terça-feira, 1 de setembro de 2020

Falemos de censura

Como se sabe, houve episódios em que os mensageiros que levavam ao rei ou ao senhor as más novas corriam o sério risco de serem executados. Monarcas e chefes não só se consideravam uma espécie de deuses, no mínimo escolhidos por Deus, como detestavam ser contrariados. Como já haviam nascido em palácios e sido criados entre jardins, nunca aprenderam a lidar com a frustração e a adversidade; por isso, quem estivesse mais à mão é que pagava a sua fúria.

Já no tempo de Marcelo Caetano, no antigo regime, a actividade censória passou a ser chamada “exame prévio”, para evitar o termo “censura” (tal como a PIDE passou a ser “Direcção-Geral de Segurança”) pois havia que passar a imagem de abertura política, cá dentro e no estrangeiro, muito embora nada tenha mudado na substância.


Mas a antiga censura baseava-se na interrupção do fluxo de informação através do famoso lápis azul dos coronéis censores. Assim, os consumidores de informação não podiam ler nos jornais, ver na televisão ou ouvir na telefonia o que de facto acontecera e cuja divulgação pública o regime entendia não lhe convir. Os portugueses desenvolveram então a técnica de ler os jornais nas entrelinhas e nos espaços vazios dos layouts que não faziam sentido. Ficávamos então a saber que a censura cortara um texto de dimensão significativa.

Hoje, porém, tal procedimento está ultrapassado por ser incompatível com um estado de direito democrático e contrário à Constituição da República. Assim, havia que encontrar novas formas de censura para aplicar em países formalmente democráticos e onde o antigo sistema se tornara impossível. Na ditadura chinesa, por exemplo, vimos como mandaram prender recentemente o dono dum importante jornal de Hong Kong, desalinhado de Pequim, além de todas as manobras intimidatórias que a imprensa livre tem vindo a sofrer crescentemente no território.

De momento existem duas novas formas de censura que têm sido profusamente utilizadas, mesmo nos países de regime democrático. A primeira delas é o excesso de informação irrelevante. Segundo Yuval Noah Harari: “No passado, a censura funcionava através da interrupção do fluxo de informação. No século XXI essa censura funciona através do excesso de informações irrelevantes fornecidas às pessoas” (Homo Deus, Elsinore, 2017). A técnica é simples: os inúmeros canais de televisão, generalistas e por cabo, as rádios, os jornais e sobretudo as redes sociais, despejam constantemente toneladas de informação inútil sobre o público. Como se sabe, as overdoses nunca foram boas para a saúde.

Veja-se o caso dos principais blocos noticiosos em horário nobre nos canais generalistas, que são capazes de durar uma hora e meia… Veja-se o alinhamento das notícias, que muitas vezes privilegia o supérfluo, os fait divers, deixando lá mais para o meio as notícias do país e do mundo que realmente importam. Vejam-se os sacramentais directos de que se usa e abusa para muitas vezes não acrescentar qualquer informação nova. Veja-se também a estanha mistura entre informação e entretenimento: funciona como estratégia para desconcentrar o público das situações realmente importantes.

A segunda nova forma de censura é o lançamento de notícias falsas (fake news) nas quais se especializaram os governantes sem estatura e seus colaboradores e apoiantes desprovidos de qualquer ética, responsabilidade e espírito de missão. Estas notícias falsas destinam-se a gerar reacções negativas contra os adversários políticos e a fazer passar as opções da governança, mesmo quando são injustas, criminosas, imorais ou destrutivas.

Está provado que as notícias falsas não são brincadeira. Influenciaram importantes actos eleitorais como as eleições presidenciais americanas de 2016 ou o referendo do Brexit no Reino Unido, com as consequências que se conhecem, podendo até levar multidões à morte. A BBC cita um estudo publicado no jornal médico American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, onde se afirma que “cerca de 5800 pessoas foram parar a hospitais devido a informação falsa sobre a covid-19 que viram nas redes sociais. Muitas delas morreram após terem bebido metanol ou produtos de limpeza à base de álcool, acreditando ser uma cura para o vírus.”

O slogan do PREC era “o povo unido jamais será vencido!” Pois bem, precisamos de lançar um novo: “O povo bem informado jamais será enganado!”

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