domingo, 11 de dezembro de 2016

O ano da encruzilhada

E se nunca pudermos sair de 2016? Esta pergunta me impressionou, embora fosse apenas uma piada. O ano foi tão intenso que parece um longo pesadelo. Talvez tenha sido intenso para todos, mas aqui no Brasil, com a profunda crise econômica e um toque de realismo fantástico, 2016 foi mais assustador. Às vezes penso que toda essa intensidade não se deve apenas ao ano que termina. Num mundo conectado, muitos de nós consultam a internet de 15 em 15 minutos e ficam desapontados quando não acontece nada.

Nossa demanda por fatos novos parece ter aumentado. O Brasil tem sido generoso, embora os fatos sejam quase sempre negativos e não nos levem, necessariamente, a lugar nenhum. Ferreira Gullar dizia que a vida não basta, daí a importância da arte. Goethe, por sua vez, dizia que a arte é um esforço dos vivos para criar um sistema de ilusões que nos protege da realidade cruel. Dentro de um universo mais amplo, a política também deveria ser um sistema de ilusões que nos ampara da brutalidade do real. Carmem Lúcia, de uma certa maneira, expressou isto quando disse ou democracia ou guerra, referindo-se a uma possível falência do estado, o que nos jogaria numa batalha de todos contra todos.
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Navegamos em águas tempestuosas. O processo político que era destinado a melhorar nossa convivência tornou-se, ele mesmo, uma expressão da realidade mais tosca e brutal. Renan Calheiros foi para a cama com sua amante e até hoje estamos tentando tirá-lo do cargo, não por suas aventuras amorosas, mas por um enlace mais perigoso entre empreiteiros e políticos. Ele não cai por uma paixão proibida, mas sim porque defende o vínculo com os financiadores das campanhas, riqueza pessoal e até dos seus momentos românticos. Renan é um general da luta contra a Lava-Jato, embora Lula reclame esse posto e ninguém lhe dê muita atenção no momento. O papel histórico de Renan foi coordenar uma reação às investigações, usando como pretexto a lei de abuso de autoridade. Mesmo se um general cair, e nada mais sustenta Renan exceto gente correndo da polícia, a batalha final entre um sistema de corrupção estabelecido e as forças que querem destruí-lo ainda não chegará ao final.

E é essa batalha, com a nitidez às vezes perturbada pelas peripécias individuais, que está em jogo. Na verdade, ela está, nesse momento, apontando para uma vitória popular. Quando digo vitória, digo apenas tomada de consciência. O sistema de corrupção que a Lava-Jato enfrenta, com apoio da sociedade, é muito antigo e poderoso. E essa batalha vai lançar luz na antiguidade e no poder da corrupção no Brasil. O próprio STF é um órgão do velho Brasil, organizado burocraticamente para proteger os políticos envolvidos. Jornalistas que combateram o governo petista agora hesitam diante da manifestação popular. “Vocês estão fortalecendo o PT”, dizem eles. Como se a ascensão de um presidente do PT, um partido arrasado nas urnas, conseguisse deter um projeto de recuperação econômica, já votado pela maioria. Se 60 senadores que votaram no primeiro turno não se impõem sobre Jorge Viana é porque são uns bundões ineficazes e não mereciam estar onde estão. Infelizmente, a coisa é mais complicada. Usaram de tudo para combater a Lava-Jato. Agora dissociam a luta contra a corrupção da luta para soerguer a economia. E dizem que uma prejudica a outra. Coisas do Planalto. Não importa muito se Renan fica alguns dias, se Jorge Viana vai enfrentar os senadores e a realidade nacional. O que importa mesmo é o fato de que a sociedade está atenta, acompanha cada movimento, e não se deixa mais enganar com facilidade.

Um personagem do realismo fantástico, Roberto Requião, disse que os manifestantes deveriam comer alfafa. Os que não gostam de ver povo na rua argumentam sempre com mais cuidado. Requião foi ao ponto, pisando sem a elegância de um manga larga ou um quarto de milha. As manifestações incomodam. Revelam uma sociedade atenta, registrando cada detalhe das covardes traições dos seus representantes. Ela teve força para derrubar uma presidente. Claro que precisará de uma força maior para derrubar todo o sistema de corrupção que move a política brasileira. Um sistema muito forte. Um STF encardido, incapaz de se sintonizar com o Brasil moderno; um tipo de imprensa que atribui o desemprego e a crise econômica à Lava-Jato e não aos equívocos e roubalheira do governo deposto; e, finalmente, os guardiões de direitos humanos dos empreiteiros e senadores, incapazes de se comover com a vida mesmo e as pessoas que são esmagadas pelas autoridades.

Está tudo ficando cristalino e esta é uma das grandes qualidades de crises profundas. Se o Congresso quiser marchar contra a vontade popular, que marche. Se o Supremo continuar essa enganação para proteger políticos, que continue. Importante é a sociedade compreender isto com clareza. E convenhamos: se quiser tolerar tudo, que tolere. A chance de dar uma virada e construir instituições democráticas está ao alcance das mãos. Com um décimo da audácia dos bandidos, as pessoas bem-intencionadas resolvem essa parada.

Fernando Gabeira

Desobediência civil

A História recente do Brasil se caracteriza pela substituição de uma ditadura de direita, que controlava o país na ponta da baioneta e explorava a sociedade auferindo “vantagens competitivas” para grupos empresariais “amigos” do regime, por um mecanismo de dominação mais suave, em que a democracia e as eleições diretas legitimam a exploração econômica da sociedade por grandes fornecedores do Estado associadas a quadrilhas travestidas em partidos políticos.

Uso o termo “mecanismo de exploração” porque, de fato, opera no Brasil um mecanismo amplo e recorrente, empresarial e juridicamente estruturado, que tem a função precípua de desviar recursos públicos. Os recursos públicos, evidentemente, nada mais são do que uma parcela do trabalho e do esforço do cidadão comum, no caso, o explorado.

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Este mecanismo funciona da seguinte forma:

Os partidos ou as coligações de partidos políticos que vencem as eleições indicam seus operadores para cargos-chave da administração pública. A função dos operadores é costurar acordos com cartéis e empresas fornecedoras de bens e de serviços para o Estado, de modo a superfaturar os orçamentos do setor público (Nestor Cerveró é um exemplo de operador).

O direito de indicar um operador para um cargo público é a principal moeda de troca dos partidos políticos brasileiros, sendo parte essencial das relações entre o Poder Executivo e o Legislativo em todas as esferas do poder público. Uma diretoria da Petrobras ou uma presidência do BNDES valem muito. Já o controle do Daerp, Departamento de Água e Esgoto de Ribeirão Preto, vale menos. Mas vale alguma coisa. O mecanismo de exploração a que me refiro não abre mão de um único orçamento público, por menor que ele seja.

Os orçamentos públicos superfaturados geram uma receita “extra” para as empresas fornecedoras do Estado. Essa receita, apesar de ser fruto de corrupção, entra legalmente na contabilidade dessas empresas. Todavia, parte dela pertence aos políticos e precisa ser repassada para eles. O repasse acontece de três formas:

1) Parentes, prepostos e amigos dos políticos formam empresas que prestam serviços para as fornecedoras do Estado. Em troca desses “serviços”, recebem espantosas remunerações, que nada mais são do que o kick-back da corrupção. (A GameCorp, do filho de Lula, faturou mais de R$ 350 milhões entre 2005 e 2017. O escritório de advocacia da mulher de Sérgio Cabral faturou R$ 35 milhões durante os mandatos do seu marido). Note que não há caixa dois nesse esquema. É tudo por dentro.

2) Por meio da doação “legal” de recursos para campanhas políticas. Nesta modalidade, também não há crime fiscal atrelado ao crime de corrupção. Esse tipo de repasse é particularmente perverso, pois aufere vantagem competitiva a políticos corruptos e transforma campanhas políticas em atividades criminais. (Muita gente boa defende Dilma Rousseff alegando ser este o seu único crime...)

3) A lavagem de dinheiro é, de longe, a forma de repasse que movimenta o maior volume de recursos. Tanto assim que demanda mão de obra especializada. O doleiro, profissão peculiar do Brasil, tem a função de montar empresas fajutas, de emitir notas frias para retirar recursos da contabilidade das fornecedoras do Estado, e de distribuir esses recursos para os políticos. Organiza entregas de maletas com dinheiro vivo, paga despesas para políticos (e para suas amantes), viabiliza aportes de caixa dois em campanha eleitoral e faz remessas para empresas offshore. Um verdadeiro concierge do crime.

Essas três formas de kick-back constituem, de longe, a maior parte da receita dos políticos e de seus partidos. (Note o absurdo dessa frase, que, no entanto, é verdadeira). Note ainda que o mecanismo descrito acima obedece um padrão de fractal, e se repete em todas as esferas do poder público “democraticamente constituído” no país: no governo federal, nos 26 estados , nas 5.570 cidades e em suas respectivas Assembleias Legislativas.

Obviamente, um sistema de exploração com tal extensão e profundidade só pode existir mediante a adoção de legislação especializada (o foro privilegiado é apenas um exemplo) e com a conivência e a participação do Poder Judiciário. De fato, a aceitação da corrupção sistêmica pelo Poder Judiciário sempre foi uma característica básica da democracia brasileira. Tanto assim que, desde 1988, mais de 500 parlamentares foram investigados pelo STF, tendo a primeira condenação ocorrido apenas em 2010. A absolvição de políticos por prescrição de pena, simples e cinicamente porque o STF não teve tempo para julgá-los, é lugar-comum. Assim como, tenho certeza, é lugar-comum a corrupção de magistrados das mais altas Cortes do país.

O mensalão e a Lava-Jato representam quebras desse paradigma. Resulta daí a sua importância histórica, e resultam daí, também, os ataques da classe política ao Poder Judiciário, evidenciados em projetos de lei feitos para coibir juízes e procuradores e em proposta de anistia para crimes atrelados ao caixa dois.

Desde o início de nossa incipiente democracia, bilhões e bilhões de dólares foram desviados dos cofres públicos, afetando negativamente a Educação, a Saúde, a Segurança Pública e a economia, e contribuindo para a pobreza e para a fome de milhões de brasileiros. Os nossos exploradores “democráticos”, empresários e políticos, têm sangue nas mãos. Mataram muita gente. Destruíram sonhos e desperdiçaram talentos.

Ao manter um cidadão, réu de crime de peculato e que se recusou a cumprir ordem judicial, solto e presidente do Senado, o STF confirmou que é subserviente ao mecanismo de exploração descrito acima, lançou sérias dúvidas sobre a honestidade de seus membros e aboliu a vigência da lei para os poderosos. Isso em plena luz do dia. Difícil imaginar argumento melhor a favor da desobediência civil, a tese de que um indivíduo pode, ou mesmo deve, se recusar publicamente a cumprir a lei quando confrontado por um Estado inerentemente injusto.

O filósofo americano Henry David Thoreau praticou a desobediência civil quando se recusou a pagar impostos para um governo que considerava a escravidão legal. A História, diga-se de passagem, deu-lhe razão. Pois bem. O explorado do sistema político brasileiro, o cidadão comum que não tem Segurança Pública, que convive com um sistema de Saúde caótico e que não tem acesso à Educação, mas que paga seus impostos regiamente, deve estar se perguntando: se os políticos roubam o meu dinheiro com a conivência do Judiciário, se a lei não se aplica a todos, por que diabos se aplicaria a mim?

José Padilha

A conta chegou

Arrepio-me com a ideia. As piores convulsões previstas ainda não começaram. Falta dar publicidade a uma avalanche de delações e denúncias que deixarão o cenário vazio de figurões. Novos entrarão, mas quem e com qual experiência?

As revelações das empreiteiras, as infindáveis listas de políticos deixam claro que os partidos são muitos, por um só esquema de corrupção, movido por recursos subtraídos aos cofres públicos.


A intervenção cirúrgica para retirar os males e tumores é inevitável para restaurar a saúde. Contudo, existe um prazo intransponível para manter imobilizado o paciente (o sistema nacional) com a barriga aberta, sem que se torne um cadáver.

A queda de Dilma parou o país por meses a fio; em seguida surgiu a esperança de recuperação, de virar uma página e iniciar a nova vida econômica e social.

O clima positivo em volta do Planalto, apesar das escolhas de ministros contestáveis, se deteriorou rapidamente sem tirar o paciente da mesa ou melhorar seus sintomas.

O cirurgião Michel Temer perdeu os ajudantes recrutados nos primeiro embates, e outros estão na fila do abate. Com isso não conseguiu acertar qualquer ponteiro da economia, mantendo o quadro de forte recessão.

Infelizmente, a maior preocupação, como sempre, no Planalto, foi distribuir ministérios aos partidos, sem avaliar as vocações, a competência, sem dar uma orientação ou metas.

Cabeças brilhantes não entram nesses ambientes dominados por banqueiros e mequetrefes especialistas em especulação. Manteve como primeiro mandamento a engorda de partidos, e não o povo. A decepção e o descrédito cresceram, assim, com Temer.

O momento é grave. A economia brasileira parou de crescer e desde 2013 despenca em ritmo assustador, nos últimos dois anos repetiu a queda de 3,6%. Minas Gerais, um dos Estados mais vastos, populosos e ricos da Federação, conseguiu despencar pela segunda vez em 5%.

Quem tenta fazer sobreviver atividade nessa realidade de retrocesso enfrenta a burocracia mais esquálida do planeta. Que não é fator partidário, mas cultural em Minas.

As figuras são sempre as mesmas. Na Assembleia permanece o quadro de engorda, repetindo o Congresso. Todos alimentados pelos mesmos contribuintes esfolados. Nada justifica o que custam à nação, produzindo as causas de atraso, desemprego e miséria.

No painel ao lado do paciente os medidores sinalizam o agravamento. Mesmo assim, as medidas em discussão nos Parlamentos são estéreis, sem sinal de mudança. Na falta de ideias e programas, sugiro que se discuta uma forma de tornar crime hediondo a distribuição de cabides de empregos, de favores, de verbas sem utilidade para a nação.

A sociedade puxa as mudanças

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A pergunta teima em mexer com a consciência dos mais indigna­dos: pode-se, afinal, esperar por um processo de depuração da vida parlamentar sob o empuxo da Operação Lava Jato, o maior processo de investigação da história brasileira? Ou será que a crise institucional que abala a imagem dos Poderes da República não provocará mudanças nos padrões funcionais e nos costumes dos protagonistas da política? Magistrados de alto coturno darão um basta às estocadas recíprocas como as que vimos nos últimos dias? Continuarão a se manifestar fora dos autos em matérias que estão julgando? Os nossos representantes despertarão de sua letargia e adentrarão firmes e determinados no território da reforma política?

A resposta, convenhamos, é complexa e, de pronto, esbarra na lição de Maquiavel: “Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxi­to ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas. Na verdade, o reformador tem inimigos em todos os que lucram com a velha ordem e apenas defensores tépidos nos que lucra­riam com a nova ordem.” Sejamos realistas. A crise, como se sabe, é uma chave que abre oportunidades, mas, convenhamos, em se tratando de Brasil, as coisas não são bem assim. Demoram a mudar.

São poucos os reformadores que habitam a seara parlamentar e a grande maioria luta para lucrar com a manu­tenção de velhos métodos. O fisiologismo está em seu DNA. Entre os que apregoam mudanças, uns apontam para medidas pontuais e momentâneas, cujo escopo não abriga a matriz das mazelas (o patrimonialismo), e outros nem sabem por onde se chega ao caminho dos avanços.

Os traços no horizonte

O que, nesse momento, se pode divisar no horizonte? Ligeiros traços. O primeiro mostra que as cores do espectro político não são mutantes, ou seja, a grave crise político-institucional será seguida de outra. As placas tectônicas se acomodam durante um tempinho até que ocorra novo terremoto. O segundo sinal aponta para o abismo entre o cidadão e os políticos. Mas isso não deve ser entendido como alienação. Ao contrário. Indignado, revoltado, o brasileiro de todas as classes refugia-se em seus núcleos de referência- associações, grupos, movimentos – formando cadeias de força que, mais adiante, encherão as urnas com votos surpreendentes. Dedução: no meio do pântano nascem flores. O lamaçal da política acaba criando um antídoto contra as impurezas. A sociedade cidadã adquire muita força.

A imagem do cabo de guerra serve para caracterizar nosso estágio civilizatório. De um lado, vêem-se grupos cívicos puxando o cabo na direção do futuro; de outro, braços contrários tentam jogar o país no buraco do passado. A imagem de Sísifo, o personagem mitológico que não conseguia depositar a pedra ao topo da montanha, vem a calhar. O Brasil não quer conviver com este flagrante. A limpeza das manchas da paisagem; a condenação e a prisão de poderosos; a assepsia geral na política; a transparência em contratos públicos; a melhoria de serviços; o zelo, a disciplina, a meritocracia, a rapidez no atendimento, o planejamento – essas são as tintas da paisagem vislumbrada pelos cidadãos. Portanto, a ilustração que se quer não é a de Sísifo fracassado, mas a de um caminhante corajoso que consegue realizar seu feito.

O que se pretende é afastar, de uma vez por todas, a imagem do eterno retorno. A repetição do maçante exercício de expectativas frustradas brutaliza os instintos do corpo social. Basta de patinar no mesmo lugar. É mais do que hora de aliviar o peso sobre os nossos ombros. O ciclo de banalização de escândalos por que passa o País faz sumir a confiança nas instituições. Urge resgatar a alma da Nação, o amor à Pátria, o sentimento de inclusão e de identificação com os símbolos nacionais, o orgulho de pertencimento a uma sociedade que clama por padrões éticos e mo­rais. E assim dá para ver a esperança renascendo, aqui e ali, ainda em conta-gotas, sob o empuxo de denúncias e investigações que invadem espaços na mídia. Todas as camadas – com acesso à TV e ao rádio – enxergam os dejetos que escorrem da arquitetura política.

A força das ruas

As conexões entre pessoas e grupos colaboram para produzir o milagre da natureza: flores nascendo no meio do lamaçal. A zika que assola os habitantes dos Poderes acende, por sua vez, os sistemas de alerta dos cidadãos. A conscientização social se eleva, impulsionando um poder centrípeto (a força das ruas) que fustiga o poder centrífugo – este que agrega os três Poderes do Estado. A pressão das margens sobre os poderes centrais acaba forçando protagonistas da política a mudar comportamentos e atitudes. O clamor das galeras passa a ser ouvida.

Cristaliza-se a convicção de que a desobediência às leis e a infração a valores morais e princípios éticos nascem e se desenvol­vem na roça dos próprios autores das leis. Mas o contrassenso é recebido com apupos, agitando ânimos e disparando mecanismos de repúdio. Críticas correm para cima, para baixo e para os lados. A rebelião contra a velha política é generalizada.

Portanto, da percepção aguda de que está sempre vendo as mesmas coisas e da observação de que os tonéis da corrupção estão cheios até a boca, o brasileiro extrai a argamassa que aumenta sua descrença no sistema político. Os fatores se somam: escânda­los em profusão, repercussão na mídia, impunidade, corporativis­mo. A repulsa se expande.

As redes sociais ganham volumosa expressão de contrariedade. O fenômeno das flores do pântano é o alento da alma cívica.

Por último, vale lembrar o preceito da ciência política pelo qual as grandes mudanças da História são produzidas quando os favorecidos e apaniguados do poder não têm a capacidade para transformá-lo em for­ça, enquanto os que dispõem de pequeno poderio aproveitam essa capacidade ao máximo para convertê-la em força crescente. É o que estamos começando a ver por nossos trópicos. Se é mínima a vontade do andar de cima para dar um passo mais arrojado, sobra disposição do andar debaixo para um caminhar ligeiro. No jogo de xadrez, o peão, às vezes, tem mais força que o bispo.

Deu a louca nas redações!

Desse jeito, não tem jornalista que aguente. É tanto vazamento de delações da Odebrecht que a gente enlouquece e fica sem saber como assimilar e retransmitir essas denúncias que atingem diretamente os atuais locatários do Palácio do Planalto e a classe política como um todo. Somente na Odebrecht há 77 delatores que estão prestando depoimentos ao mesmo tempo, num exasperante torrencial de informações que parece um nunca-acabar.

São acusações importantíssimas, nem importa mais saber que partido político está recebendo em dinheiro vivo, qual é o parlamentar ou governante agraciado com propinas, nem mesmo quais foram as Medidas Provisórias negociadas por trinta dinheiros. Tudo se mistura, a confusão é geral, nenhum ser humano consegue processar tantas notícias ruins ao mesmo tempo.


Em ritmo de “urgência urgentíssima”, expressão inventada no Congresso para justificar qualquer patifaria, é preciso inventar logo um programa de computador que possa ajudar os jornalistas a organizar essas matérias.

Enquanto os gênios da informática não recebem o chamado “insight” para colocar o ovo em pé, vamos sugerir que os jornalistas tentem selecionar e organizar as denúncias de acordo com sua ordem de importância. A primeira providência é fazer a relação dos estelionatários que infestam a política e a administração pública, listando aqueles que efetivamente se corrompem e levam propinas. Estes devem ser considerados os criminosos preferenciais, de maior periculosidade.

Simultaneamente, vamos selecionar os políticos que apenas receberam doações de caixa dois para campanhas eleitorais, dividindo-os em duas categorias: 1) aqueles que entregaram o dinheiro vivo aos tesoureiros de campanha; 2) os espertinhos que simplesmente embolsaram o dinheiro – total ou parcialmente – e devem passar a ser relacionados na lista principal dos receptores de propinas.

Com isso, poderemos reduzir um pouco a confusão em que nos metemos, e os leitores terão melhores condições de entender o que realmente está acontecendo.

`Paisagem brasileira

JoséMaria de Almeida,Conservatoria, ost, 50x69cm, 1960
Conservatória (1960), José Maria de Almeida

Aos que se angustiam no Natal

Antes de mais nada, sou solidário a eles, e mais, compreendo-os perfeitamente. Quase diria que uma parcela dos que não suportam o Natal é quase genética, um gene “antidatismo”, que muitas vezes se estende para odiar também o dia de aniversário, o Carnaval, o Dia das Mães ou dos Pais. E, para espanto dos festeiros, essa turma não curte nem mesmo o famoso réveillon, aparentemente uma excitação universal e global, a ponto de ser comemorado 12 horas seguidas, dependendo do fuso horário; as TVs vão mostrando fogos estourando de Pequim, Sidney, Moscou, Paris e... Copacabana.

É bem verdade que o Natal não é mais o mesmo. Perdeu a magia e o encanto, com uma superpopulação de Papai Noel que Deus me livre! Dos sofisticados shoppings, onde decorações exuberantes estimulam filas de consumidores e selfies intermináveis, até os Papais Noéis mambembes de pequenos comércios, ou os populares como os da 25 de Março, do Saara, ou da rua dos Carijós. Magros, barba branca mal-ajustada e sininhos empunhados por desempregados ou biscateiros, obrigados a sorrir para as cada vez mais novas e raras crianças ingênuas que ainda se extasiam com o Bom Velhinho.

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Que pena que tais crianças estejam em extinção e, para os pais, seja difícil explicar tantos Papais Noéis que, somados ao bombardeio de comerciais onde o bom e banalizado “velhinho” e a sacanagem dos primos mais velhos, fica difícil acreditar em chaminés (ainda existem?), pés de meia e os antiquados trenós. E o que dizer das indefectíveis musiquinhas de Natal, poluindo nossas memórias afetivas? Chegamos à conclusão de que o romantismo, a ingenuidade e o onirismo estão em baixa. Ok, o Natal é bipolar!

Parte da população assalta o comércio, em uma compulsão consumista que beira ao doentio. São os “natalmaníacos”: decoram as casas, árvores com enfeites, luzinhas no jardim, na varanda. Organizam festas homéricas, e haja castanha, nozes, perus, farofa de ovos, pernis, frutas diversas, foguetes, e as músicas “noite feliz, noite feliz”. Enquanto isso, os angustiados e deprimidos ficam loucos para acelerar o tempo, submergir no dia 22 de dezembro e reaparecer no dia 3 de janeiro. Alegam que tais festas lembram pessoas já falecidas, ou brigas que dividiram famílias, ou Natais de privação, ou que remetem a perdas, e sei lá mais o que... O certo é que essas duas tribos, os que amam e odeiam o fim de ano, se contrastam, muitas vezes se cobram, e não se entendem. A todos, eu digo que a arte da compreensão é o humilde aprendizado de trocar de lado com o outro.

A diversidade é uma dádiva, e ninguém está certo nem errado. Aos que se entristecem nessa época, algumas dicas: se apresentem como são, não tentem fingir o que não sentem, não façam o que não querem. Mas com a suavidade e sabedoria de não ser a gota de limão que talha um litro de leite. Afinal, os que amam festas e comemorações são a maioria. Durma mais cedo, leia um livro, assista a um filme (não natalino) e, no dia seguinte, almoce o resto da ceia e curta a alegria dos que ganharam seus presentes.

Aceite a ressaca sem sentido dos que encheram a cara e vão rebater até o dia 2 de janeiro. Faça sua caminhada e compartilhe com as crianças a alegria de suas bicicletas novas e presentinhos nas praças da cidade. Pois é essa alegria espontânea e original que sustenta o espírito de Natal. Enquanto houver crianças que acreditam no Velhinho e seu trenó, a essência natalina será preservada. Pois reviver essa magia é preservar a criança que no fundo nos habita. A todos, um Natal que seja da forma e do conteúdo de modo a respeitar a todos!

A aposta macabra e seu eterno retorno

Há alguns meses, afirmei nesta coluna que uma aposta fácil de ganhar no Brasil é contra a educação. Posso até formular uma Lei Geral da Decadência do Ensino Brasileiro (LGDEB): a avaliação de nossos estudantes sempre será pior que a anterior, não importa o passar dos anos ou dos governos. Decadência contínua. Sei que, infelizmente, é uma aposta macabra. Fácil de ganhar, no entanto. A LGDEB não tem falhado, não importa quanto eu torça contra ela.

Fiz, em seguida, a previsão fatal: quando saíssem os resultados do PISA – Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, estaríamos pior que antes. Os resultados foram divulgados anteontem. Não deu outra. No índice geral, que engloba ciências, matemática e leitura e compreensão de textos, entre 70 países e economias avaliadas, ficamos em 62º lugar. Isso mesmo. Apenas oito nações conseguiram pior resultado que o Brasil em 2015. Uma das dez maiores economias contenta-se com a rabeira da educação.

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Como se vê, a praga da LGDEB prevaleceu outra vez. Se compararmos nossos resultados atuais com os de 2009, pioramos em todos os quesitos examinados: nossos estudantes leem pior, não compreendem o que leem, não sabem contar, não possuem rudimentos básicos de ciência.

O descalabro pode ser revelado em números. Há seis níveis de avaliação no PISA. O mínimo exigido do estudante para o que a OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – chama de “conhecimentos e capacidades para o envolvimento completo nas sociedades modernas” é o nível 2. Pois bem. No índice geral, Cingapura tem apenas 4,8% de seus alunos nessa péssima situação. O Japão, 5,6%. O Brasil emplacou 44,1% dos avaliados no nível 2 ou abaixo dele. Se alguém disser que o tamanho do país é um problema, a China aparece com menos de 11%. Se alguém creditar o descalabro à nossa pobreza, o Vietnam contesta a argumentação: com renda per capita muito inferior à nossa, possui somente 4,5%.

No outro lado da moeda, o da excelência, ou níveis 5 e 6, Cingapura tem 39,1%; Japão, 25,8%; Vietnam, 12%; o Brasil, apenas 2,2%. Isso diz muito da qualidade da educação que oferecemos a nossos jovens.

Nem na América Latina estamos bem. Argentina, Chile, Uruguai, Costa Rica, Colômbia e México nos deixaram para trás.

Observei outras coisas: os brasileiros estão entre os cinco maiores matadores de aulas do mundo; escolas com professores na direção dão melhores resultados que as supervisionadas diretamente por entidades governamentais; professores bem preparados são meio caminho andado para o bom ensino.

No Brasil, a leitura e a compreensão de textos deixaram de ser prioritárias e passaram a integrar uma vaga classificação de “linguagens”. Em outras palavras, escultura, pintura e dança, embora necessárias e admiráveis, assumiram o mesmo destaque que a língua. Não é à toa que caímos na má-língua alheia.

O governo prepara medidas para mudar o rumo da educação no país. Deveria consultar o PISA para melhor se orientar. Afinal, a LGDEB deve ser derrubada. Chega de aposta macabra. Chega de seu eterno retorno.

Luís Giffoni

O diabo no comando

O que nos espreita é a bagunça generalizada
Reinaldo Azevedo
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Só um maremoto resolveria

Apesar de escandaloso, o primeiro vazamento da lista de delatores da Odebrecht não despertou tempestades de indignação nas ruas. O mais que telejornais e outros meios de comunicação ensejaram foi um comentário generalizado na opinião pública: “Eu já sabia”. Realmente, nenhuma surpresa a lista causou. Os nomes divulgados e publicados formam a linha de frente dos acusados de corrupção. Caberá ao Supremo Tribunal Federal provar se houve recebimento de dinheiro podre ou doações legais para candidaturas recentes, assim como quais as compensações promovidas pelos montes de políticos envolvidos nas tramoias.

Do presidente da República a líderes de todos os partidos, ministros, governadores e parlamentares, saem todos enlameados, apesar das negativas.

Muito tempo transcorrerá até que sejam julgados e talvez condenados os integrantes dessa quadrilha variada que em momento algum surpreendeu o país. Para muita gente, nem valeria a pena ficar comparando um por um os nomes dos denunciados. Que tal reunir as listas de presença da Câmara e do Senado, mais a relação dos ministros e altos funcionários, para selecionar apenas os que não estão implicados na roubalheira? Muito tempo e fartos recursos seriam poupados.

Para limpar as cavalariças do rei Áugias, Hércules precisou desviar o curso de um rio. Aqui, dada a extensão do território nacional, seria necessário um maremoto.
Até prova em contrário, o nome do Lula não apareceu na primeira versão da lista da Odebrecht. É verdade que já se tornou réu num processo de corrupção, tornando-se candidato a mais três. Mesmo assim, o Ministério Público do Distrito Federal gostaria de ver o ex-presidente arrolado na lista da empreiteira.

Imagem do Dia

Xalapa, Veracruz, Mexico:
Xalapa (México)

Suprema subserviência

O Supremo Tribunal é conhecido como Corte política. Não raro se excede na faina de agradar ao Executivo e ao Legislativo. Em sua história os brasileiros encontram sentenças que envergonhariam qualquer toga do planeta.

A Constituição de 1934 proíbe tribunais de exceção no capítulo 2, 25: “não haverá foro privilegiado, nem tribunais de exceção”. Instaurada o Tribunal de Segurança Nacional, o deputado João Mangabeira apresenta recurso ao Supremo. Por voto unânime os juízes declaram o invento tirânico “em perfeito acordo com a Constituição da República”. Um atalho na Carta permite a hermenêutica liberticida: “admitem-se, porém, Juízos especiais em razão da natureza das causas”. E a bênção dos magistrados é concedida sem data venia. O referido tribunal persegue 1.420 pessoas: 533 no Distrito Federal, 222 do Rio Grande do Norte, 165 em São Paulo, 95 em Pernambuco, 85 da Bahia. Entre os “julgados”, Armando Sales, José Antônio Flores da Cunha, João Mangabeira, Otávio Mangabeira, Luís Carlos Prestes, defendido pelo grande Sobral Pinto. No caso de João Mangabeira ocorre façanha incomum na história jurídica internacional: empatada a decisão, o presidente Barros Barreto decide contra o réu. O Supremo Tribunal Militar corrige em parte o escândalo e concede habeas corpus ao parlamentar.

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Depois vêm as manobras em prol do parlamentarismo, com a demissão de Jânio Quadros. O STF se cala, apesar do notório golpe aplicado por militares. Em 1964, o mesmo silêncio tíbio quando Hermes Lima e Evandro Lins e Silva são expulsos da Excelsa Corte pelo governo de fato. Procura em vão quem busque nos anais daquele colégio uma nota mais dura contra o AI-5, que suspende o habeas corpus em casos de crime político e contra a ordem econômica, a segurança nacional, a economia popular. Tais crimes são tipificados com pressuroso auxílio de quem redige uma Constituição como a Polaca, o notório Francisco Campos. Nada relevante é dito pelo Supremo contra a censura prévia em jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas.

E seguimos a trajetória pouco sublime do Supremo. Por exemplo, no apagão do período FHC. Questionada a constitucionalidade da multa (os usuários não eram responsáveis pela imprudência governamental, que não providenciou melhorias na rede), os juízes do STF definem que, sem penalidades pecuniárias, os cidadãos deixam de colaborar. Logo… Na reforma da Previdência sob Luiz Inácio da Silva, Joaquim Barbosa, o herói da futura Ação 470, decreta em seu voto que “não existem direitos adquiridos, caso contrário ainda estaríamos em regime de escravidão”. Nenhuma data venia é apresentada por seus pares contra o sofisma, de enrubescer estudantes ainda no primeiro ano acadêmico.

O que acontece na tarde de 7 de dezembro de 2016 ressuscita o velho serviçal dos outros dois Poderes, com resultado ainda pior para os togados. Sob o ultimato de Renan Calheiros e do governo – chantagem solta, pois sem a vitória de Renan surge a ameaça de não se votarem cortes orçamentários – o Supremo se coloca como trampolim para ações contrárias à cidadania que lhe paga e a quem deve servir.

Antes de continuar, uma reflexão. Illibatus, a, um, no latim maltratado pelos membros do STF, tem o sentido de algo ou alguém íntegro, inteiro, completo, ao qual nada falta, não enternecido pela perversão ética. Como o candidus, do qual se origina o atual “candidato”, o vocábulo indica a propriedade de não ser conspurcado, de seguir um parâmetro virtuoso. Illibatus designa um ser sem travestimentos, enfeites, dissimulação. Seu antônimo é o termo improbus, aplicado a quem “comete uma falta contra a fides, sendo o equivalente de iniustus. A improbitas é a ruptura da fides, é o defeito de quem não honra promessas e corresponde ao francês malhonnêteté”. (J. Hellegouarc’h: Le Vocabulaire Latin des Relations et des Partis Politiques sous la République).

No Brasil, todo cargo público exige do candidato a “ilibada reputação”. Esta lhe concede a efetividade plena do múnus encerrado no ofício. Ninguém pode exercer uma função em fatias, pois tal fato seria improbidade ética e política. Como, então, os juízes do STF guardam Renan Calheiros no cargo de presidente do Senado, mas lhe retiram o direito e o dever de substituir o chefe do Estado? Ocorre aí improbidade de alguém. Ao ser empossado como senador, aquela pessoa promete cumprir fielmente tudo o que seu cargo exige. Como não pode cumprir tal promessa, existe improbitas de sua parte. E tal coisa é autorizada, ou melhor, sacralizada pelo guardião da Carta Magna?

Outro problema: Calheiros não pode substituir o chefe do Executivo porque é réu e, portanto, sua reputação não é inteira, é quebrada por algo muito grave. Mas numa República democrática o soberano é o povo. Renan não pode assumir a Presidência, mas pode legislar para os cidadãos, obrigando-os a cumprir normas das quais ele mesmo é acusado oficialmente de se abster? Para os juízes do STF, quem é mesmo o povo? A presidente Cármen Lúcia, num rasgo agora provado como demagógico, proclama ao ser empossada algo assim como “Sua Excelência o Povo”. Triste excelência, obrigada a seguir leis definidas por quem a elas não obedece! O competente e sério jornalista José Nêumanne Pinto define a decisão do fatídico dia 7/12 como “cusparada no povão”. Ele é muito gentil com os integrantes da Suprema Corte.

No espetáculo de subserviência o STF faz mais: retoma sua amarga história de instrumentum regni. Esquecem os magistrados: quando a autoridade é perdida, um Poder deve sorver até a última gota da abjeção. A Câmara dos Deputado prepara medidas contra as sentenças do STF. A continuar o sumiço de sua própria auctoritas, aquela Corte logo terá membros seus nas penitenciárias. Por ousar a condenação de larápios do dinheiro público.

O realismo político à custa da cidadania sempre termina em tragédia. Ou comédia.

Já é possível ver os elefantes brancos da Rio-2016

Um dos mantras mais repetidos por Eduardo Paes era o de que a Rio-2016 não deixaria “elefantes brancos” para a cidade. Menos de três meses após o fim do evento, tal promessa já se mostra furada.

Alguns equipamentos eram claramente insustentáveis desde a concepção. Caso do campo de golfe, construído por US$ 19 milhões em uma área de reserva natural. O local é público, mas, como ninguém pratica o esporte no Brasil, é inútil. Sua manutenção gira em torno de US$ 82 mil mensais.

Mesmo instalações para as quais havia algum simulacro de planejamento já começam a tomar a forma de paquidermes de concreto e metal. É o caso do Parque Olímpico da Barra. Ali, segundo Paes, a “criatividade” seria garantia de aproveitamento: parte dos estádios seria administrada por meio de uma parceria público-privada e outra parte seria desmontada e “transformada em escolas e ginásios em áreas mais pobres”.
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Não é o que está se desenhando. A licitação para escolher a empresa que cuidará do local deveria ter acontecido em agosto, mas foi sucessivamente adiada. Uma única empreiteira se interessou, mas não cumpriu as regras do edital. Com isso, a prefeitura teve de contratar emergencialmente (ou seja, sem licitação) um gestor para o espaço por até três meses, ao custo de R$ 4 milhões.

Ainda que ocorra até o fim do ano, a licitação já tem oposição declarada do próximo prefeito, Marcelo Crivella, que se espantou com a conta que herdará: R$ 166,5 milhões a serem pagos pelo município por obras de adaptação ao longo de três anos. A partir deste prazo, a prefeitura arca com parte das despesas de duas das arenas, gastando até R$ 382,7 milhões.

Não dá para dizer que esse cenário é surpreendente. Mas os elefantes olímpicos cariocas cresceram muito mais rapidamente do que se podia supor.

Fora, ONU

Bilhões de dólares perdidos para a corrupção, dezenas de políticos delatados e até o presidente da República citado como beneficiário de caixa dois; Câmara que ameaça juízes e promotores, ministros do STF que se acham mais supremos do que a Corte, senadores que se consideram acima da lei. Não há dúvida: o gigante Brasil adora se exibir como república de bananas. Ainda assim, nada dá o direito de gente de fora se meter em descascá-las. Mas foi o que relatores das Nações Unidas fizeram ao lançar um comunicado oficial crítico à PEC do teto, prevista para ser votada em turno final pelo Senado na próxima terça-feira.

Philip Alson, relator especial da ONU para extrema pobreza e direitos humanos, criticou a decisão do governo brasileiro de “congelar o gasto social do Brasil por 20 anos” (o que a PEC não prevê), chegando a colocar em dúvida a legitimidade do presidente Michel Temer, que não teria submetido seu programa à consulta popular. Como se a antecessora deposta, Dilma Rousseff, tivesse cumprido uma única letra do rol de mentiras da campanha que a elegeu.

Nem o PT, que na legítima luta política tem tentado colocar tropas nas ruas contra a PEC, conseguiria ir mais longe do que Alson.

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Ele elogia os resultados que o Brasil alcançou no combate à pobreza nos últimos anos e até reconhece que o país “sofre sua mais grave recessão em décadas, com níveis de desemprego que quase dobraram desde o início de 2015". Mas insiste em um “impacto severo” que a PEC do teto terá sobre os mais pobres. Assim como os petistas e os que escolhem manter a venda bem amarrada aos olhos, o relator da ONU não leu ou não quis ler os números da realidade brasileira. Do pobre cada vez mais pobre, vítima não de uma lei que limita gastos, mas de gastos desenfreados, irresponsáveis, eleitoreiros.

Dados do IBGE divulgados no final de novembro mostram que a crise econômica que assolou o país a partir do primeiro mandato de Dilma, fez os níveis sociais brasileiros retroagirem mais de uma década. Os números destruíram mais do que o propalado legado do PT do ex Lula. Demonstraram, de forma cartesiana, que mais cedo ou mais tarde todos pagam as contas do populismo. E que elas são mais caras para os pobres.

O Brasil herdado do pós-Lula e Dilma até conseguiu reduzir a distância entre pobres e ricos, mas da pior maneira possível: todos perderam - ricos e pobres -, sendo que os 10% mais pobres perderam ainda mais. Embora Alson não veja ou prefira não ver, não há “impacto severo” que possa ser mais grave do que esse.

O documento recebeu também o aval da relatora para Educação da ONU, Boly Barry, que indica a “necessidade de um aumento nos gastos com educação”, algo em torno de US$ 12 bilhões. Sem dúvida, o Brasil adoraria poder contar com isso, embora o resultado recente do PISA -- Programa Internacional de Avaliação de Estudantes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) -- demonstre que a relação investimento-qualidade do aprendizado não é direta: em 15 anos, o país mais do que triplicou os recursos aplicados na educação, sem que isso significasse melhoria. Ao contrário, continua amargando os últimos lugares e caindo ainda mais em cada etapa do teste internacional.

Além de desconhecer o teor da PEC 55 e o que muda com ela, a ONU imiscuiu-se na administração e na política interna do país. Agiu como se a PEC aumentasse o risco social de um Brasil que agoniza pelo desemprego causado por políticas erráticas, a qual os mesmos setores da ONU fingiam não enxergar.

Mais do que pregar a distribuição de dinheiro que não existe -- até porque foi gasto por conta durante uma década --, o comunicado da ONU transformado em carta aberta ao Congresso Nacional desrespeita o governo central e o Legislativo de um dos países membros. Abusa de chavões ideológicos, entre o esquerdismo juvenil e a irresponsabilidade militante. É tudo de que o Brasil, imerso em recessão e problemas gigantescos, não precisa.

Os olhos dos brasileiros, em especial daqueles que assumiram a cidadania e foram às ruas, só enxergam o combate à corrupção e a punição de quem roubou o país. Mas para além de condenar e prender está a concertação, a urgência de tentar colocar a economia em ordem, de gastar menos (e não roubar mais), sem o que o país não conseguirá ficar em pé, muito menos gerar emprego e renda.

Caso contrário, o pobre que hoje já está mais pobre ficará cada dia mais pobre. E não há ONU que cuide disso.

Como a Dinamarca acabou com a corrupção

Em termos de corrupção, os últimos anos foram cheios de acontecimentos no Brasil. Após a revelação do escândalo da Petrobras, em 2015, o país caiu mais que qualquer outro no Índice de Percepção de Corrupção. O Brasil perdeu cinco pontos no índice de 100, e perdeu sete posições, ficando em 76º lugar.

O índice é publicado pela ONG Transparência Internacional e se baseia em dados de 11 instituições, incluindo avaliações tanto de empresários quanto de cientistas. A pontuação varia de 0 (muito corrupto) a 100 (muito limpo).

Corrupção sempre ocorre quando se abusa da própria posição em favor de benefícios privados. Este mal já existe desde o começo da humanidade. Embora hoje em dia haja mais leis, a sociedade esteja mais bem informada e disponha de melhores possibilidades técnicas de controle, a corrupção não diminuiu.

Ao comparar os dados de 2005 com os de 2015, percebe-se que quase nada mudou na pontuação. Em 2005, a média foi de 41,3 pontos; em 2015, foi de 42,6 pontos. Dois terços dos 168 países listados em 2015 atingiram 50 pontos ou menos: ou seja, a maioria tem um problema sério de corrupção. 


Embora os dados do índice mostrem uma estagnação, o pesquisador Gert Tinggaard Svendsen acha que o mundo está piorando em termos de corrupção. "Ela está crescendo e isso é muito perigoso. As elites no poder enriquecem cada vez mais, enquanto o resto da sociedade paga o preço", afirma o dinamarquês, que já escreveu vários livros sobre o assunto.

Svendsen, que é professor de Políticas Públicas na Universidade de Aarhus, na Dinamarca, está convencido de que a corrupção, pouco a pouco, destrói uma sociedade. Segundo o pesquisador, ela aumenta o abismo entre ricos e pobres, e as pessoas acabam não confiando mais nas autoridades, nem umas nas outras.

A corrupção funciona como um círculo vicioso: Quem vive numa sociedade muito corrupta, também é forçado a cometer atos corruptos para não ficar para trás. As únicas pessoas que teriam o poder de combater a corrupção – por exemplo, com punições severas e controles – são as que mais se beneficiam dela. Por isso, geralmente não têm um grande interesse em diminuí-la.

Segundo o índice da Transparência Internacional, a Dinamarca, a terra natal de Svendsen, é o menos corrupto entre todos os países do mundo. O pesquisador tem uma explicação para isso: "Tivemos muita sorte: já no século 17, o nosso rei, Federico 3º, começou a combater a corrupção no país que, até então, era muito grande. A Dinamarca estava em guerra com a Suécia nessa época, e, para poder receber mais impostos e não perder a guerra, Federico se viu forçado a tomar uma iniciativa". O rei tirou cargos e privilégios da nobreza e introduziu punições severas para corrupção e desvio de dinheiro.

Graças a esta constelação histórica, a Dinamarca, hoje em dia, tem poucos problemas com corrupção, assim como vários outros países nórdicos. O termo "Getting to Denmark" ("Alcançando a Dinamarca"), criado pelo cientista americano Francis Fukuyama, até já virou sinônimo de diminuição de corrupção.

Entre os perdedores no índice de 2015, estão principalmente países africanos, asiáticos e sul-americanos. Somália (8 pontos), Coreia do Norte (8 pontos) e Afeganistão (11 pontos) ocupam os últimos lugares na lista de 168 nações. Segundo a Transparência Internacional, o que países com muita corrupção geralmente têm em comum é falta de fiscalização, instituições públicas fracas e a falta de uma imprensa independente. Além disso, conflitos e guerras favorecem muito a corrupção. Entre os dez países mais corruptos, cinco se encontram ao mesmo tempo entre os dez menos pacíficos, segundo a ONG.

Embora a média global de pontos não tenha mudado quase nada na última década, há mais países que melhoraram sua pontuação em 2015 do que os que pioraram. E 2015 também foi um ano de muitos protestos contra a corrupção: isso mostra que as pessoas estão de olho e podem pressionar os responsáveis. Mas a medida mais eficaz, na opinião de Svendsen, seria criar, em cada país, unidades independentes do governo e dos demais órgãos: "As pessoas deveriam poder recorrer sem medo a um lugar que investigue casos suspeitos. E denunciantes, os assim chamados "whistleblowers", deveriam ser recompensados em vez de punidos".