro, de onde a família tirava, por mês, uma renda de até R$ 4 mil. Com a pandemia, resolveu fechá-lo. Quem se manteve aberto continua faturando na comunidade, mas ele não quis ter o vírus por sócio.

Eduardo só continuou a vender água para dar conta do aluguel do imóvel de R$ 600. Para pagar o da casa em que mora, de R$ 800, se valeu mesmo foi do auxílio emergencial que ele e a mulher receberam. Em janeiro, não entrou mais nada. Para dar conta dos três filhos de 16, 11 e 8 anos, faz bicos no gerenciamento de redes sociais e na produção de eventos da pandemia, como “lives” e “streamings”, enquanto a mulher vende produtos de bronzeamento e faz sobrancelhas no Chapéu Mangueira. Mesmo com os bicos, o casal não consegue chegar na renda de R$ 1,2 mil que lhes garantia o auxílio.

Nas planilhas de Rogério Barbosa, o ano de 2020, sem auxílio emergencial, poderia ter deixado 28% das famílias com um rendimento aquém de um terço do salário mínimo per capita, que é a linha de pobreza no Brasil. E é a este patamar de miséria que o Brasil pode chegar sem a renovação do benefício, o que é mais do que o dobro da média de famílias abaixo da linha de pobreza registrada ao longo de 2020.

Como nas crises brasileiras sempre se descobre que dá para cavar mais o fundo o poço, Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, foi atrás e encontrou um alçapão: a perda dupla do auxílio e do Bolsa Família. Com a calamidade pública foi suspensa a exigência da atualização cadastral do BF para a renovação bienal do benefício. Finda a calamidade, o bloqueio de beneficiários que não se recadastrarem passará a ser automático. A exclusão de dezenas de milhares de famílias do cadastro do Bolsa Família engordaria ainda mais a fila do programa, que já passa de 1,5 milhão.

No auge do auxílio emergencial, quando o programa incluía 68 milhões de pessoas, o valor injetado diretamente na veia dos consumidores passou de R$ 50 bilhões mensais. Em janeiro, ainda há beneficiários de parcelas em atraso. A partir de fevereiro, porém, essa transferência de renda mensal totalizará apenas R$ 2,7 bilhões. Por esse despenhadeiro, rola muito mais gente do que os beneficiários do auxílio. Foi na sua vigência, por exemplo, que a indústria de alimentos, construção civil e varejo tiveram o melhor ano da história.

Em meio à renda que despenca, o secretário de Fazenda de Alagoas, George Santoro, encontrou uma caverna. O fisco alagoano já foi impactado negativamente pela arrecadação do ICMS, mas o baque definitivo só é esperado para abril. Santoro calcula que, do saldo positivo de mais de R$ 166 bilhões em contas de poupança, R$ 100 bilhões tenham vindo da poupança digital aberta pela Caixa Econômica Federal, ao longo de 2020, para cada beneficiário do auxílio emergencial. Até abril os beneficiários que tiverem feito poupança vão queimá-la. Depois disso, acabou.

Gestores públicos, parlamentares, acadêmicos e os próprios beneficiários tendem a concordar, reservadamente, que teria sido preferível um auxílio de valor mais baixo e duração mais alargada. Santoro lamenta que tenha sido perdida a oportunidade de se aproveitar esse momento da pandemia para oferecer treinamento em larga escala para melhorar a empregabilidade dos beneficiários do auxílio para o pós-pandemia.

A volta do emprego sempre foi o maior escudo do Ministério da Economia contra a renovação do auxílio emergencial. As evidências de que essas expectativas não se confirmarão, no entanto, já arrefece a rejeição ao benefício. Ao longo da pandemia Rogério Barbosa passou a confiar tanto nos dados do Caged, cadastro informado pelos empregadores, quanto numa nota de 30. Prefere se guiar pelos dados da Pnad Contínua. E aposta até um lobo-guará numa onda de demissões em massa com o fim dos acordos de redução de jornada e salário a partir da caducidade da regra no fim de 2020. O que suas planilhas mostram é desolador: uma pobreza que caminha para repetir a da crise dos anos 1980.

No Congresso, dos quatro principais postulantes, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Simone Tebet (MDB-MS), no Senado, e Baleia Rossi (MDB-SP) e Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, apenas este último se mostrava resistente ao auxílio. Temia afugentar, precocemente, o apoio que tem hoje no mercado financeiro, mas passou a aceitá-lo e a catequizar suas plateias bem postas a fazer o mesmo.

A chave virou depois que cresceu a ameaça do impeachment. É uma conta de padaria. Sem o auxílio, cresce a insatisfação e a chance de ter povo na rua. O Datafolha (22/01) registrou queda de dez pontos percentuais entre aqueles que deixaram de receber o benefício. Com 40% de rejeição na primeira grande pesquisa de 2021, Bolsonaro só perde para Fernando Collor de Mello como o presidente de pior avaliação, desde a redemocratização, no início do segundo biênio do mandato. A mesma pesquisa mostrou que sete em cada dez brasileiros não têm uma renda alternativa ao auxílio.

O impeachment, que ainda não tem apoio majoritário entre os entrevistados, passa a ser um desfecho provável se a imagem do governo Bolsonaro continuar a se deteriorar pelo duplo desgaste do fim do auxílio e da demora na vacina. É tudo o que Lira não quer. Os dois impeachments de presidente da República registrados na história nacional, o de Fernando Collor de Mello (1992) e de Dilma Rousseff (2016), foram seguidos da cassação dos presidentes da Câmara, Ibsen Pinheiro (1994) e Eduardo Cunha (2016), que comandaram a degola dos chefes da nação. Para não ser o próximo da lista, corre para evitar a todo custo o impeachment. Nem que, para isso, Arthur Lira tenha que dar um cavalo de pau no ministro da Economia, Paulo Guedes. É este o cálculo político que faz com que a chance de renovação do auxílio emergencial já estivesse mais longe.

No outro lado do balcão, de quem vive sob o cerco das planilhas fiscais, a conta não fecha. O país hoje tem um perfil de dívida mais alongado a taxas mais baixas, mas o endividamento causado pela renovação do auxílio apavora as expectativas de aceleração da espiral de juro, inflação e (mais) desemprego. O resto do discurso já se conhece. O de que se dá com uma mão e se tira com a outra, embora beneficiários e prejudicados não sejam necessariamente os mesmos.

A renovação do auxílio também mantém de prontidão a guarda sobre os deslizes fiscais do governo. Uma nova calamidade pública autorizaria a abertura de novos créditos extraordinários, mas a gestão do “Orçamento de Guerra” em 2020 mostrou que as brechas fiscais dependem do tamanho da lupa que se use - e da chuva que caia sobre o teto. No limite, a despeito dos pavores do mercado e dos riscos fiscais, o auxílio é a alternativa que resta para o presidente ganhar tempo.

A PEC Emergencial, que corta gastos do governo, volta ao noticiário como tábua de salvação para possibilitar a adoção do auxílio sem apavorar os fiscalistas. Pouco têm importado as evidências de que, quanto mais enrolado fica o presidente, mais difícil é cortar gasto público. É neste pandemônio que o auxílio emergencial ensaia sua volta. Não pela consciência de que a fome não pode ganhar a macabra corrida contra o vírus, mas pela sobrevivência política de quem está no comando do espetáculo.

A noite em que Natuza chorou

Há pouco tempo, na lista de meios já utilizados por mim, faltavam o camburão e a ambulância. Agora, só falta o camburão. Semanas atrás, incomodado por uma constipação intestinal, belo eufemismo da medicina, e pelo que me parecia um quisto em lugar incômodo, me vi no Pronto Atendimento, outra expressão mais tênue, simpática, do que pronto-socorro, que nos dava a sensação de fim de linha. Terminados alguns exames, me assustaram: “O senhor vai direto para o hospital, a ambulância já está à espera”. Pronto, meu catastrofismo, herdado de minha mãe, aflorou. A vida inteira dona Maria do Rosário, boa e piedosa, teve medo de perder a casa, hipotecada à Caixa durante uma reforma. A casa está na família até hoje. Colocaram-me em uma cadeira de rodas, apesar de eu poder caminhar. Cadeira de rodas é boa nos aeroportos, principalmente no de Guarulhos, com seus corredores quilométricos. O motorista da ambulância me devolveu o humor. “Quer com emoção ou sem emoção? Ou seja, a toda velocidade com sirenes abertas ou normal?” Não sabia se eu ia morrer logo ou se dava tempo de chegar ao Einstein, respondi: “Sem emoção”.

Sem? Quem disse? As ruas estropiadas desta cidade são um inferno para quem vai deitado, sofrendo sacudidelas que não nos jogam no chão porque nos prendem com cinturões. Eu me imaginava louco metido em camisa de força.

Por sorte (ou merecimento, não vá o psicoterapeuta Hiroshi Ushikusa dizer: pare com essa culpa), o convênio médico que a Academia Brasileira de Letras me concedeu cobre tudo e fui entregue ao doutor Alberto Goldenberg, que rápido correu com os procedimentos. Adoro esta palavra, é boa para tudo. E eu pensava o quê? Aqui terá oxigênio? Ou me angustiava: claro que não conseguirão um diagnóstico. Sou o paciente que não anima nenhum médico. Mas alguém lá em cima – pode ser até no andar superior – olha por mim.





Neste momento, liguei a tevê. GloboNews. Por que fiz? Mergulhei no horror, desumanidade, incompetência e desespero, achei que era a guerra civil, ocasionada por um governador abobalhado e pela logística do Pazuello, o militar que mais desonra as Forças Armadas, é só vexame. Tenebrosas e pungentes mortes por asfixia começaram a saltar da telinha. Tentar respirar e o ar não existir deve ser um horror. Isso de Manaus pode se repetir pelo Brasil, porque o governo garante que está fazendo a sua parte. E, quando ele garante isso, é melhor apanhar o passaporte. Falta de oxigênio deve ser uma morte tão horrorosa quando a provocada pelo gás Zyklon.

Senti-me mal, culpado (atenção Karnal), privilegiado. Estava preocupado com um coisa que acabou sem drama nenhum. E naquele mesmo momento havia pessoas sem respirar e a morrer, enquanto outras nem conseguiam enterrar seus mortos. Quantos Brasis existem dentro de um? Quanta diversidade social e financeira. Eu, privilegiado. Passei por tomografias em máquinas caríssimas, fiz exames laboratoriais cujos resultados saíam em minutos, mas em Manaus – e em tantas outras partes – tinha (e tem) gente sem respirar, sem atendimento, sem respirador e criminosamente sem vacina. Ah, e os fura-filas?

Então, pela primeira vez na minha vida, vi uma jornalista, Natuza Nery, não suportar e explodir em choro, enquanto relatava os fatos daquele inferno amazônico. Diante da crueldade, Natuza chorou. Lágrimas correram, ela parou de falar. Espectadores choraram. Fiquei travado, nunca me esquecerei. Breve cena de poucos minutos. Mas quem devia chorar, o presidente, os parlamentares, os ministros do Supremo, os generais tão invocados a todo momento, estes pouco se davam, se deram, se dão.

Agora, estou em casa salvo, escrevendo este texto pelo qual posso ser processado pelo ministro da Justiça. E a fila de mortos cresce, avoluma-se, é uma pilha, um Himalaia de pessoas. Mas tudo bem, o procurador Aras está aí para salvar a pátria, ou o presidente. Passamos dos 215 mil mortos. Toda a população de Araraquara, onde nasci. Uma cidade inteira. Gente, seres humanos que vivem, trabalham, amam, comem, bebem, se divertem, riem, choram, têm prazer e dor, são felizes ou não. Gente que vive, quer viver, porque é bom, apesar de tudo.

Temos medo. Estamos angustiados. Todos, de todas as cores e modos e religiões e ideologias e fantasias e sonhos e desejos, estão na fila para morrer. Não chegou a hora de fazer alguma coisa?

A cultura genocida do Brasil

Em menos de um ano, mais de 200 mil mortos no Brasil, em decorrência da covid-19, são mais do que os mortos de Hiroshima em decorrência da bomba atômica que os americanos explodiram sobre a cidade.

Ao colocar o presidente da República um general da ativa, especialista em logística, como ministro da Saúde, está ele dando status militar ao combate à pandemia. Justifica-se, pois, a comparação que faço.

Estamos diante de uma guerra - e guerra que, em consequência de seus efeitos socialmente colaterais, estamos perdendo. E o estamos porque até aqui fizemos e conseguimos menos do que teríamos feito e conseguido se tivessem prevalecido a ciência e os critérios e recomendações científicos na administração do problema sanitário.

Em alguma medida, o número das mortes decorrentes da pandemia reflete efeitos das recomendações de medicação sabidamente equivocada e dos maus exemplos do próprio governante nas atitudes em relação à doença.



Os que se sentiram estimulados, pelos maus exemplos vindos de cima, a violar os critérios de segurança pessoal e coletiva e preferiram peitar o vírus amontoando-se em praias, ruas e restaurantes, tornaram-se elos na cadeia de disseminação do agente da pandemia.

Os desvios de conduta têm sua raiz na contraditória concepção de genocídio subjacente ao cálculo político que aqui se pratica desde as origens do Brasil. País formado pela junção à força, própria da conquista, de etnias e raças culturalmente diferentes, acabou marcado pelo pressuposto de que o conquistador era gente e o conquistado não.

Nos tempos coloniais, nas estatísticas oficiais e nas definições da diversidade dos habitantes da época, se vê claramente a dúvida dos escrivães, na classificação da população da colônia, em relação a quem era gente ou não era. Seres de servidão ou de escravidão, suas vidas eram consideradas provisórias, limitadas à utilidade do servir e a no servir esgotar-se. As diferenças sociais indicavam diferenças na possibilidade de viver: os que viveriam tudo que tinham direito e os que viveriam apenas o que as condições lhes permitissem.

O fato de que quase tudo no país, até hoje, é insuficiente para todos decorre de que tudo está distribuído desigualmente: a suficiência para a minoria e a insuficiência para a maioria. Aqui, nem as suficiências nem as insuficiências estão democraticamente distribuídas. Nesse sentido, a própria vida não está democraticamente distribuída. De certo modo, socialmente, a economia brasileira é a economia dos restos. Gente sobrante vivendo do que sobra.

Essa cultura limitante e genocida de referência formativa do nosso comportamento se nutre de uma dificuldade estrutural própria do nosso modelo de acumulação. Para se equiparar aos países ricos, atenua os benefícios do desenvolvimento econômico ao reduzi-los ao menos do que o necessário ao nosso desenvolvimento social.

Na cultura do menos, a morte equilibra as contas. Esse tem sido um cálculo cruel subjacente a falas e decisões de responsáveis por nossos dilemas políticos. Especialmente agora. Falar, hoje, em fatalidade da morte, em face justamente de ser ela uma fatalidade administrável, mas não controlada aqui, mostra-nos o quanto está situado nas profundezas de nossa consciência o conformismo brasileiro com essa modalidade de morte.

Cultura disseminada na população, acabou se caracterizando, quando muito, pela preocupação com a vida dos próximos e apenas vaga preocupação com a vida dos distantes. Em tese, porque a deformação abrange a crença descabida de que em casa e entre parentes próximos a doença não se espalha.

Na verdade, as informações mais recentes mostram que essa imprudência é responsável pela maior incidência de contaminação no interior das famílias, devido à falta dos cuidados recomendados: distanciamento, máscara e higienização das mãos.

O caos que tomou conta do país e vai se tornando tragédia nas mortes decorrentes da covid e das públicas manifestações de competente produção da circunstância da desordem. A falta de previsão e planejamento logístico, como no caso doloroso das mortes de pacientes por falta de ar em Manaus, é fruto da omissão que tem sentido nessa mentalidade.

Na perspectiva da igualdade jurídica, dos direitos sociais e da cidadania, é incômodo, porque é muito revelador, ouvir um presidente da República dizer, em relação à peste: “Fiz a minha parte”. É afirmação de quem a boca fala apenas a língua limitada de uma sociedade de alguns, e não de uma sociedade de todos. É a língua de um burocrata, e não a língua de um governante. Não é língua de estadista, de quem vê, compreende e personifica o todo. Coisa de quem concebe o mandato como aquilo que o mandato não é.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Brasil e a dor de corno

 


Checklist eleitoral

Governar dá trabalho. Para dar certo requer prática, discernimento, experiência e habilidade. Escolher um governante com boa chance de acertar tampouco é tarefa fácil, desde que se dê importância ao ato. Donde o ideal seria que o eleitorado exigisse de si o mesmo e mais um pouco, tendo o preparo da pessoa escolhida como fator determinante numa eleição.

Não tem sido, no entanto, a regra no período de três décadas e meia de redemocratização. Com exceção de Fernando Henrique Cardoso, eleito duas vezes no primeiro turno com base na questão objetiva de gestão, o que temos visto são escolhas referidas em presunções não raro enganosas que no confronto com a realidade mais adiante geraram decepções.

Em 1989 havia 22 opções, entre as quais umas muito boas, outras com certeza bem melhores que o aludido caçador de marajás. Em 2002 deixou-se de lado a continuidade de FH representada por homem (José Serra) de inequívoco preparo em nome da ideia de que Luiz Inácio da Silva seria, afinal, a redenção dos pobres e a salvação do país.

Seguimos na mesma toada nas outras eleições, levando à Presidência a “mulher do Lula”, de novo em detrimento de José Serra, que já havia dado inúmeras demonstrações de competência no ramo de governo, mas era “muito antipático” para nossos padrões de camaradagem. Até que chegamos a Jair Bolsonaro, cujas credenciais serviam no máximo para lhe assegurar lugar no panteão das figuras folclóricas, mas sem atuação consistente em 27 anos de vida no Congresso com destaque meramente caricato.



Diante de tal jornada de escolhas guiadas pelo impressionismo de ocasião, não é de estranhar que o Brasil tenha destronado pela via constitucional dois presidentes e já esteja pensando em impedir um terceiro, no espaço de menos de trinta anos. Isso fala dos mandatários, mas fala, sobretudo, dos respectivos eleitorados.

Não existe uma receita infalível de bom governante, mas existe uma série de atributos a ser observados como uma espécie de checklist para os cidadãos dispostos a almejar a condição de diligente eleitor.

Pensei em algumas dessas características. Deve haver muitas outras que cada um a seu gosto e consciência pode gravar na mente. Colecionar como precioso patrimônio a ser acionado na urna junto com a tecla do nome de sua escolha para governar, pensando numa durabilidade mínima de quatro anos.

Vamos a elas sem juízo de valor sobre a ordem de entrada em cena, porque tudo é importante quando se trata de transferir temporariamente a outrem o destino da nação. Do que é feito um(a) presidente?

1 • De capacidade de liderança.
2 • Da aptidão para que seus atos e palavras sirvam de exemplo e, assim, estabelecer um padrão elevado de ação e pensamento.
3 • De habilidade para detectar, aplacar e/ou evitar crises.
4 • De vocação para promover o entendimento. Vale para o ambiente político e vale para o trato com a sociedade.
5 • Da posse de referências humanitárias de vida.
6 • De boa compreensão da realidade.
7 • Do conhecimento acima do razoável sobre como funciona o mundo.
8 • De perfeito discernimento a respeito dos limites entre o público e o privado.
9 • De paciência extrema quando necessário, tolerância zero se for preciso e sabedoria para distinguir as duas situações.
10 • Da reverência absoluta, religiosa mesmo, à Constituição.
11 • De compreensão do peso e do papel de cada uma das instituições.
12 • Das boas maneiras, dos modos lhanos.
13 • Do respeito ao uso correto do idioma nacional.
14 • Da compreensão estreita sobre as limitações do poder.
15 • Do compromisso inequívoco com o bem-estar coletivo.
16 • De astúcia e conhecimentos suficientes para reunir as melhores pessoas na formação de equipes e saber conduzi-las.
17 • Da serenidade para se conter diante das permissividades do poder.
18 • Do talento para inspirar e motivar as pessoas.
19 • Da propensão para a o exercício da amabilidade combinada com firmeza.
20 • Do senso de urgência para as necessidades do público.
21 • De coragem para fazer o que é preciso, ainda que ao custo de enfrentamentos à primeira vista impopulares.
22 • Da consciência da autoridade inerente ao cargo sem resquício de concessão ao autoritarismo.
23 • Do apreço pela transparência.
24 • De resistência a pressões indevidas.
25 • Da disposição de ceder a demandas pertinentes, ainda que ao custo de recuos.

Desnecessário que o candidato gabarite o teste. Mas inaceitável que não se enquadre em nenhuma das alternativas.

O nó tático de Bolsonaro

Nos dias que correm, não há razão alguma para otimismo. Como um técnico de futebol que faz uma aposta em meio a um jogo que se mostrava complicado, Bolsonaro deu um nó tático nas oposições. Seus últimos lances são de vitorioso, antes do término da contenda. Sua “guerra de posições” começa a dar resultados práticos e, por isso, ele pode voltar a vociferar como dantes, “sem medo de ser feliz”, com a galera em coro vociferando: “mito, mito, mito”.

Fato é que Bolsonaro invadiu o espaço parlamentar e conquistou apoio para sua blindagem e sua família. Conquistou posições onde antes não punha os pés: na cúpula do poder Legislativo. Quem fez isso para ele? O general Luiz Eduardo Ramos, que comanda a Secretaria Geral de Governo, e os líderes do Centrão. Tá tudo dominado. A vitória na presidência das duas Casas, como já se disse, é a antessala da eleição de 2022 e vai implicar em imensos desafios para as forças democráticas.


Este movimento conseguiu quebrar a espinha dorsal de quem se opunha a Bolsonaro no Parlamento: Rodrigo Maia. O DEM rachou e Maia viu sua liderança esfumaçar, combatido pela direita e pela esquerda. O movimento articulado por Maia alguns meses atrás, que buscava articular o MDB e o PSDB, não conseguiu sustentação entre os partidos e os parlamentares, mostrando como são frágeis suas convicções democráticas bem como suas perspectivas de futuro, superando o bolsonarismo. No mais, o de sempre: PSDB indefinido, PT oportunista, Psol confuso e o resto como barata tonta. E os partidos do Centrão negociando freneticamente tudo com os representantes do Planalto. Desta maneira, a sociedade não tem uma liderança em quem mirar e o Parlamento será capturado integralmente por Bolsonaro.

Como corolário do pior dos mundos, as forças democráticas mostram-se inteiramente desarticuladas, não confiam umas nas outras, e só pensam na manutenção dos seus currais eleitorais por Estado em futuro breve, e quando muito, vislumbram candidaturas presidenciais para imantar suas permanências na vida político-partidária.Por outro lado, a lógica das fake news, ao contrário do que muita gente imagina, não arrefeceu.

Comandada pela confusão midiática que Bolsonaro mantêm viva contra a vacina e a vacinação, conseguiu-se emparedar a principal liderança de oposição que demonstrou capacidade de enfrenta-lo na questão da pandemia e da vacina, duas questões centrais da hora presente na sociedade brasileira: o governador de São Paulo, João Doria Jr. Depois de breves vitórias, Doria foi e está sendo bombardeado dia após dia, pela direita e pela esquerda, pelas fake news e até pela mídia tradicional.

A lógica da velha política se sobrepôs a tudo, sem que a sociedade pudesse reconhecer isso. Esse foi o nó tático de Bolsonaro: ele confiou na ação desarticuladora da frágil cultura política democrática entre nós. Na sociedade, instalou-se uma luta de todos contra todos, demonstrada na questão da vacina; no Parlamento, retomou-se o toma-lá-dá-cá, com a liberação de verbas e cargos. É a política como negócio pessoal que volta à tona uma vez que se entende que a sociedade é assim e que não reagirá diante desse descalabro.

Hoje, Bolsonaro xinga e ofende a imprensa, desdenha dos políticos (porque a sociedade não quer mesmo saber deles), descuida das pessoas e pede a elas que vivam radicalmente seus interesses individuais, dispensando qualquer proteção do Estado. Mas este está garantido para os seus negócios privados que lhe garantirão a manutenção no poder. A democracia existe por inércia, vai sendo conspurcada, dilacerada, dilapidada em seus valores. O Brasil vai perdendo o pouco que tinha de noção coletiva e de República, de bem-comum.

O impeachment voltou a fazer parte das vocalizações da conjuntura, mas todos sabem, com maior ou menor consciência, que ele não é mais do que uma bandeira agitativa sem possibilidade real de imposição; faz parte de um discurso da indignação (justa, mas impotente). Por isso, não há motivo algum para otimismo, embora também não haja razão para se cair no desespero; a política demanda realismo e acima de tudo reconhecimento do terreno e das circunstâncias. Muito provavelmente, viveremos derrota atrás de derrota até conseguirmos encontrar um novo rumo. E isso pode demorar anos.

Novas definições para Bolsonaro

Na quarta-feira, arrolei 24 epítetos para definir Jair Bolsonaro, recolhidos por mim nos mais diversos veículos. Alguns leitores acharam a lista insuficiente. Um deles, meu amigo João Augusto, grande produtor musical, me mandou sua própria lista, que ele começou a compilar já no dia da posse de Bolsonaro. Eis:



Abjeto, abominável, abutre, achacador, acintoso, alimária, amoral, animal, asno, asqueroso, assassino, atroz. Babaca, baderneiro, belicista, beócio, besta-fera, biltre, boçal, boca-suja, bosta, brega, bronco, bufão. Cabotino, cafajeste, cafona, canalha, canastrão, cancro, capadócio, carbonário, cascavel, catastrófico, cavalgadura, charlatão, chulo, cínico, complexado, contagioso, crasso, cruel. Daninho, dantesco, debochado, degenerado, degradante, delinquente, demagogo, depravado, desbocado, desequilibrado, desleal, déspota, desprezível, desqualificado, destrutivo, desumano, doente.

Ególatra, embusteiro, energúmeno, estafermo, esterco, estúpido, execrável. Falso, fanfarrão, farsante, frio, funesto. Grotesco. Hediondo, hiena, hipócrita, histérico, horroroso. Ignóbil, imbecil, imoral, ímpio, indecente, indecoroso, indefensável, indigno, inescrupuloso, infame, iníquo, insano. Jerico, Judas, jumento. Lesivo, lixo, lunático. Malévolo, malfeitor, mesquinho, mitomaníaco, monstruoso, mula sem cabeça. Narcisista, nauseabundo, necrófilo, nefasto, néscio, nojento.

Obsceno, obscurantista, odioso, oportunista. Paranoico, parasita, pária, parvo, patife, peçonhento, pernicioso, perverso, pilantra, pornográfico, primário, pulha, pústula. Rastaquera, recalcado, reles, repelente, réprobo, repulsivo. Safado, selvagem, sociopata, sórdido. Tétrico, tirano, torpe, tosco, traíra, trambiqueiro. Ultrajante. Vândalo, vigarista, vulgar. Xarope. Zoilo.

Com o perdão dos assassinos, necrófilos, bestas-feras e quaisquer categorias que se sintam ofendidas.

Pergunta que não cala: a quem os militares devem obediência?

O presidente da República manda a imprensa enfiar latas de leite condensado (você sabe onde) e desce ao nível mais baixo da cadeia alimentar dos seres vivos. Para manter o mesmo diapasão: alguém aqui imaginou ver general e coronéis interventores do Ministério da Saúde fazendo c* doce para comprar mais vacinas do Butantan?

Logo as únicas que o país produz até agora no decorrer de uma pandemia que não para de piorar. Não passa pelo terreno baldio que eles carregam em cima do pescoço que, se demorar a comprar, a China e a Sinovac não terão mais insumos para fornecer este ano? E que a produção é limitada e todo o mundo corre atrás?

Existe corte marcial no Brasil, como em todos os países do mundo que têm forças armadas, para julgar crimes de guerra e contra a humanidade? Combater a pandemia é um tipo de guerra. Angela Merkel, chanceler da Alemanha, disse que a pandemia é o pior evento enfrentado pela humanidade desde a Segunda Guerra.



O povo brasileiro ainda faz parte da humanidade? Os generais e coronéis do Ministério da Saúde não enfrentarão nenhum julgamento? Ou vamos, de novo, anistiar geral e criar outra Comissão Nacional da Verdade para expor seus crimes daqui a cinquenta anos em cima de uma montanha de cadáveres?

O pretexto da luta contra o comunismo absolveu no passado torturas e mortes. E agora? Alegar “obediência devida” a um superior hierárquico no limite da insanidade absolverá outra vez? O Exército acredita mesmo que está desvinculado do ministério militarizado da Saúde e comandado por um general da ativa?

Se o Brasil estivesse em um conflito bélico, e as vidas dos soldados corressem grave risco, os generais refugariam mais munição e armamento? Pediriam quatro meses para pensar a respeito? Os soldados ainda teriam uma vantagem sobre nós: poderiam desertar e sumir no mundo. Nós não temos para onde fugir.

As Forças Armadas brasileiras juram obediência à Constituição e lealdade ao povo ou a um indivíduo que, por palavras, exemplos e ações induz à morte os que o elegeram e também os que votaram contra ele?