terça-feira, 1 de setembro de 2020

A rampa que leva ao fascismo

Voluntário da causa republicana na Guerra Civil Espanhola, George Orwell desembarcou em Barcelona no final de 1936 com o propósito inequívoco de matar um fascista — no caso, um combatente das falanges do generalíssimo Francisco Franco. Menos de uma década depois, o escritor inglês constataria que a palavra “fascista”, empregada para qualificar (ou desqualificar) dos cachorros (!) à astrologia, ficara “quase desprovida de significado”. A vulgarização do termo, que Orwell registrou já em 1944, seguiu em curso desenfreado século XXI adentro. A eleição de um franco apologista da ditadura militar cuja retórica beligerante parece não conhecer freios — como se viu na recente ameaça física ao jornalista que o questionou sobre as ligações de sua família com o indefectível Fabrício Queiroz — revitalizou o termo antes usado para xingar os mais timoratos políticos de centro-direita e às vezes até de centro-esquerda. Mais ou menos como o espectro do comunismo da famosa abertura do "Manifesto comunista" de Marx e Engels, um fantasma nazifascista assombra o debate público nacional.

Em mensagem privada que vazou para a imprensa, Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), comparou a situação brasileira atual ao fim da República de Weimar com a ascensão do nazismo, e seu colega Gilmar Mendes vem falando em genocídio para caracterizar o descalabro do governo na condução da pandemia de Covid-19. No campo acadêmico, um conjunto substancial de pesquisadores da história e das ciências sociais — nem todos alinhados com a esquerda, ao contrário do que poderiam supor os tietes de Jair Bolsonaro — vem discutindo o problema com rigor e seriedade. Nenhum deles chega a afirmar que vivemos sob um regime fascista. Mas os traços autoritários do governo e o ressentimento fanático de seus apoiadores permitem aproximações com os movimentos que assombraram o mundo na primeira metade do século XX.



O fascismo histórico emergiu nos anos 20 e 30 do século passado, em uma Europa que mal se recuperara dos traumas da Primeira Guerra Mundial e já afundava na depressão econômica. A palavra vem dos Fasci di Combattimento, as organizações paramilitares italianas lideradas por Benito Mussolini. Com a vitoriosa marcha das esquadras fascistas sobre Roma, em 1922, o ex-socialista Mussolini sagrou-se como o pioneiro dos ditadores de extrema-direita na Europa. Mais frouxo em sua doutrina que seu irmão alemão — o nazismo de Adolf Hitler só tomaria o poder em 1933 —, o fascismo desligou-se de seu contexto original para se converter em um conceito ainda válido na ciência política.

O ensaísta e romancista italiano Umberto Eco, em um artigo famoso de 1995, divulgou a ideia de um “ur-fascismo”, ou “fascismo eterno”. Historiadores como o britânico Roger Griffin, de Oxford, aceitam um “fascismo genérico”, que, tal como o socialismo ou o liberalismo, pode se apresentar em diferentes tempos e lugares. Robert O. Paxton, autor de "A anatomia do fascismo", propôs a noção muito aceita de que o fascismo pode ser definido por uma série de “paixões mobilizadoras”, entre elas o sentimento de que se vive em uma crise que não pode ser resolvida por meios políticos tradicionais — presente nos ataques que Bolsonaro, hoje amigado com o centrão, fazia à “velha política” — e a confiança de que os instintos do líder superam a razão — patente entre bolsonaristas que se opõem ao distanciamento social e até ao uso de máscara como medidas contra a disseminação do coronavírus. “Não podemos classificar e analisar determinados fenômenos com o olhar dos anos 30”, disse o historiador Leandro Pereira Gonçalves, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Para que sirva à compreensão da atualidade, o conceito de fascismo “precisa ser maleável, adaptável”.

Pelo menos dois núcleos de estudo abrigados em universidades dedicam-se hoje ao autoritarismo de direita. O Observatório da Extrema Direita congrega 13 pesquisadores de áreas diversas, cujos objetos de análise “vão do local ao global”, conforme define um dos coordenadores do projeto, o historiador Odilon Caldeira Neto, também da UFJF e coautor, com o colega Leandro Gonçalves, do recém-lançado "O fascismo em camisas verdes" (Editora FGV), uma história do maior e mais longevo movimento fascista brasileiro, o integralismo fundado por Plínio Salgado, dos anos 1930 até suas versões mais recentes. O Observatório não se centra apenas na realidade brasileira, abrangendo o quadro amplo dos chamados populismos de direita que emergiram nos Estados Unidos de Donald Trump e na Hungria de Viktor Orbán. Caldeira Neto é reticente no emprego da categoria do fascismo para explicar o bolsonarismo, pois isso poderia ser um modo de “projetar o presente no passado”. “Há elementos comuns com o fascismo, como a criação do comunismo como o inimigo ideal”, disse. De outro lado, ele aponta o individualismo como uma diferença fundamental: o fascista do século passado — incluindo-se aí sua versão brasileira, o integralista — neutralizava sua individualidade no seio do partido, enquanto o bolsonarismo valorizaria o self-made man.

O segundo grupo de pesquisa, vinculado ao Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC de São Paulo (Labô) e com 40 participantes, é mais provocador no título: Bolsonarismo, o Novo Fascismo Brasileiro. Eduardo Wolf, doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do projeto, explica que o ponto de partida é o debate, corrente há mais de uma década, sobre a crise das democracias liberais — crise que, no instável cenário político brasileiro, teria conduzido a Bolsonaro. Wolf faz uma distinção importante entre o governo e o movimento social que lhe dá amparo. Se o residente do Palácio da Alvorada ainda se deixa limitar pelas regras do jogo político, o mesmo não vale para a turba que — sob incitação ou inspiração de seu líder — divulga memes e fake news pelas redes sociais, faz carreatas em frente a hospitais ou lança fogos de artifício contra o prédio do STF. “Não é mais mera acusação retórica falar em fascismo ou neofascismo quando se trata da configuração do movimento social bolsonarista”, disse Wolf.

“Os fascistas são mentirosos de uma categoria muito particular: acreditam nas mentiras que contam — mentiras que servem à construção de um passado nacional glorioso”

Bolsonaro já vai se convertendo em um caso de estudo internacional. Professor da New School for Social Research, em Nova York, o argentino Federico Finchelstein contou que utiliza, em sala de aula, o presidente brasileiro como exemplo da “deformação radical da realidade” promovida pelo discurso fascista. “Ele é muito explícito nisso. É até chamado de ‘mito’ por seus seguidores”, disse. Em um livro publicado neste ano, "Uma breve história das mentiras fascistas" — a ser lançado no Brasil em setembro, pelo selo Vertigem —, Finchelstein propõe que os fascistas são mentirosos de uma categoria muito particular: acreditam nas mentiras que contam — mentiras que servem à construção de um passado nacional glorioso, um mito retrógrado que dá base à prática política do líder autoritário. Amparada em uma profusão de textos e discursos de ideólogos fascistas do século passado, a tese abrange duas figuras contemporâneas que despontariam como herdeiros dessa linhagem: Bolsonaro e o presidente americano Donald Trump. “Não é possível chamá-los de fascistas neste momento. Mas ambos tentam degradar e diminuir a democracia, até onde isso é possível”, disse Finchelstein.

A construção de um inimigo perverso — uma das paixões mobilizadoras de Paxton — também é parte do modus operandi fascista, e o bolsonarismo é pródigo em inimigos, reais ou imaginários: a imprensa, o globalismo, a esquerda. Essa batalha contra inimigos múltiplos trava-se sobretudo nas redes sociais — e essa é uma diferença marcante em relação ao contexto histórico dos anos 1920 e 1930. O cientista político Giuseppe Cocco, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), disse que em uma era de “guerras moleculares” — como as que devastam a Síria e como as que afligem as periferias conflagradas do Rio de Janeiro —, nas quais todos lutam contra todos e impera a confusão, a identificação do inimigo se torna um “mecanismo de legitimação”.

Na guerra cultural brasileira, é comum que antigos aliados do governo ocupem esse lugar — como ocorreu com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Esse processo não foi criado pelo bolsonarismo, mas se agravou com ele. “Tudo isso já vinha sendo produzido pela polarização que o lulismo acirrou quando entrou na linha de fogo da Lava Jato”, avaliou Cocco. O combustível da guerra cultural bolsonarista é o ressentimento, e nisso o historiador Michel Gherman detecta um “sotaque nazista”. “Mais do que qualquer fascismo, o nazismo aciona ressentimentos atávicos”, disse ele. “E Bolsonaro é a encarnação do ressentimento”. Gherman também identifica, em Bolsonaro, afinidades estéticas com o nazismo, sobretudo na exaltação da violência como meio de fazer política. Uma imagem emblemática dessa estética, registrada em maio, seria o presidente improvisando um desfile marcial sobre um cavalo tomado de empréstimo da Polícia Militar de Brasília.

A retórica divisiva de Bolsonaro ampara-se em uma noção monolítica e excludente de povo. “Só existe um povo neste país”, disse o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub ao expressar seu repúdio a expressões como “povos indígenas” na reunião ministerial de abril. “O bolsonarismo sequestrou o povo brasileiro, que passou a ser apenas os 30% de apoiadores mais constantes”, disse Lilia Moritz Schwarcz, historiadora e antropóloga da USP. “É uma concepção tacanha de democracia.” Nessa linha, Adriana Novaes, pós-doutoranda em filosofia na USP — e, como Cocco e Gherman, participante do grupo de pesquisa do Labô — alerta sobre uma ameaça à pluralidade que deveria ser um fundamento das democracias liberais. “O fascismo falsamente atribui uma unidade ao país, que na verdade é constituído de vários grupos. E cada grupo também é plural”, disse.

Em sua aversão à diversidade e à divergência, Bolsonaro já provocou tensões desnecessárias com outros Poderes e instituições, tensões que vinham se suavizando desde o acordo com o centrão — uma acomodação política que, aliás, não seria estranha ao fascismo histórico, como observou Eduardo Wolf: “Mussolini nunca teve pejo em fazer composições as mais variadas”. Nessa provisória e ilusória calmaria, o governo pôde celebrar seu mais alto índice de aprovação desde a posse, de 37%, segundo o DataFolha. O ímpeto agressivo do presidente, no entanto, voltou a emergir na semana que passou. No domingo 23, perguntado por um jornalista de O GLOBO sobre os depósitos somando R$ 89 mil que no passado Queiroz fez na conta da hoje primeira-dama, Michelle, Bolsonaro ameaçou em vez de responder: “A vontade é encher tua boca de porrada”.

No dia seguinte, no Planalto, em novo ataque à imprensa, o presidente reafirmou uma de suas muitas crenças infundadas sobre a Covid-19, a já folclórica noção de que um “histórico de atleta” diminui a probabilidade de óbito pela doença — é por isso, disse Bolsonaro, que ele mesmo sobrevive ao vírus, ao passo que o jornalista “bundão” que contrair a doença pode ter menos sorte. A declaração foi dada em um evento chamado “Brasil vencendo a Covid” — o que é em si mesmo uma impostura: no mesmo dia, a conta dos mortos da Covid chegou a mais de 115 mil. Bolsonaro vem espalhando desinformação desde o início da pandemia, minimizando sua gravidade e insistindo no potencial de cura da hidroxicloroquina, cuja eficácia foi desmentida por estudos científicos. O presidente também faz afirmações bombásticas e infundadas sobre o sistema político — disse em março que as eleições de 2018 foram fraudadas para que ele não vencesse já no primeiro turno — e nega o caráter ditatorial do regime militar implantado pelo golpe de 1964. Não são meros destemperos verbais: em linha com as “mentiras fascistas” dissecadas no livro de Finchelstein, essas são distorções e falsidades que colocam em perigo a vida dos brasileiros, que desacreditam a democracia representativa, que conspurcam a história. George Orwell recomendava circunspecção no emprego da qualificação “fascista”. Seria recomendável que Bolsonaro mostrasse a mesma circunspecção para não merecê-la.

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