terça-feira, 1 de setembro de 2020

A economia verde pode ter o selo ‘made in Brazil’


Das trágicas crises, como a que estamos atravessando por causa da pandemia da covid-19, certamente restam dores irremovíveis de nosso coração e de nossa alma. Mas, apesar de ainda estarmos em plena caminhada de travessia deste tempo crítico, já fica evidente uma lição desta quadra dramática da História: é preciso reinventar nossa interface com a natureza.

O movimento de conscientização ambiental, especialmente entre os jovens, tem ganhado corpo rapidamente. Essa é a base de uma sociedade moderna, composta por novos cidadãos e consumidores mais conscientes.

Na Europa, esse olhar foi decisivo para o New Green Deal, plano de recuperação da região com investimento de 750 bilhões de euros. A discussão ecoa pelo mundo. O candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que vai lidar com “as realidades inegáveis e as ameaças cada vez maiores das mudanças climáticas”.

Quando o tema é meio ambiente, o Brasil entra obrigatoriamente em cena, seja por seu potencial, seja pelos fatos danosos que se acumulam nos últimos meses. Enquanto os debates vão na direção da sustentabilidade, o Brasil toma rumo contrário, especialmente na Amazônia, com desmatamento, queimadas, garimpo e grilagem de terras, entre outras ilegalidades.

No agora já há impacto econômico: o anúncio de retirada de capital do mercado brasileiro de carnes feito pela finlandesa Nordea Asset Management. Para o amanhã precisamos investir nossa energia para tornar a economia verde um dos motores que farão o País ter forças de reação no pós-crise. E nem é preciso reinventar a roda.

A Região Amazônica representa 60% do território brasileiro. Lá se encontram 74% das atividades extrativistas que respeitam o meio ambiente, como as de sementes, frutos, óleos e resinas. O caso mais conhecido é o do açaí, que movimenta US$ 1 bilhão por ano. Cacau, guaraná, seringueira, castanha do Brasil são outros exemplos. Uma série de startups está investindo na região para de lá disseminar pelo mundo uma gama de produtos sustentáveis, como cosméticos, café e chocolates nativos, entre outros.

Mas mesmo com toda essa riqueza em mãos e com rumos evidentes a serem seguidos, a região representa apenas 8% do produto interno bruto (PIB) nacional. Mais de 25 milhões de brasileiros estão na Amazônia, muitos deles vivendo abaixo da linha de pobreza, com dificuldades de infraestrutura, como comunicação e saneamento básico.

Não se pode encarar o desafio amazônico como pauta deste ou daquele governo, mas como uma questão de Estado. Temos a chance de envolver todos os atores interessados em discutir o melhor para o futuro do Brasil, acadêmicos, ambientalistas, setor privado, poder público e, especialmente, os moradores da região, incluindo os de pequenas e grandes cidades, ribeirinhos e povos tradicionais.

É por meio desse diálogo organizado que conheceremos as possibilidades reais de criar meios de tornar o local um polo industrial de bioprodutos, tornando viáveis as condições logísticas, os financiamentos, a capacitação, a tecnologia e a ciência para aquela porção do nosso território.

A iluminar esse caminho, além dos exemplos citados na região, temos casos muito bem-sucedidos de bioeconomia em outras localidades do Brasil, como a indústria de biocombustíveis, atualmente a segunda maior produtora de etanol do mundo. A Raízen exporta tecnologia para produção do etanol de segunda geração. Assim, a companhia mira os royalties, enquanto o meio ambiente é beneficiado.

Outro caso é a indústria de base florestal que trabalha comumente em áreas antes degradadas, cultivando árvores que dão origem a produtos fundamentais no nosso dia a dia, como papel, embalagens de papel e pisos laminados, entre outros. Mesmo consolidada, seus dois pés estão no futuro e da madeira virá uma infinidade de alternativas a materiais de origem fóssil. São fios têxteis com uso de até 90% menos água e químicos, bio-óleos e nanocristais de celulose para telas LCD, entre outros.

O País é o lar da maior floresta tropical e da maior biodiversidade do mundo. Cuidar desses ativos é do interesse dos brasileiros. Com uma nova atitude em prol da preservação, o produto feito no Brasil passa a valer mais para esse novo mundo que quer a sustentabilidade. Engrandece a marca Brasil.

A floresta já tem inúmeros benefícios para a economia brasileira, com serviços ambientais que ajudam na competitividade da agricultura, com regimes de chuvas, permitindo em muitas culturas até três safras por ano.

Que o Brasil mude de vez o rumo de sua interface com o meio ambiente. Temos um patrimônio verde incomparável. Temos oportunidades de produção inclusiva e sustentável a nos inspirar. Temos o clamor pelo respeito à natureza. Agora é preciso reinventar nossa relação com o planeta. Afinal, é da vida que se trata – da minha, da sua, de todas e todos nós, hoje e amanhã.

Reflexões sobre o naufrágio

‘O naufrágio das civilizações’. Quando esse livro chegou a mim, resolvi que ia lê-lo antes de outros que estão sobre a mesa. Interessam-me o título e o autor, Amin Maalouf.

Ele usa a imagem marítima, como a de grande barco afundando. Costumo usá-la como a perda do horizonte, uma outra forma de ver o naufrágio.

Maalouf começa se interrogando sobre o fracasso da modernização árabe, tão rica culturalmente na sua infância no Levante, um arquipélago de cidades comerciais, e na juventude em Beirute. Como foi que tudo se perdeu, que caminhos, que encruzilhadas transformaram o mundo árabe num lugar inseguro, desesperado a ponto de produzir legiões de suicidas?

Ele analisa o papel da grande figura de Nasser, sua vitória na luta anticolonial, mas constata que, de certa forma, Nasser jogou fora o bebê com a água de banho, perseguindo estrangeiros e limitando a liberdade de expressão. Sua trajetória se esgota na humilhante derrota da chamada Guerra dos Seis Dias, um desastre irreversível.

Maalouf avança para outros momentos da história e para outras regiões do mundo onde o naufrágio já aconteceu, como o Império Soviético, ou parece muito próximo, como o Ocidente.

Ele destaca uma data, 1979. E duas revoluções: a islâmica, no Irã, e a chegada ao poder de Margaret Thatcher na Inglaterra. A primeira pelo potencial de ódio que iria trazer para a tensão entre xiitas e sunitas. A segunda, pela consagração da ideia de que os interesses pessoais são o motor do progresso, que se realiza pela soma de todos eles, pela invisível mão do mercado.

O livro segue o rastro dessas duas revoluções para alertar para o perigo de naufrágio que nos ronda. Maalouf é consciente, como eu, de que as pessoas, no anoitecer da vida, tendem a olhar suas juventudes como uma época de ouro. E confundem o ocaso de seus mundos pessoais com o próprio fim do mundo.

Tudo isso me interessa muito, pois, nos últimos livros que escrevi, tentei entender as razões pelas quais o Brasil frustrou as expectativas grandiosas que tínhamos sobre ele. O título de um dos livros, inspirado em Marco Aurélio, exprime essa frustração: “Onde está tudo aquilo agora?”.

Todo esse trabalho antecede a eleição de Bolsonaro. Poderia voltar atrás, ao otimismo dos anos de Juscelino, à Bossa Nova, aos debates sobre os filmes de Glauber Rocha, aos romances de Guimarães Rosa, aos contos de Clarice Lispector.


Por economia, concentro-me em Bolsonaro. Algumas vezes, comparei seu projeto a uma tentativa de imitar Thatcher, inclusive num traço que Maalouf não mencionou nela: seu sonho de retorno da moral vitoriana.

No projeto brasileiro, Paulo Guedes representava o ultraliberalismo, hoje atropelado pela pandemia e pelo desejo de reeleição de seu chefe; Bolsonaro, por sua vez, desejava um retorno aos costumes mais antigos, algo que esbarra no Congresso e se realiza plenamente na política externa, campo em que o Brasil se tornou uma referência de fundamentalismo religioso.

Mas a grande afirmação de uma política baseada no egoísmo foi a defesa da economia a qualquer custo, independente do número de mortos que resultaria de uma política de imunização de rebanho, desejada por Bolsonaro.

Aumento de armas, supressão de medidas de segurança no trânsito. Tudo isso foi apenas o prenúncio de uma política ambiental destrutiva. A floresta em pé é mais difícil de defender. A supressão dos povos indígenas fundidos num só povo é também uma garantia contra a sedução estrangeira.

O resultado disso: morte e destruição que se estendem também às relações políticas no interior da democracia. De vez em quando, um “acabou, porra!”, uma vontade de encher a boca do outro com porrada.

A imagem do naufrágio no Brasil soa romântica como se estivéssemos no Titanic. Aqui não há pianistas para nos distrair enquanto afundamos. A linguagem do poder é áspera e suja como nas salas de tortura.

No inferno de Dante havia pelo menos uma inscrição: deixai toda a esperança, vós que entrais.

Aqui nos empurram a pontapés e palavrões. Uma forte razão para desobedecer, manter a esperança.

Imagem do Dia

 

A terceira Terra, Abdou Momin

Palavras em turbilhão

"Era melhor do que qualquer filme de ação", escreveu um jornalista americano chamado Pete Hamill. "Um caos organizado —editores dando ordens aos gritos, matérias sendo levadas às pressas para a oficina, homens e mulheres metralhando enormes máquinas de escrever, telefones tocando, telexes despejando papel e todo mundo fumando e apagando o cigarro no chão com o sapato." Foi o que Hamill viu ao entrar pela primeira vez numa Redação de jornal —a do New York Post, em 1960— e decidir que era o que ele queria.

O mesmo me aconteceu ao entrar no Correio da Manhã, aqui no Rio, para encontrar José Lino Grünewald, editor do Segundo Caderno. Eu lhe telefonara no jornal, dissera-me seu leitor e ele me convidou a ir lá num fim de tarde. Era janeiro de 1966 e eu ainda não fizera 18 anos. Cheguei ao prédio na Lapa, subi ao 2º andar e vi exatamente o que esperava —palavras em turbilhão. Um ano depois, José Lino me levou ao editor-chefe e saí de lá como repórter.




Pelos dois anos seguintes, eu viveria na rua, apurando atropelamento de cachorro, cobrindo passeatas estudantis (correndo da polícia e, numa delas, sendo preso) e entrevistando Kim Novak. E a Redação era uma continuação natural daquilo. Entrava quem quisesse: contrabandista de uísque, vendedor de loteria, diplomata, crítico literário, tudo gente suspeita. Nelson Cavaquinho e Ismael Silva, vizinhos do jornal, não saíam de lá. Para os repórteres, era uma escola —ou você era safo ou se tornava.

Pete Hamill, que morreu outro dia em Nova York, aos 85 anos, foi tudo no ramo: repórter, enviado especial a revoluções, colunista, editor. Suas ferramentas eram um bloco, uma caneta e uma agenda de telefones.

Hoje, todas cabem num celular e as Redações se tornaram lugares de família. Ninguém mais fala alto, metralha máquinas, compra uísque de contrabando, apaga o cigarro no chão e sequer fuma.

Náufragos

Nós nos sentíamos um tanto confortáveis nas ilhas de civilidade que este país tinha há alguns poucos anos, por algumas poucas décadas desde a redemocratização. E tivemos a ilusão de que elas se expandiriam, quase de forma natural, se apenas fôssemos dignos e seguíssemos a marcha da Constituição e até mesmo se fôssemos um tanto conciliatórios — não era para sermos radicais, não é mesmo?

Essas ilhas encolheram e estamos cada vez mais náufragos.

Se a gente pudesse levar cinco coisas para uma ilha deserta, o que levaríamos? Esse exercício ancestral de imaginação ganha contornos mórbidos em meio a este país que implode. Com a velocidade do recuo só pudemos levar uma coisinha e outra, e diante disso restringimos nossas causas (é como se tivéssemos escolhido apenas algumas causas para levar adiante) àquelas que mais diretamente nos diziam respeito. Quase nos tornamos uns canibais.

Enquanto isso os direitos da infância foram sendo esquecidos. Durante os anos 2000 eles eram uma pauta bem mais ativa. Mas aí cada um passou a cuidar do seu assunto, a fazer com cada vez mais orgulho seus combates mais narcisistas. Não priorizamos as crianças, não demos mais a elas (a não ser no plano individual, em nossas famílias imediatas) o destaque que mereciam no espaço público, no debate público.

Não porque fôssemos uns calhordas. Mas talvez porque isso tenha sido planejado. Talvez tenhamos sido marionetes rumo ao fratricídio. Perdemos a noção de conjunto. E encolhemos as utopias, o tempo foi comprimido, nos tornamos mais imediatistas. A ideia de futuro (estamos a falar de crianças, afinal) foi sendo deixada de lado, as editorias de educação e as míseras pautas que reservávamos para a infância foram sendo demolidas.

Penso em tudo isso ao tentar entender o desvio gigantesco que terá ocorrido em algum momento — essa gigantesca fratura no solo que não vimos, esse monumental buraco na camada de ozônio que não quisemos ver — para que tomássemos uma criança de 10 anos como assassina. (Salvo alguns casos estudados na psiquiatria, algumas crianças precocemente psicopatas, cruéis. Mas nossa distração para com a sociopatia pode ficar para depois.)

Quando eu tinha 10 anos eu jogava bolinha de gude e disputava gol a gol com meu irmão (ou destruíamos os vasos da minha mãe jogando paredão na garagem) e era um CDF na escola, estava na quinta série e sentava quase sempre na segunda carteira, tirava ótimas notas e eu não sabia ainda o que era sexo (acreditem) e gostava de jogar bolinha de gude sozinho, jogava cartas sozinho. Não fui vítima de extrema violência, de alguma atrocidade, lembro-me bem que eu pude desenvolver minhas inadequações com certa liberdade.

Tempos depois eu era repórter de um jornalão e coincidiu de cobrir muitas pautas relativas aos direitos da criança e do adolescente. Cobri muita Febem. Essa que chamam hoje de Fundação Casa. E me lembro de reportar maus tratos sistemáticos e de ouvir (sim, isto não é uma absoluta novidade) de colegas de redação que aqueles meninos eram mais parrudos que muito adulto. “Leva o Champinha para casa, então!” (Esse foi o título de um artigo de jornalista que andou pela Veja e hoje dirige uma revista de extrema-direita.)

Escrevo tudo isso para tentar entender de qual pântano terá emergido não a Sara Winter (pois exatamente ela talvez entre no tema que deixei de lado, acima), mas seu séquito de apoiadores fanáticos, esses que gostaríamos de ver como zumbis, mas são nossos pares, nossos colegas, nossos vizinhos. Essas pessoas acabaram de sair, insaciáveis, da fogueira que matou Joana D’Arc ou temos alguns elementos mais recentes, nesta sociedade com outros tipos de espetáculo, que expliquem melhor a barbárie atual?

Não tenho muita duvida em relação ao fato de o bolsonarismo ser mais um sintoma do que uma causa. Esses vizinhos e parentes tão fálicos, com essas tochas, apoiam Bolsonaro e aceitam um genocídio porque, em algum momento, a gangorra da barbárie subiu vertiginosamente, nós nos esquecemos dos adolescentes em conflitos com a lei (eles continuam sendo espancados) e erguemos ainda mais nossos muros. Não nos preocupamos mais com nossas crianças e nossas meninas — Gilberto Dimenstein morreu com seus temas fora de moda.

E tudo se inverteu. Ou melhor, se amalgamou, ou se inverteu brutalmente como amálgama. Os assassinos passaram a definir os assassinos como se não fossem assassinos, os corruptos passaram a definir outros corruptos como corruptos, desde que conviesse a objetivos que nada tivessem a ver com corrupção, e a Sara Winter se tornou possível porque a variação súbita de paixões passou a ser algo quase recomendável. Passamos a jogar uma roleta-russa coletiva. E as crianças ou foram convidadas a brincar também de ódio (o ódio nas redes foi sendo antecipado) ou esquecemos que elas são alvos naturais nessa cultura da destruição, da morte.

Desconfio que a luta contra essas pós-senhoras de Santana não deva se restringir à estupefação com suas rezas macabras, com seus fervores raivosos, com suas tochas compungidas. E não que não tenhamos de pensar em lutas convencionais contra as tochas compungidas, mas penso que falta entender em que momento exato nos fodemos, deixamos que tudo ficasse misturado a ponto de essa mescla (como um câncer maldito mesmo) pudesse crescer do lado da barbárie, e não da civilização.

A adesão à barbárie — linguagem que, em tese, os bárbaros dominam melhor que a gente — talvez apenas atice esse fogo que matará novamente Joana D’Arc (não fui eu que matei, fomos todos nós) e a dignidade de cada criança de 10 anos, não apenas essa que está agora ameaçada por essas tochas. Até porque adesões à barbárie costumam ser mais sutis do que gostaríamos de supor. A invisibilidade do abuso sexual, da violência sexual contra crianças, por certo nunca deixou de existir. Mas por que deixamos de falar desse tema nos últimos anos?

Eu tenho medo que o tio da menina seja um herói para seus filhos e um respeitável homem de bem no seu trabalho, na sua patota que joga futebol às quartas. Mas não somente que ele seja um herói para esses filhos e colegas pelo que ele tenha dito ou feito de explicitamente nocivo aos nossos olhos resistentes, mas pelo que o tio da menina e da Sukita e do pavê represente (e não apenas como vilão evidente, portanto) de naturalização coletiva de códigos que deveríamos ter repudiado com mais ênfase, há algum tempo.

Mais ou menos como se, além de tudo, tivéssemos de nos defender de nós mesmos. Seja de nossa passividade, seja dos espasmos súbitos de justiçamento. (Notem que não estou a pregar ausência de reações de legítima defesa, de desobediência civil ou mesmo de violência quando for o momento de retirarmos violentadores em série de nossas instituições e de nossos portões. E sim que tudo isso só poderá ser feito a partir de uma linguagem que não esteja amalgamada com a dos adversários.)

E não que a culpa seja das vítimas ou dos resistentes, claro. Mas supostamente estou me dirigindo a vítimas e a resistentes, àqueles que ainda conseguem, em tese, identificar que estamos ilhados e essas ilhas civilizatórias estão encolhendo e os piratas estão vindo com sangue nos olhos, eles querem nossas ilhas para plantar mais soja e atear fogo em nossas artes e nos contaminar com doenças palpáveis e pandemias impalpáveis, eles farão isso e ainda dirão que estamos a desafiar o sagrado direito à propriedade e que a nossa defesa será um atentado às cruzes que eles portam — nós, despejados, é que seremos definidos como os culpados.

Por isso precisávamos ter defendido com mais ênfase os meninos da Febem e os bebês indígenas mortos por diarreia, as verbas congeladas da educação e (mil vezes mais) cada criança assassinada pela polícia no Rio e em nossas fuças, nós naturalizamos o avanço da barbárie até onde não pudemos mais e aí as pós-senhoras das tochas começaram a ser conduzidas pelo vácuo, esse que foi ocupado pelos Bolsonaros e pelas Saras, em meio a este nosso inverno, esse cansaço disfarçado de gritarias pontuais, esse assassinato das utopias em nome de individualismos múltiplos.

Falemos de censura

Como se sabe, houve episódios em que os mensageiros que levavam ao rei ou ao senhor as más novas corriam o sério risco de serem executados. Monarcas e chefes não só se consideravam uma espécie de deuses, no mínimo escolhidos por Deus, como detestavam ser contrariados. Como já haviam nascido em palácios e sido criados entre jardins, nunca aprenderam a lidar com a frustração e a adversidade; por isso, quem estivesse mais à mão é que pagava a sua fúria.

Já no tempo de Marcelo Caetano, no antigo regime, a actividade censória passou a ser chamada “exame prévio”, para evitar o termo “censura” (tal como a PIDE passou a ser “Direcção-Geral de Segurança”) pois havia que passar a imagem de abertura política, cá dentro e no estrangeiro, muito embora nada tenha mudado na substância.


Mas a antiga censura baseava-se na interrupção do fluxo de informação através do famoso lápis azul dos coronéis censores. Assim, os consumidores de informação não podiam ler nos jornais, ver na televisão ou ouvir na telefonia o que de facto acontecera e cuja divulgação pública o regime entendia não lhe convir. Os portugueses desenvolveram então a técnica de ler os jornais nas entrelinhas e nos espaços vazios dos layouts que não faziam sentido. Ficávamos então a saber que a censura cortara um texto de dimensão significativa.

Hoje, porém, tal procedimento está ultrapassado por ser incompatível com um estado de direito democrático e contrário à Constituição da República. Assim, havia que encontrar novas formas de censura para aplicar em países formalmente democráticos e onde o antigo sistema se tornara impossível. Na ditadura chinesa, por exemplo, vimos como mandaram prender recentemente o dono dum importante jornal de Hong Kong, desalinhado de Pequim, além de todas as manobras intimidatórias que a imprensa livre tem vindo a sofrer crescentemente no território.

De momento existem duas novas formas de censura que têm sido profusamente utilizadas, mesmo nos países de regime democrático. A primeira delas é o excesso de informação irrelevante. Segundo Yuval Noah Harari: “No passado, a censura funcionava através da interrupção do fluxo de informação. No século XXI essa censura funciona através do excesso de informações irrelevantes fornecidas às pessoas” (Homo Deus, Elsinore, 2017). A técnica é simples: os inúmeros canais de televisão, generalistas e por cabo, as rádios, os jornais e sobretudo as redes sociais, despejam constantemente toneladas de informação inútil sobre o público. Como se sabe, as overdoses nunca foram boas para a saúde.

Veja-se o caso dos principais blocos noticiosos em horário nobre nos canais generalistas, que são capazes de durar uma hora e meia… Veja-se o alinhamento das notícias, que muitas vezes privilegia o supérfluo, os fait divers, deixando lá mais para o meio as notícias do país e do mundo que realmente importam. Vejam-se os sacramentais directos de que se usa e abusa para muitas vezes não acrescentar qualquer informação nova. Veja-se também a estanha mistura entre informação e entretenimento: funciona como estratégia para desconcentrar o público das situações realmente importantes.

A segunda nova forma de censura é o lançamento de notícias falsas (fake news) nas quais se especializaram os governantes sem estatura e seus colaboradores e apoiantes desprovidos de qualquer ética, responsabilidade e espírito de missão. Estas notícias falsas destinam-se a gerar reacções negativas contra os adversários políticos e a fazer passar as opções da governança, mesmo quando são injustas, criminosas, imorais ou destrutivas.

Está provado que as notícias falsas não são brincadeira. Influenciaram importantes actos eleitorais como as eleições presidenciais americanas de 2016 ou o referendo do Brexit no Reino Unido, com as consequências que se conhecem, podendo até levar multidões à morte. A BBC cita um estudo publicado no jornal médico American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, onde se afirma que “cerca de 5800 pessoas foram parar a hospitais devido a informação falsa sobre a covid-19 que viram nas redes sociais. Muitas delas morreram após terem bebido metanol ou produtos de limpeza à base de álcool, acreditando ser uma cura para o vírus.”

O slogan do PREC era “o povo unido jamais será vencido!” Pois bem, precisamos de lançar um novo: “O povo bem informado jamais será enganado!”

Entre o vírus e o fogo

Quem temia que a vaca fosse para o brejo já tratou de se atualizar. Agora receia que não sobre uma única vaca, com este passar da boiada em direção ao atoleiro. No pântano nem há mais risco de que se atolem. O Pantanal era lugar de água, com cheias de rios que refletiam o céu. Agora é de chamas que não se apagam, por mais que se lute. Só se vierem chuvas fortes, que tardam. Seu regime foi alterado pelo desmatamento, enquanto os órgãos de fiscalização ambiental são desmantelados, para permitir a derrubada da mata, o garimpo ilegal, a invasão de terras indígenas, a grilagem. Num país que quer taxar livros e isenta igrejas. E onde presidente acha que pode ameaçar jornalistas.


Vemos há semanas que o Pantanal está pegando fogo — além do Pará, de áreas no Amazonas e por toda parte. Nem a Mata Atlântica escapa. Tivemos queimadas dias a fio na Mantiqueira e na Serra dos Órgãos. Além dos contumazes desmatadores, um sujeito tacou fogo no próprio carro em Araras para dar um golpe no seguro e incendiou a reserva florestal. Aprendera bem a lição nacional da impunidade para a esperteza de não produzir e se apropriar do alheio.

Já as araras com minúscula, aquelas azuis que inspiraram campanhas de preservação, se escaparem das labaredas em Mato Grosso ficam condenadas a morrer de fome. Queimou-se a mata onde viviam mais de 700 delas , acabaram frutas e sementes. Sorte igualmente terrível tiveram seus vizinhos que não voam: jacarés, antas, veados, quatis, onças, toda a fauna da região vai ardendo. E já começa outra frente de chamas na Serra da Canastra, onde nasce o São Francisco, o rio considerado da integração nacional. Acompanha a nação que se desintegra.

O mundo se preocupa com os efeitos sobre o clima. Ambientalistas avisam. Empresários alertam sobre as consequências na economia. Adianta?

Ficam muitos fazendo “lives”, enquanto o vírus e o fogo fazem “deaths”. E eu choro por minha terra e minha gente, meu país com nome de árvore, a se consumir neste inferno.

Brasil das segundas intenções

 


Plenitude democrática deve ser a principal preocupação

São inúmeras as preocupações – que vão da política à economia – com o que ocorre de ruim em nosso país. Dentro dessa dupla cabe tudo que diz respeito ao ser humano, mas nem todo político e/ou gestor público sabe com precisão o que significa isso. E a preocupação com a plenitude democrática é, sem dúvida, a mais importante de todas.

Essa preocupação domina hoje, com certeza, a maioria do povo norte-americano. Os Estados Unidos, ao longo de muitos anos, com suas virtudes e defeitos, têm sido um dos melhores exemplos para os países que elegeram, como o nosso, a liberdade. A eleição de Donald Trump e, agora, a chance em potencial da sua reeleição só aumentaram a preocupação com o futuro próximo dessa grande nação.


Na convenção do Partido Democrata, as palavras de muitos dos seus mais expressivos filiados, mas, especialmente, do ex-presidente Barack Obama, da ex-primeira-dama Michele Obama, do senador Bernie Sanders e do próprio candidato Joe Biden foram claras quanto à preocupação com os riscos que corre lá o regime democrático. “É isso que está em jogo neste momento: a nossa democracia”, disse Obama. “O caráter nacional – afirmou Biden – está em disputa nas urnas” e, com ele, explicitou, “a decência, a ciência, a democracia”.

Aqui no Brasil, leitor, a situação é pior. As instituições democráticas têm sido ameaçadas à luz do sol pelo próprio presidente da República desde o início da sua gestão. Um pouco mais calmo durante alguns dias, por medo e movido por interesse eleitoreiros, o presidente voltou agora à sua costumeira grosseria, demonstrando que não merece o cargo que ocupa. Primeiro, no Nordeste, afirmou: “Problemas, todos nós temos, mas eu costumo dizer, com todo respeito, na política eu sou imbroxável”, e, orgulhoso, concluiu: “Não é só na política não porque eu tenho uma filha de 9 anos de idade que foi feita sem aditivo”.

Antes de tomar ciência do que disse o presidente no Nordeste, havia lido a entrevista do ator Tony Ramos que, perguntado sobre o que espera do Brasil como cidadão, respondeu: “Só vai me dar alegria o dia em que esse país for nação por meio da educação”.

Logo após, vi a notícia na televisão sobre as ameaças feitas pelo presidente, em frente à Catedral Metropolitana de Brasília, a um repórter de “O Globo” que havia perguntado a ele sobre repasses de R$ 89 mil feitos por Fabrício Queiroz à primeira dama Michele Bolsonaro: “Vontade de encher tua boca de porrada”, ameaçou o repórter. Dia seguinte, de volta ao seu normal, e depois de dizer que é um atleta, praguejou: “Aquela história de atleta né, que o pessoal da imprensa vai para o deboche, mas quando pega um bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”.

É esse, leitor, o perfil de presidente que você deseja?

Meio homem

Se um homem não chora pela dor do mundo, ele é apenas meio homem; e haverá sempre dor no mundo. Um bom homem procurará aliviar a dor do mundo. Um tolo sequer a notará, a não ser em si mesmo. E o pobre infeliz homem mau levará a dor mais profundamente para dentro de tudo e a espalhará por onde quer que vá
William Saroyan, "A comédia humana"

 


A rampa que leva ao fascismo

Voluntário da causa republicana na Guerra Civil Espanhola, George Orwell desembarcou em Barcelona no final de 1936 com o propósito inequívoco de matar um fascista — no caso, um combatente das falanges do generalíssimo Francisco Franco. Menos de uma década depois, o escritor inglês constataria que a palavra “fascista”, empregada para qualificar (ou desqualificar) dos cachorros (!) à astrologia, ficara “quase desprovida de significado”. A vulgarização do termo, que Orwell registrou já em 1944, seguiu em curso desenfreado século XXI adentro. A eleição de um franco apologista da ditadura militar cuja retórica beligerante parece não conhecer freios — como se viu na recente ameaça física ao jornalista que o questionou sobre as ligações de sua família com o indefectível Fabrício Queiroz — revitalizou o termo antes usado para xingar os mais timoratos políticos de centro-direita e às vezes até de centro-esquerda. Mais ou menos como o espectro do comunismo da famosa abertura do "Manifesto comunista" de Marx e Engels, um fantasma nazifascista assombra o debate público nacional.

Em mensagem privada que vazou para a imprensa, Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), comparou a situação brasileira atual ao fim da República de Weimar com a ascensão do nazismo, e seu colega Gilmar Mendes vem falando em genocídio para caracterizar o descalabro do governo na condução da pandemia de Covid-19. No campo acadêmico, um conjunto substancial de pesquisadores da história e das ciências sociais — nem todos alinhados com a esquerda, ao contrário do que poderiam supor os tietes de Jair Bolsonaro — vem discutindo o problema com rigor e seriedade. Nenhum deles chega a afirmar que vivemos sob um regime fascista. Mas os traços autoritários do governo e o ressentimento fanático de seus apoiadores permitem aproximações com os movimentos que assombraram o mundo na primeira metade do século XX.



O fascismo histórico emergiu nos anos 20 e 30 do século passado, em uma Europa que mal se recuperara dos traumas da Primeira Guerra Mundial e já afundava na depressão econômica. A palavra vem dos Fasci di Combattimento, as organizações paramilitares italianas lideradas por Benito Mussolini. Com a vitoriosa marcha das esquadras fascistas sobre Roma, em 1922, o ex-socialista Mussolini sagrou-se como o pioneiro dos ditadores de extrema-direita na Europa. Mais frouxo em sua doutrina que seu irmão alemão — o nazismo de Adolf Hitler só tomaria o poder em 1933 —, o fascismo desligou-se de seu contexto original para se converter em um conceito ainda válido na ciência política.

O ensaísta e romancista italiano Umberto Eco, em um artigo famoso de 1995, divulgou a ideia de um “ur-fascismo”, ou “fascismo eterno”. Historiadores como o britânico Roger Griffin, de Oxford, aceitam um “fascismo genérico”, que, tal como o socialismo ou o liberalismo, pode se apresentar em diferentes tempos e lugares. Robert O. Paxton, autor de "A anatomia do fascismo", propôs a noção muito aceita de que o fascismo pode ser definido por uma série de “paixões mobilizadoras”, entre elas o sentimento de que se vive em uma crise que não pode ser resolvida por meios políticos tradicionais — presente nos ataques que Bolsonaro, hoje amigado com o centrão, fazia à “velha política” — e a confiança de que os instintos do líder superam a razão — patente entre bolsonaristas que se opõem ao distanciamento social e até ao uso de máscara como medidas contra a disseminação do coronavírus. “Não podemos classificar e analisar determinados fenômenos com o olhar dos anos 30”, disse o historiador Leandro Pereira Gonçalves, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Para que sirva à compreensão da atualidade, o conceito de fascismo “precisa ser maleável, adaptável”.

Pelo menos dois núcleos de estudo abrigados em universidades dedicam-se hoje ao autoritarismo de direita. O Observatório da Extrema Direita congrega 13 pesquisadores de áreas diversas, cujos objetos de análise “vão do local ao global”, conforme define um dos coordenadores do projeto, o historiador Odilon Caldeira Neto, também da UFJF e coautor, com o colega Leandro Gonçalves, do recém-lançado "O fascismo em camisas verdes" (Editora FGV), uma história do maior e mais longevo movimento fascista brasileiro, o integralismo fundado por Plínio Salgado, dos anos 1930 até suas versões mais recentes. O Observatório não se centra apenas na realidade brasileira, abrangendo o quadro amplo dos chamados populismos de direita que emergiram nos Estados Unidos de Donald Trump e na Hungria de Viktor Orbán. Caldeira Neto é reticente no emprego da categoria do fascismo para explicar o bolsonarismo, pois isso poderia ser um modo de “projetar o presente no passado”. “Há elementos comuns com o fascismo, como a criação do comunismo como o inimigo ideal”, disse. De outro lado, ele aponta o individualismo como uma diferença fundamental: o fascista do século passado — incluindo-se aí sua versão brasileira, o integralista — neutralizava sua individualidade no seio do partido, enquanto o bolsonarismo valorizaria o self-made man.

O segundo grupo de pesquisa, vinculado ao Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC de São Paulo (Labô) e com 40 participantes, é mais provocador no título: Bolsonarismo, o Novo Fascismo Brasileiro. Eduardo Wolf, doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do projeto, explica que o ponto de partida é o debate, corrente há mais de uma década, sobre a crise das democracias liberais — crise que, no instável cenário político brasileiro, teria conduzido a Bolsonaro. Wolf faz uma distinção importante entre o governo e o movimento social que lhe dá amparo. Se o residente do Palácio da Alvorada ainda se deixa limitar pelas regras do jogo político, o mesmo não vale para a turba que — sob incitação ou inspiração de seu líder — divulga memes e fake news pelas redes sociais, faz carreatas em frente a hospitais ou lança fogos de artifício contra o prédio do STF. “Não é mais mera acusação retórica falar em fascismo ou neofascismo quando se trata da configuração do movimento social bolsonarista”, disse Wolf.

“Os fascistas são mentirosos de uma categoria muito particular: acreditam nas mentiras que contam — mentiras que servem à construção de um passado nacional glorioso”

Bolsonaro já vai se convertendo em um caso de estudo internacional. Professor da New School for Social Research, em Nova York, o argentino Federico Finchelstein contou que utiliza, em sala de aula, o presidente brasileiro como exemplo da “deformação radical da realidade” promovida pelo discurso fascista. “Ele é muito explícito nisso. É até chamado de ‘mito’ por seus seguidores”, disse. Em um livro publicado neste ano, "Uma breve história das mentiras fascistas" — a ser lançado no Brasil em setembro, pelo selo Vertigem —, Finchelstein propõe que os fascistas são mentirosos de uma categoria muito particular: acreditam nas mentiras que contam — mentiras que servem à construção de um passado nacional glorioso, um mito retrógrado que dá base à prática política do líder autoritário. Amparada em uma profusão de textos e discursos de ideólogos fascistas do século passado, a tese abrange duas figuras contemporâneas que despontariam como herdeiros dessa linhagem: Bolsonaro e o presidente americano Donald Trump. “Não é possível chamá-los de fascistas neste momento. Mas ambos tentam degradar e diminuir a democracia, até onde isso é possível”, disse Finchelstein.

A construção de um inimigo perverso — uma das paixões mobilizadoras de Paxton — também é parte do modus operandi fascista, e o bolsonarismo é pródigo em inimigos, reais ou imaginários: a imprensa, o globalismo, a esquerda. Essa batalha contra inimigos múltiplos trava-se sobretudo nas redes sociais — e essa é uma diferença marcante em relação ao contexto histórico dos anos 1920 e 1930. O cientista político Giuseppe Cocco, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), disse que em uma era de “guerras moleculares” — como as que devastam a Síria e como as que afligem as periferias conflagradas do Rio de Janeiro —, nas quais todos lutam contra todos e impera a confusão, a identificação do inimigo se torna um “mecanismo de legitimação”.

Na guerra cultural brasileira, é comum que antigos aliados do governo ocupem esse lugar — como ocorreu com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Esse processo não foi criado pelo bolsonarismo, mas se agravou com ele. “Tudo isso já vinha sendo produzido pela polarização que o lulismo acirrou quando entrou na linha de fogo da Lava Jato”, avaliou Cocco. O combustível da guerra cultural bolsonarista é o ressentimento, e nisso o historiador Michel Gherman detecta um “sotaque nazista”. “Mais do que qualquer fascismo, o nazismo aciona ressentimentos atávicos”, disse ele. “E Bolsonaro é a encarnação do ressentimento”. Gherman também identifica, em Bolsonaro, afinidades estéticas com o nazismo, sobretudo na exaltação da violência como meio de fazer política. Uma imagem emblemática dessa estética, registrada em maio, seria o presidente improvisando um desfile marcial sobre um cavalo tomado de empréstimo da Polícia Militar de Brasília.

A retórica divisiva de Bolsonaro ampara-se em uma noção monolítica e excludente de povo. “Só existe um povo neste país”, disse o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub ao expressar seu repúdio a expressões como “povos indígenas” na reunião ministerial de abril. “O bolsonarismo sequestrou o povo brasileiro, que passou a ser apenas os 30% de apoiadores mais constantes”, disse Lilia Moritz Schwarcz, historiadora e antropóloga da USP. “É uma concepção tacanha de democracia.” Nessa linha, Adriana Novaes, pós-doutoranda em filosofia na USP — e, como Cocco e Gherman, participante do grupo de pesquisa do Labô — alerta sobre uma ameaça à pluralidade que deveria ser um fundamento das democracias liberais. “O fascismo falsamente atribui uma unidade ao país, que na verdade é constituído de vários grupos. E cada grupo também é plural”, disse.

Em sua aversão à diversidade e à divergência, Bolsonaro já provocou tensões desnecessárias com outros Poderes e instituições, tensões que vinham se suavizando desde o acordo com o centrão — uma acomodação política que, aliás, não seria estranha ao fascismo histórico, como observou Eduardo Wolf: “Mussolini nunca teve pejo em fazer composições as mais variadas”. Nessa provisória e ilusória calmaria, o governo pôde celebrar seu mais alto índice de aprovação desde a posse, de 37%, segundo o DataFolha. O ímpeto agressivo do presidente, no entanto, voltou a emergir na semana que passou. No domingo 23, perguntado por um jornalista de O GLOBO sobre os depósitos somando R$ 89 mil que no passado Queiroz fez na conta da hoje primeira-dama, Michelle, Bolsonaro ameaçou em vez de responder: “A vontade é encher tua boca de porrada”.

No dia seguinte, no Planalto, em novo ataque à imprensa, o presidente reafirmou uma de suas muitas crenças infundadas sobre a Covid-19, a já folclórica noção de que um “histórico de atleta” diminui a probabilidade de óbito pela doença — é por isso, disse Bolsonaro, que ele mesmo sobrevive ao vírus, ao passo que o jornalista “bundão” que contrair a doença pode ter menos sorte. A declaração foi dada em um evento chamado “Brasil vencendo a Covid” — o que é em si mesmo uma impostura: no mesmo dia, a conta dos mortos da Covid chegou a mais de 115 mil. Bolsonaro vem espalhando desinformação desde o início da pandemia, minimizando sua gravidade e insistindo no potencial de cura da hidroxicloroquina, cuja eficácia foi desmentida por estudos científicos. O presidente também faz afirmações bombásticas e infundadas sobre o sistema político — disse em março que as eleições de 2018 foram fraudadas para que ele não vencesse já no primeiro turno — e nega o caráter ditatorial do regime militar implantado pelo golpe de 1964. Não são meros destemperos verbais: em linha com as “mentiras fascistas” dissecadas no livro de Finchelstein, essas são distorções e falsidades que colocam em perigo a vida dos brasileiros, que desacreditam a democracia representativa, que conspurcam a história. George Orwell recomendava circunspecção no emprego da qualificação “fascista”. Seria recomendável que Bolsonaro mostrasse a mesma circunspecção para não merecê-la.

Na república dos falsos profetas

Eu nasci há dez mil anos atrás e foi mais ou menos no início dessa jornada milenar que vi na Praça Quinze o profeta vestido de branco, uma barba comprida igualmente branca, tudo para dar a impressão de que acabara de saltar do papiro bíblico. Chamava-se Gentileza, escrevia “Deus” nas paredes, e com ele aprendi uma lição. O homem que diz sou, não é. Era só aparecer uma moça de minissaia e o profeta corria atrás da pecadora, gritando para que ardesse no fogo dos infernos. As aparências enganam. Gentileza era puro ódio.

O Brasil é a república dos falsos profetas, dos santos de pau oco, a terra roxa onde, se plantando o medo de Deus no coração dos trouxas, tudo dá e será permitido. Tem bandido que não está nem aí para as aparências e vai sacando do revólver, “mãos ao alto”, exigindo que o otário lhe passe a grana. Há o de outro tipo que saca do coldre a ameaça divina, “Deus acima de todos”, para realizar sem derramamento de sangue os mesmos despropósitos. É o tipo que está no poder.


Não vai aqui qualquer blasfêmia contra Deus, em quem todos pomos fé irrestrita. O problema em 2020 é acreditar nos seus divulgadores. O governador, homem de bem flagrado na semana passada com a mão no bem alheio, faz o sinal da cruz sempre que passa diante de uma igreja. A pastora-deputada-evangélica com nome de flor, 55 filhos amorosos como plataforma política, escalou meia dúzia deles para formar uma quadrilha e - todos juntos, família acima de tudo - matar o pai da prole.

O Brasil já teve beatos melhores, vozes sofridas da palavra do Messias, e os coitados acabaram perseguidos como bandidos que não eram. Antônio Conselheiro saiu pelo sertão misturando a Bíblia com a dor de ter flagrado a mulher em adultério, e foi morto no acampamento revolucionário de Canudos. O beato Salu, da novela “Roque Santeiro”, gritava para a multidão de Asa Branca que “mais forte são os poderes de Deus”. Como é próprio da espécie, anunciava o fim do mundo.

Os fanáticos de 2020 trocaram a bata branca pelo terno preto, mas continuam ameaçando para breve o fim do mundo, provocado agora pela combinação diabólica da nuvem de gafanhoto do comunismo e a pouca vergonha da maconha. Recriaram o medo e monetizaram a ignorância, na certeza de que o Brasil é campeão mundial do desemprego, mas tem sempre vago um cargo terrivelmente bem assalariado de “Salvador da Pátria”. Exige-se apenas discurso moralista em defesa da família, como fazia a deputada-flor nas sessões plenárias pela manhã, poucas horas depois de passar a noite no pegapracapá do clube de swing.

Eu nem precisava ter nascido há tanto tempo para saber que no Brasil, com a exceção da Irmã Dulce, santo de casa não faz milagre. Rouba, difama, mata, racha. Basta ler os relatórios do Coaf e os autos dos processos contra esses falsos tementes do fogo do inferno. O pastor, que usou as águas do Rio Jordão para lavar a imagem do fã da tortura, também tinha a sua quadrilha – e o jornal de amanhã deve trazer na primeira página algum novo crime do evangelismo municipal, do protestantismo estadual ou do cristianismo federal. Deus foi arrolado como cúmplice, mas é inocente. Dez mil anos atrás, ele me disse - tem horror a essa gente mentirosa e ruim.

O Sistema de Defesa

Recente artigo de Raul Jungmann, neste mesmo espaço, ajuda o leitor a perceber a importância do papel das Forças Armadas, em um país com a dimensão do Brasil. Também a ver este papel independente das conjunturas políticas às quais seus generais às vezes se entregam. O Brasil não deve se imaginar sem Forças Armadas.

Mas, nos tempos atuais, a Defesa Nacional exige muito mais do que: Exército, Marinha e Aeronáutica. No mundo de hoje, a Defesa Nacional deve incluir universidades, centros de pesquisas, cada escola. O conhecimento é uma arma fundamental porque é a base de invenção das armas, além de ser a base da formação dos soldados. Além das armas tradicionais, a Defesa Nacional precisa de conhecimento.


Os centros de formação e de pesquisas são tão necessários quanto navios, tanques e aviões: matemática e seus algoritmos são mais poderosos que pólvora, até porque a ciência que fabrica as armas, e a educação ensina a usá-las. As estratégias militares precisam levar em conta o papel fundamental da educação como parte da Defesa Nacional.

Por mais armadas que sejam as Forças Armadas, elas serão frágeis se o povo não for educado para conhecer sua história, ter sonhos para o futuro e querer defender seu país, serão frágeis se deste povo educado não surgir uma elite com formação superior e dela um aparato científico e tecnológico capaz de dar sustentação a uma indústria inovativa e eficiente que sirva de base ao sistema de defesa.

Por isto, em um país em que os milhões de possíveis soldados são sabem ler, nem mesmo o lema escrito na bandeira, um país em que nossa educação de base está entre as piores do mundo e não prepara a juventude; onde com nossas universidades e centros de pesquisa fragilizados, é um equívoco tirar dinheiro da educação, ciência e tecnologia, para aumentar investimento em armas. Sem uma tropa educada, as armas modernas ficarão sem uso correto; sem ciência e tecnologia, estaremos submissos aos países que nos fornecem as armas. Nossa Defesa será aleijada, se os recursos que as Forças Armadas recebem forem tirados da educação.

Mais ainda do que especificamente as Forças Armadas, o Brasil precisa de um Sistema de Defesa Nacional, onde o Setor Educacional, em todos os níveis, seja considerado parte da nossa Defesa e um pilar fundamental. Aumentar recursos nas Forças Armadas tirando do setor educacional, é uma sabotagem da Defesa Nacional. Será um risco ainda maior se isto mostra que nossos oficiais superiores não têm a consciência da importância do conhecimento como base fundamental para nossa defesa, composta por Marinha, Exército, Aeronáutica, Universidades, Escolas, Centros de Pesquisas.