Nós nos sentíamos um tanto confortáveis nas ilhas de civilidade que este país tinha há alguns poucos anos, por algumas poucas décadas desde a redemocratização. E tivemos a ilusão de que elas se expandiriam, quase de forma natural, se apenas fôssemos dignos e seguíssemos a marcha da Constituição e até mesmo se fôssemos um tanto conciliatórios — não era para sermos radicais, não é mesmo?
Essas ilhas encolheram e estamos cada vez mais náufragos.
Se a gente pudesse levar cinco coisas para uma ilha deserta, o que levaríamos? Esse exercício ancestral de imaginação ganha contornos mórbidos em meio a este país que implode. Com a velocidade do recuo só pudemos levar uma coisinha e outra, e diante disso restringimos nossas causas (é como se tivéssemos escolhido apenas algumas causas para levar adiante) àquelas que mais diretamente nos diziam respeito. Quase nos tornamos uns canibais.
Enquanto isso os direitos da infância foram sendo esquecidos. Durante os anos 2000 eles eram uma pauta bem mais ativa. Mas aí cada um passou a cuidar do seu assunto, a fazer com cada vez mais orgulho seus combates mais narcisistas. Não priorizamos as crianças, não demos mais a elas (a não ser no plano individual, em nossas famílias imediatas) o destaque que mereciam no espaço público, no debate público.
Não porque fôssemos uns calhordas. Mas talvez porque isso tenha sido planejado. Talvez tenhamos sido marionetes rumo ao fratricídio. Perdemos a noção de conjunto. E encolhemos as utopias, o tempo foi comprimido, nos tornamos mais imediatistas. A ideia de futuro (estamos a falar de crianças, afinal) foi sendo deixada de lado, as editorias de educação e as míseras pautas que reservávamos para a infância foram sendo demolidas.
Penso em tudo isso ao tentar entender o desvio gigantesco que terá ocorrido em algum momento — essa gigantesca fratura no solo que não vimos, esse monumental buraco na camada de ozônio que não quisemos ver — para que tomássemos uma criança de 10 anos como assassina. (Salvo alguns casos estudados na psiquiatria, algumas crianças precocemente psicopatas, cruéis. Mas nossa distração para com a sociopatia pode ficar para depois.)
Quando eu tinha 10 anos eu jogava bolinha de gude e disputava gol a gol com meu irmão (ou destruíamos os vasos da minha mãe jogando paredão na garagem) e era um CDF na escola, estava na quinta série e sentava quase sempre na segunda carteira, tirava ótimas notas e eu não sabia ainda o que era sexo (acreditem) e gostava de jogar bolinha de gude sozinho, jogava cartas sozinho. Não fui vítima de extrema violência, de alguma atrocidade, lembro-me bem que eu pude desenvolver minhas inadequações com certa liberdade.
Tempos depois eu era repórter de um jornalão e coincidiu de cobrir muitas pautas relativas aos direitos da criança e do adolescente. Cobri muita Febem. Essa que chamam hoje de Fundação Casa. E me lembro de reportar maus tratos sistemáticos e de ouvir (sim, isto não é uma absoluta novidade) de colegas de redação que aqueles meninos eram mais parrudos que muito adulto. “Leva o Champinha para casa, então!” (Esse foi o título de um artigo de jornalista que andou pela Veja e hoje dirige uma revista de extrema-direita.)
Escrevo tudo isso para tentar entender de qual pântano terá emergido não a Sara Winter (pois exatamente ela talvez entre no tema que deixei de lado, acima), mas seu séquito de apoiadores fanáticos, esses que gostaríamos de ver como zumbis, mas são nossos pares, nossos colegas, nossos vizinhos. Essas pessoas acabaram de sair, insaciáveis, da fogueira que matou Joana D’Arc ou temos alguns elementos mais recentes, nesta sociedade com outros tipos de espetáculo, que expliquem melhor a barbárie atual?
Não tenho muita duvida em relação ao fato de o bolsonarismo ser mais um sintoma do que uma causa. Esses vizinhos e parentes tão fálicos, com essas tochas, apoiam Bolsonaro e aceitam um genocídio porque, em algum momento, a gangorra da barbárie subiu vertiginosamente, nós nos esquecemos dos adolescentes em conflitos com a lei (eles continuam sendo espancados) e erguemos ainda mais nossos muros. Não nos preocupamos mais com nossas crianças e nossas meninas — Gilberto Dimenstein morreu com seus temas fora de moda.
E tudo se inverteu. Ou melhor, se amalgamou, ou se inverteu brutalmente como amálgama. Os assassinos passaram a definir os assassinos como se não fossem assassinos, os corruptos passaram a definir outros corruptos como corruptos, desde que conviesse a objetivos que nada tivessem a ver com corrupção, e a Sara Winter se tornou possível porque a variação súbita de paixões passou a ser algo quase recomendável. Passamos a jogar uma roleta-russa coletiva. E as crianças ou foram convidadas a brincar também de ódio (o ódio nas redes foi sendo antecipado) ou esquecemos que elas são alvos naturais nessa cultura da destruição, da morte.
Desconfio que a luta contra essas pós-senhoras de Santana não deva se restringir à estupefação com suas rezas macabras, com seus fervores raivosos, com suas tochas compungidas. E não que não tenhamos de pensar em lutas convencionais contra as tochas compungidas, mas penso que falta entender em que momento exato nos fodemos, deixamos que tudo ficasse misturado a ponto de essa mescla (como um câncer maldito mesmo) pudesse crescer do lado da barbárie, e não da civilização.
A adesão à barbárie — linguagem que, em tese, os bárbaros dominam melhor que a gente — talvez apenas atice esse fogo que matará novamente Joana D’Arc (não fui eu que matei, fomos todos nós) e a dignidade de cada criança de 10 anos, não apenas essa que está agora ameaçada por essas tochas. Até porque adesões à barbárie costumam ser mais sutis do que gostaríamos de supor. A invisibilidade do abuso sexual, da violência sexual contra crianças, por certo nunca deixou de existir. Mas por que deixamos de falar desse tema nos últimos anos?
Eu tenho medo que o tio da menina seja um herói para seus filhos e um respeitável homem de bem no seu trabalho, na sua patota que joga futebol às quartas. Mas não somente que ele seja um herói para esses filhos e colegas pelo que ele tenha dito ou feito de explicitamente nocivo aos nossos olhos resistentes, mas pelo que o tio da menina e da Sukita e do pavê represente (e não apenas como vilão evidente, portanto) de naturalização coletiva de códigos que deveríamos ter repudiado com mais ênfase, há algum tempo.
Mais ou menos como se, além de tudo, tivéssemos de nos defender de nós mesmos. Seja de nossa passividade, seja dos espasmos súbitos de justiçamento. (Notem que não estou a pregar ausência de reações de legítima defesa, de desobediência civil ou mesmo de violência quando for o momento de retirarmos violentadores em série de nossas instituições e de nossos portões. E sim que tudo isso só poderá ser feito a partir de uma linguagem que não esteja amalgamada com a dos adversários.)
E não que a culpa seja das vítimas ou dos resistentes, claro. Mas supostamente estou me dirigindo a vítimas e a resistentes, àqueles que ainda conseguem, em tese, identificar que estamos ilhados e essas ilhas civilizatórias estão encolhendo e os piratas estão vindo com sangue nos olhos, eles querem nossas ilhas para plantar mais soja e atear fogo em nossas artes e nos contaminar com doenças palpáveis e pandemias impalpáveis, eles farão isso e ainda dirão que estamos a desafiar o sagrado direito à propriedade e que a nossa defesa será um atentado às cruzes que eles portam — nós, despejados, é que seremos definidos como os culpados.
Por isso precisávamos ter defendido com mais ênfase os meninos da Febem e os bebês indígenas mortos por diarreia, as verbas congeladas da educação e (mil vezes mais) cada criança assassinada pela polícia no Rio e em nossas fuças, nós naturalizamos o avanço da barbárie até onde não pudemos mais e aí as pós-senhoras das tochas começaram a ser conduzidas pelo vácuo, esse que foi ocupado pelos Bolsonaros e pelas Saras, em meio a este nosso inverno, esse cansaço disfarçado de gritarias pontuais, esse assassinato das utopias em nome de individualismos múltiplos.
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