segunda-feira, 22 de junho de 2020

Voz armada

O consenso democrático pós-1988 no Brasil já caiu por terra. A democracia brasileira já está sob tutela
Gaspard Estrada, diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e do Caribe (Opalc) da universidade Sciences Po de Paris

Estantes no vídeo

Aldir Blanc, uma das grandes perdas impostas pela Covid, não podia ver uma foto em jornal de alguém diante de uma estante. Saía de lupa a ampliar a foto para ler os títulos nas lombadas dos livros. Aldir queria saber o que aquela pessoa gostava de ler e se tinha livros que ele ainda não tivesse e talvez precisasse ter. Lia dia e noite, sem parar. As fotos o mostravam em seu apartamento, na Muda da Tijuca, quase soterrado por eles. Se Aldir não tivesse sucumbido ao coronavírus, estaria hoje dando entrevistas online cercado por seu mundo de livros. Não seria exibicionismo e nem ele teria escolha. Eles tomavam os aposentos.

Estantes cenográficas para teleconferência viraram moda
Transmissões online abundam agora na programação, e todo mundo aparece com uma estante ao fundo razoavelmente suprida de livros. Ou as pessoas leem mais do que imaginávamos ou descobriu-se que a estante é o móvel mais nobre da casa, donde ser o cenário ideal. Não vi até agora ninguém se postar na frente da geladeira ou do armário das panelas. Não que não sejam também móveis da maior dignidade --- mas talvez uma parede com caçarolas não tenha o mesmo appeal de uma prateleira de livros.

Devido à alta incidência de estantes no vídeo, eu próprio passei a tentar decifrar os títulos nas lombadas e, pelo que já vi, cada entrevistado está bem servido de livros sobre sua especialidade. Os comentaristas políticos têm biografias de políticos; os esportivos têm histórias sobre futebol; os economistas, teorias econômicas.

Com uma exceção. Sempre que vejo o ministro da Economia Paulo Guedes na TV, ele está, sim, diante de uma estante, mas tristemente vazia exceto por alguns bibelôs e objetos não identificados. Zero livros.

Como o ministro se gaba de conhecer todas as teorias econômicas --- “no original”, frisou ---, imagino que tenha feito isso por correspondência. O que sua prática no ministério de Jair Bolsonaro, por sinal, demonstra.
Ruy Castro

Brasil acelera a economia


Dez motivos para culpar Bolsonaro por mortes da Covid-19

No dia em que o Brasil superou a triste marca de 50.650 mortos e mais de 1 milhão de infectados pelo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro voou de Brasília ao Rio para participar do velório de um militar paraquedista. À tropa ali reunida, Bolsonaro disse que foi grande amigo do general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército durante o governo José Sarney.

Para variar, mentiu. Está em livros de história que o general fez tudo para punir Bolsonaro, acusado de ter planejado atentados à bomba a quarteis quando reivindicava melhores salários para soldados como ele. Em troca do título de capitão, Bolsonaro acabou concordando em ser afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética, como consta de sua folha corrida.

Por que Bolsonaro não compareceu até hoje ao velório de uma única vítima do coronavírus? Não precisaria deslocar-se para outra cidade. Não se passa um dia sem que novos mortos sejam sepultados em cemitérios de Brasília e das cidades do seu entorno. No Paranoá, a pouca distância do Palácio do Planalto, de cada 100 pessoas testadas, 30 têm o vírus. É onde mais se morre.

O que fez Bolsonaro até agora desde que o primeiro brasileiro perdeu a vida para o Covid-19 no final de março último?

1. Por ignorância ou, pior, maldade, subestimou a doença como se ela não passasse de uma “gripezinha.

2. Por uma ou a outra razão, acreditou que a pandemia só seria contida depois que contaminasse 70% da população. Haveria mortes? É claro que sim, mas e daí? A morte é o destino de todos, como observou um dia.

3. Por ignorância ou interesse monetário, apostou contra todas as evidências científicas que a cloroquina deteria o avanço do vírus, salvando vidas se receitada desde o início da doença. O Exército produziu a droga em larga escala, e ainda produz.

4. Recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra as medidas de isolamento social baixadas por governadores e prefeitos a conselho da Organização Mundial da Saúde. Como o tribunal as manteve, passou a sabotá-las ostensivamente.

5. Demitiu o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, em meio à pandemia. Provocou a demissão do sucessor dele, o médico Nelson Teich. Promoveu um general que só entende de logística a ministro interino da Saúde. Orientou-o a esconder o número de mortos. O general transformou o ministério em um cabide de emprego para militares da ativa e da reserva.

6. Foi sob a pressão de Bolsonaro que alguns governadores e prefeitos afrouxaram a regra do isolamento social. Vidas importam, mas a economia importa mais. Em vários lugares onde o comércio reabriu, aumentou o número de mortos e de infectados. Tem dono de shopping que amarga prejuízo por tê-lo reaberto.

7. Se tivesse dependido somente dele e do ministro Paulo Guedes, da Economia, o auxílio aos brasileiros mais pobres seria de 200 reais por dois ou três meses. É de 600 reais graças ao Congresso.

8. Bolsonaro deu o mau exemplo de circular em Brasília sem usar máscara. Contrariou as determinações médicas de não aproximar-se de pessoas desprotegidas e de não tocá-las. Uma vez, ao pé da rampa do Palácio do Planalto, tocou em 272.

9. Politizou o combate ao coronavírus. Os momentos mais tensos do seu governo até aqui foram provocados por ele para tirar a atenção sobre a doença. Entrou em conflito com os demais Poderes e quase desatou uma grave crise institucional.

10. Agora que o primeiro pico da doença se aproxima, está às voltas com a prisão de Fabrício Queiroz, operador financeiro do seu filho Flávio, acusado de desvio de dinheiro público. Entrega cargos do governo ao Centrão para driblar o risco de ser derrubado.

Haverá maior sócio do coronavírus do que Bolsonaro?

Do tamanho de um cometa

Ironicamente, um governo machista que cultua armas pode descrever seu maior abalo com um poético símbolo fálico: um pênis do tamanho de um cometa. Foi assim que Fabrício Queiroz descrevia o futuro que esperava o grupo em torno de Bolsonaro.

Ironicamente, Fabrício se escondeu no sítio de um amigo em Atibaia. E a operação que o encontrou foi denominada Operação Anjo, em homenagem ao advogado da família Bolsonaro, acusado, no passado, de bruxaria.

O Brasil é um desafio para os romancistas. A tempestade perfeita acabou se abatendo sobre Bolsonaro: inquéritos sobre fake news e manifestações ilegais, militantes presos, deputados com sigilo bancário quebrado.

E, finalmente, a prisão de Queiroz. Não era o homem mais procurado do país. Mas era o mais solicitado. De todos os cantos brotava a pergunta: onde está Queiroz? Queiroz estava escondido na casa do advogado da família Bolsonaro. Para uma operação no nível de segredo de Estado, é de um amadorismo comovente.


A exposição dessas operações suspeitas de Bolsonaro talvez o enfraqueça nas Forças Armadas, bicho-papão com que ele nos ameaça a cada momento. Os militares têm aceitado tudo. Desde os ataques à República até a necropolítica de Bolsonaro na pandemia de coronavírus. Nos ataques à Proclamação da República pelo menos ficaram calados, não os endossaram. Mas a política de Bolsonaro é executada por um general da ativa que quer nos entupir de cloroquina porque seu líder assim o determinou.

A sorte é que nem sempre acertará no alvo. Confunde hemisférios e coloca o Nordeste acima da linha do Equador, e chama Rio Branco de estado. Sua imprecisa pontaria geográfica talvez nos ajude a sobreviver.

Também entre os que esperavam um combate à corrupção, Bolsonaro vai se enfraquecer. Aliás já estava se enfraquecendo com a queda do Moro. Caiu nos braços do centrão e agora vem à tona o esquema de Queiroz e seus milicianos.

Não creio, entretanto, que a situação ficou menos tensa. Ao contrário. Quem se sente encurralado tem mais chances de buscar ações desesperadas.

Antes da queda de Queiroz, comecei a escrever um artigo partindo de uma frase de Shakespeare em Hamlet: “Ai ai de mim por ver o que vejo.”

Era um artigo para lembrar que falhamos na pandemia, apesar do tempo de preparação. Perdemos mais gente, empregos e tempo por causa de nossa incapacidade nacional.

Estamos às vésperas de um novo desafio: uma profunda crise econômica e social. Onde Paulo Guedes vê um futuro brilhante, vejo suor e lágrimas, mais suor do que lágrimas, adaptando a famosa frase de Churchill aos trópicos.

A gigantesca tarefa de evitar um golpe é, infelizmente, apenas uma. Há ainda a tarefa de solidariedade e construção da mínima rede social num país que se dissolve.

Costumo dar como exemplo Paraisópolis. Imagino que sejam contra Bolsonaro, pois estive lá e vi como sofreram com a violência policial. Agora na crise, conseguiram uma ambulância, médicos, lugares para isolamento, criaram um sistema defensivo. Eles sabem que são tarefas do Estado, mas não podem esperar.

Uso esse pequeno exemplo para mostrar que em escala nacional não basta a grande batalha para derrotar o projeto autoritário de Bolsonaro. É uma luta que tomará tempo e, enquanto isso, o país continuará sangrando.

Tenho andado pouco pelas ruas. Mas percebo um número maior de gente em dificuldade. Conheço muitos moradores de rua do meu bairro. Alguns documento com fotos ao longo dos anos.

Nas poucas saídas, percebi que mudou a população de rua. Procuro alguns que conhecia e suspeito que morreram. Ao mesmo tempo, surgiram muitos novos, famílias inteiras.

A pandemia ainda nem acabou, e estamos diante de uma situação em que não podemos perder de novo. A imagem no exterior se evaporou. Nosso soft power — cultura, simpatia, natureza — foi para o espaço. O Brasil se isolou.

Mas ainda não desapareceu. Dai a histórica dimensão da tarefa. O único consolo é acreditar que a história não coloca problemas que as pessoas não possam resolver. 
Fernando Gabeira

Aposta do fracasso

O governo Jair Bolsonaro pode ter chegado a um ponto de inflexão, em razão da estratégia adotada pelo presidente para impor suas vontades aos demais Poderes e entes federados. As ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF), os desentendimentos com o Congresso e as frequentes retaliações a governadores e prefeitos, a partir de uma concepção de poder centralizado e vertical, incompatível com a Constituição de 1988, são fatores de instabilidade político-institucional. Ainda mais num ambiente dramático, de crise sanitária e econômica, agravado pelo negacionismo da política de isolamento social para combater a pandemia de coronavírus e pelo colapso do projeto de reformas ultraliberais, diante da recessão econômica.

Houve uma grande mudança de contexto político, econômico e social, ao qual o presidente da República não se adaptou, em razão de um projeto de poder em bases ideológicas incompatíveis com a realidade brasileira e nossas relações com o mundo. Esse projeto sempre foi minoritário na sociedade, mas parecia se impor pela audácia e virulência com que Bolsonaro mobilizou seus apoiadores mais radicais e militarizou seu governo. Tornara-se uma ameaça ao Estado de direito democrático e à coesão nacional, além de um fator de isolamento e desmoralização do Brasil perante as demais nações, sobretudo do Ocidente.


A aposta num governo de viés bonapartista, vanguardeado por setores de extrema direita, como forma de intimidar e se impor aos demais Poderes e entes federados, aproveitando-se da desmobilização da sociedade em razão da pandemia, parece que bateu no teto. As afrontas aos fundamentos do Estado de direito democrático, ao atribuir ao Executivo um predomínio exorbitante em relação aos demais Poderes e personificá-lo na figura do presidente República, acabaram provocando ampla e forte reação da sociedade, que transcende em muito os partidos de oposição. Como num passe de mágica, a sociedade civil passou a defender o Congresso e o Supremo, dos quais havia se distanciado. Deu-se conta dos verdadeiros riscos da situação.

À margem do grupo de generais que formam o Estado-Maior de Bolsonaro — Luiz Eduardo Ramos, na Secretaria de Governo; Braga Neto, na Casa Civil; Fernando Azevedo, na Defesa; e Augusto Heleno, no Gabinete Segurança Institucional (GSI) —, havia um “subgoverno”, que opera contra as instituições democráticas e aposta na ruptura institucional, com métodos de atuação incompatíveis com a ordem democrática. Esse “subgoverno”, comandado pelos filhos do presidente Jair Bolsonaro, está sendo desnudado pelas investigações conduzidas pelo ministro Alexandre de Moraes, com endosso de todo o Supremo Tribunal Federal (STF), sobre as chamadas fake news e as ameaças às autoridades do Legislativo e do próprio Judiciário.

Entretanto, nada é mais comprometedor do que o envolvimento de Bolsonaro e seus filhos com o amigo e “faz tudo” da família, o policial militar reformado Fabrício Queiroz, preso na quinta-feira em Atibaia (SP), por determinação da Justiça fluminense, no inquérito das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Por mais que o presidente da República tente se desvincular do caso e seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro, diretamente envolvido no escândalo, jure inocência, o fato abalou o esquema de poder de Bolsonaro, porque exuma velhas e perigosas relações com milicianos do Rio.

O potencial catalisador do caso Queiroz alterou a correlação de forças políticas não só fora como dentro do governo. Os militares que ocupam o Palácio do Planalto e a Esplanada dos Ministérios, em número muito maior do que os de qualquer governo do regime militar, não têm como endossar as desculpas do presidente da República sem arrastar as Forças Armadas para o pântano político. Os sinais de que isso estava começando a acontecer foram dados pelas negociações com o chamado Centrão, que reúne os partidos mais fisiológicos do Congresso, uma estratégia de sobrevivência e blindagem política de Bolsonaro que envolve o loteamento de cargos na Esplanada e a distribuição de verbas públicas.

Ao longo da história, até 1985, os militares sempre ocuparam o centro das crises políticas, condicionando seus desfechos. Submeteram-se administrativamente aos governos, como instrumento do Estado, mas, em termos políticos, ocorria exatamente o contrário: os políticos é que dependiam deles para se manterem. Foram um fator de preservação da integridade territorial e da construção do Estado nacional, mas plasmaram um modo de pensar a nação, a sociedade, a política e gestão que não é apenas um repertório de glórias e vitórias. Coleciona, também, muitas escolhas equivocadas e ações condenáveis. Historicamente, eis o drama do “partido fardado”, formado pelos militares com gosto pela política: sempre fracassa, por se colocar acima da sociedade e das instituições, inclusive as suas, que se baseiam na lei e na ordem, na hierarquia e na disciplina.

Pensamento do Dia


Realidade e pesadelo

A solidez de uma democracia não se mede pelas ameaças que ela sofre e sim pela capacidade que tem de resistir aos que atentam contra nossas vidas e liberdade.


Mesmo se um bando de extrema direita quer fechar o Congresso ou dispara morteiros contra o Supremo Tribunal Federal, se um ex-ministro dementado quer prender seus juízes e se todos juntos agridem a mídia. Se um presidente inominável incentiva a invasão de hospitais para filmar leitos supostamente vazios. Se um seu apoiador é capaz, com gesto imundo, de arrancar cruzes que na areia de Copacabana lembravam os mortos pelo Covid, como se fosse possível esconder 50 mil mortes, apesar de tudo, crimes e desvarios, a democracia resiste à escalada sem fim de que são capazes a insanidade e a desumanidade.

Instituições sólidas, ancoradas na Constituição, Parlamento, Poder Judiciário, mídia destemida, com a linguagem da lei e da razão, se contrapõem à ilegalidade e à desrazão. Barram os efeitos dos atos tresloucados. Afirmam-se como coluna vertebral da democracia.

Os que confinados em casa e vivendo um momento trágico em suas vidas afirmam “Somos 70 por cento” e “Vamos todos juntos” dar um “Basta” nessas ameaças são a democracia. A corrente de indignação que se espalha nas redes sociais, os panos brancos e a grita nas janelas, o silêncio amargurado do luto dos que perderam entes queridos, vítimas da irresponsabilidade e incompetência desse governo, todos os que não nos reconhecemos nessa imagem deformada do Brasil projetada no espelho de circo de Bolsonaro somos milhões querendo viver na democracia.

A sociedade que tece sua resistência com as armas da legalidade, a autoridade dos cientistas, o talento dos artistas, lei, ciência e arte que o governo detesta e tenta destruir, e defende liberdades conquistadas em anos de lutas civilizatórias, essa sociedade é a garantia de que a democracia é o nosso destino. O golpe e a ditadura, não. 

Vamos amanhecer, estamos acordando. Esse desgoverno não é a nossa realidade. Ele é o nosso pesadelo.

Uma coisa só



Se bater no Fred atinge o presidente, eu e o presidente viramos uma pessoa só
Frederick Wassef

Em busca dos pais, da vida e da verdade

O roubo de bebês e crianças foi um crime praticado pela ditadura militar brasileira para paralisar a sociedade, impondo um projeto de dominação. Situação idêntica ao que ocorreu também em outros países da América do Sul, dominados pelos militares nas décadas de 1960 e 1970. Segundo destacou Adolfo Pérez Esquivel durante a luta pela identificação dos bebês argentinos sequestrados pelos militares na década de 1970 e 1980 – mantida pelas aguerridas Mães e Avós da Praça de Maio —, esse método de guerra “justificou a chamada ideologia de segurança nacional, procurando simplificar e polarizados conflitos: tudo que se opunha era subversivo, comunista ou era identificado com um inimigo”. O trabalho de Esquivel pelos direitos humanos lhe rendeu o Nobel da Paz em 1980.

Na Argentina, no Brasil e outros países sul-americanos, tal estratégia era e continua sendo uma perversão. Significava matar sem que houvesse morte. Fazer desaparecer, apagar. Negar até a própria morte, conforme disse Gilou Garcia Reynoso, psicanalista argentina que foi integrante do Conselho de Presidência da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos (APDH).


Reynoso, já falecida, destacou que para manter o poder as forças militares eram capazes de desempenhar qualquer tipo de esforço ou ação, que não reconhece limites, afirmação e onipotência. Ressaltou ainda que esse tipo de crime só se sustenta devido a adesão de parte da população. “Exige o consenso da população, pois é nele que se sustenta com tanto poder absoluto. Se o consegue, exerce sobre aquele que o sustenta uma ação tão deletéria como a que obtém pelas armas”, escreveu em 1988.

Ela teceu duras críticas às ações desempenhadas pelos militares para manter o poder e escrever a história. Defendia a necessidade de não se basear somente nas versões oficiais para entender o contexto histórico. A psicanalista destacava que crer na verdade oficial é “aceitar o impensável”. E não crer nessa verdade oficial, mas “dar seu apoio” era a mesma coisa que “ser cúmplice de uma montagem perversa”. Para ela, a imposição de versões pessoais (a narrativa histórica com base em fatos e personagens e documentos militares) desrespeita a lei e os parâmetros humanos.

A arrogância do poder militar exclui toda lei que não seja a sua. Mas seria uma lei a que ele impõe? Ou seria sua autoridade, seu autoritarismo, e a ausência de lei? O arbitrário de sua autoridade que se erige como sendo a própria lei, autoridade que se impõe como “verdade”. E recorre, para apresentar-se como legítimo, a um discurso de imposição, pelo qual infringe todas as leis: as do pensamento racional, as da ética, as da justiça dos homens, que, mesmo defeituosas, são um limite que sujeita o poder a seus procedimentos.

Um discurso perverso, que não respeita nem mesmo as leis da linguagem, discurso que se pretende sem mácula, impondo calar, esquecer, não saber. Negação da realidade, do real, do traumatismo, da verdade... Desejo que insiste e que conseguirá vencer a barreira do silêncio que ameaça ao país e o obriga ao esquecimento, escreveu Reynoso no livro “A psicanálise de sintomas sociais” (1988).

Aqui no Brasil, os militares forjaram narrativa sobre suas ações que esconderam esses crimes, que está contida em princípios estratégicos de manutenção de poder, segundo descreve o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman em texto sobre sociedades e opressão. E leva os fatos ao esquecimento, não sem antes manipular as informações. Leva também à desconstrução da identidade das vítimas e da nação.

Assim, a arquitetura utilizada na construção da narrativa dessa fase da história brasileira, ainda consegue manter as forças militares limpas de qualquer mácula e mantém a morte social das vítimas desse crime de Estado.

Uma história similar à que foi contada por Bernardo Kucinski em “Julia” se passou com Lia Cecília Martins, adotada por um casal que trabalhava num orfanato na cidade de Belém, no Pará, em 1974 quando tinha poucos meses de vida. Os pais adotivos contaram a ela a condição de ser adotada – mas nunca revelaram os pais biológicos. Em 2009, ao ler em um jornal notícia sobre parentes de guerrilheiros assassinados pelos militares no Araguaia na década de 1970, não se conformou com a similaridade física que tinha com as irmãs de guerrilheiro Antônio Teodoro de Castro.

Procurou essas pessoas que viu no jornal. E, para encurtar a história, descobriu ser filha do guerrilheiro, depois que dois exames de DNA confirmaram que dela e as irmãs de Antônio Teodoro há compatibilidade de genes em mais de 90%. Importante destacar que o orfanato para onde a bebê Lia foi levada em 1974 pertencia a um tenente da Aeronáutica. Lia foi registrada num cartório, no Pará, somente em 1984, que tinha como tabeliã a irmã desse tenente.

Como Lia cidadã brasileira, a personagem Julia reconstruiu seu passado e descobriu que ela não era ela. Que era filha de uma militante de esquerda. Que tinha uma certidão de nascimento “fajutada” e que o processo de sequestro e apropriação teve, como escreve Kucinski, “muita gente metida nesse cambalacho”.

“Cativeiro sem fim” denuncia a existência desse crime de Estado e expõe a crueldade e o terror de subtrair um ser humano do meio de sua família biológica, expô-lo a violência psicológica, retirar-lhe a identidade original e tentar transformá-lo numa nova pessoa. Cada um do seu modo, os dois livros somam histórias, provas, documentos, depoimentos e fatos importantes para revelar o Brasil invisível da ditadura nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Cenário que muitos ainda tentam manter sustentado, com base em narrativa que mostrou – até agora – a existência de “ação organizada militar” para salvar o país do “comunismo”. Qualquer semelhança com os dias de hoje parece ser coincidência?

Jogam luz sobre problemas e crimes da ditadura brasileira que estavam — e estão —escondidos até agora dentro de gavetas, colocados à margem da história pela narrativa criada pelo Estado militar. Mostram inquietações da sociedade e fazem entender parte do complexo jogo político que domina o Brasil desde 1964. As gavetas não estão guardando esqueletos ou calhamaços de papeis, mas seres humanos em busca de sua identidade. Em busca de seus pais. Em busca da vida.
Eduardo Reina

Ódio

O ódio é um sentimento que conduz à aniquilação dos valores. Promove a falta de conexão entre pessoas, isola e desliga, pulveriza e corrói o papel dos indivíduos, como destaca Ortega y Gasset. Tem um efeito que corrompe e avilta o espaço público.

O ódio tornou-se parte do contorno da vida política brasileira. Virou um ingrediente da nossa circunstância. Esteve presente na dicotomia da eleição de 2018. Alimenta a lógica do confronto da Presidência Bolsonaro. Esta se vê continuamente abastecida por fake news e pelas limitadas, mas estridentes manifestações facciosas de movimentos de ódio, denegadores das instituições democráticas e propugnadores de uma “ascensão aos extremos”. O radicalismo dessas posturas, que usufruem a acolhedora benevolência do presidente, impacta a atmosfera política. Compromete o espaço de um centro agregador da sociedade brasileira.

O ódio não reflete. Agita. Na esfera pública movimenta a obscuridade dos ressentimentos privados em relação ao sistema político.

Instrumentaliza na sua dinâmica o sentimento voltado para identificar não adversários, mas múltiplos inimigos. Com estes, para essas facções, cabe travar uma guerra pública, política e cultural. É uma mensagem de combate que está em impregnadora sintonia com a mentalidade do setor ideológico do governo.

O ódio, público ou privado, contrapõe-se à prescrição bíblica. Diz o Levítico (19,17): “Não terás no coração ódio pelo teu irmão”. A reflexão talmúdica sobre essa prescrição ensina que o ódio no coração ao semelhante coloca o ser humano fora do mundo (Tratado Aboth, II-16), ou seja, para falar como Hannah Arendt, impede a pluralidade do estar no mundo com outros seres humanos. Neste mundo o Senhor abomina “o que semeia a discórdia entre irmãos” (Provérbios 6,20).

A discórdia na esfera pública é o que impele o espírito de facção, denega os direitos dos outros membros da cidadania e os interesses gerais da comunidade (Hamilton – Federalista n.º 10). O facciosismo da lógica do confronto presidencial vem comprometendo, entre muitas matérias, a pauta do federalismo cooperativo – até mesmo na situação-limite da covid-19.

Monteiro Lobato fez o Visconde de Sabugosa dizer: “O ódio é assim, não respeita coisa nenhuma”. E Machado de Assis adverte: “Haverá pior coisa do que mesclar o ódio às opiniões?”. É essa mescla que vem envenenando o sistema político brasileiro e a vis directiva dos valores democráticos consagrados na Constituição de 1988.

A diversidade de opiniões é inerente à pluralidade da condição humana. A democracia protege-a por meio das suas instituições, entre elas a divisão dos Poderes, que permite ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal, seguindo a Constituição, se contraporem aos excessos monocráticos da caneta presidencial. Também é a aceitação de que a verdade não é uma, e sim múltipla, que enseja a tutela, no nosso ordenamento jurídico, da liberdade religiosa, de pensamento, de opinião e de sua veiculação e manifestação. Essas são regras do jogo voltadas para assegurar numa democracia o modus vivendi da convivência coletiva.

É precisamente a negatividade da mescla do ódio nas opiniões que impacta a convivência democrática.


As palavras e as mensagens de ódio e suas consequências são um risco para o tecido democrático. Na perspectiva da Constituição, põe em questão um dos objetivos fundamentais da República brasileira, que é o de “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Constituição federal, artigo 3.º, IV). Esse objetivo é um bem público. Estipula um rumo, um sentido de direção para a sociedade brasileira. Almeja incluir, e não excluir.

As manifestações dos ódios públicos e a veiculação das fake news desqualificam a dignidade dos seus destinatários. São um assalto ao bem público da inclusividade de todos os membros da cidadania brasileira. Comprometem a responsabilidade, que cabe ao poder numa democracia, de proteger a atmosfera de mútuo respeito.

A democracia requer confiança, ensina Bobbio. A confiança recíproca entre os cidadãos e a confiança dos cidadãos nas instituições, o que exige a transparência do poder. A transparência demanda o rigor da informação. Um rigor muitas vezes posto em questão pela atual governança do País, mas que vem sendo contido pela liberdade exercida pelos meios de comunicação não impregnados pelo obscuro facciocismo das fake news e dos “gabinetes do ódio”.

Várias manifestações, reunindo um amplo espectro de pessoas de distintas trajetórias e orientações políticas, foram recentemente divulgadas. Exprimem um sentimento majoritário de preocupação com as consequências para o País dos problemas e suas circunstâncias aqui apontadas. São ações afirmativas da sociedade civil em prol da democracia e da recuperação da confiança que nela, sem facciocismos excludentes, deve prevalecer.