quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Mudar o jeito de resolver problemas

É a hora do tiroteio. Quem foram os policiais, as mulheres grávidas, as crianças despedaçadas a tiros de fuzil do dia? Não ha mais singular nesses relatos. Aonde é mesmo aquele mar de miséria amontoada em barracos de bloco? Qual estado deixou de pagar a polícia agora? Onde é que o crime passou a correr oficialmente solto? Que prisão está tendo a sua quinzena de matadouro? Onde está batendo hoje a epidemia do século retrasado?

A peste, a guerra, a fome e a morte galopam soltas pela geografia do caos dos jacarezinhos, das rocinhas, dos “complexos” e periferias do favelão nacional que vai engolindo o país que nós quase fomos. A toda hora os dois brasis cruzam “a Linha” e a morte sem edição fica registrada num canto de câmera do nosso sistema de hiper-vigilância só das consequências. Não ha como deter isso com polícia. Nada – nem o Exército Brasileiro – resistirá ao contato direto com esse grau de infecção. Enquanto as mães da favela não tiverem um argumento convincente para demonstrar aos seus filhos que vão ganhar mais estudando que pegando o fuzil, o sistema seguirá nos comendo por dentro.

Corta…



É a hora dos “especialistas”. Gente que tem o que vestir, gente que tem onde morar. Mas o Brasil de que eles falam não é esse do Rio de Janeiro. Nada no deles está fundamentalmente errado senão o eleitor que “escolhe” sempre mal. “Basta escolher a pessoa certa. Um homem ético…” (…mas que compre tempo na TV e ponha votos na urna, seja como for…). O compromisso com a impassibilidade chega às raias da lobotomia. Uns só falam do que os outros disseram. Nenhum alarme, nenhum sinal das hemorragias maciças cá de fora. “Se isto, então aquilo“. “Na hipótese um, dois. Na hipótese dois, três“. “O governo perdeu“. “O governo ganhou“. A bolsa sobe ou a bolsa cai mas as tertúlias nunca vêm ao chão. Não ha “país”. As consequências não têm causas e as causas não têm consequências.

É proibido constatar, mas na espreita rosna a Venezuela. É o que resgata o assunto “eleição” da irrelevância absoluta. Mas não ha qualquer espaço para a esperança. É o campeonato do nada. Os “especialistas” estão aposentados. O futuro do Brasil está aposentado.

O Brasil não tem de resolver este ou aquele problema. Tem é de mudar o seu jeito de resolver problemas 
Circulam pela internet um monte de listas de medidas para “resolver o problema nacional”. “Assine aí! Não se omita!” Mudar o nome de um crime, multiplicar penas cujo cumprimento não se exige, “proibir” mais isto ou aquilo, “acabar” com não sei o quê, criar mais uma “politica pública”…

O que nos falta não são mais leis vindas de cima, é poder para o povo de tornar efetivas as suas cobranças. Transparência, fiscalização, ética não se pede. Arma-se a mão do povo para exigi-las contra a sobrevivência do emprego de quem foi contratado ou eleito para entregá-las, assim como se exige (e por isso se entrega) todo e qualquer trabalho contratado no Brasil ou fora do Brasil, menos o público.

As hipérboles são o invólucro da mentira. Toda lei pétrea seria estupida se não fosse como são as nossas apenas desonesta. A única exceção é para a que mantem o jogo sendo jogado. “É proibido tornar antidemocrático o jogo democrático“. Em tudo o mais, amarrar o leme e esperar que o barco ande sozinho é a maneira mais certa de naufragar.

Essa violência das ruas é de fera acuada nas carências da Idade Média em plena era da abundância. É de continuar estrebuchando na doença com a cura ao alcance da mão. É de ser cobrado pelo erro alheio mesmo tendo pago o preço de fazer tudo certo. É da certeza do triunfo da mentira sempre.

O Brasil não tem de resolver este ou aquele problema. Tem é de mudar o seu jeito de resolver problemas. O Brasil precisa de uma revolução: das vitórias irrecorríveis do bem que só as deseleições à mão armada podem garantir. É preciso abrirmo-nos à reforma permanente para habilitarmo-nos a desconstruir, pedra por pedra, esse edifício torto em que nos enfiaram. Os candidatos, que têm “porteiros” com quem se acumpliciar, vá lá. Mas a imprensa não precisa disputar a próxima eleição. É a ela que cabe criar esse novo tipo de demanda no mercado do voto. Nada que precise ser inventado nas redações. É só informar como funciona o mundo que funciona.

Democracia é um “software livre”. Um aplicativo de código aberto. O primeiro passo é montar um sistema real de representação para a nossa “democracia representativa”. Enquanto continuarmos sem saber quem é quem na hora de decidir prevalecerão os seis do STF. E enquanto puderem prevalecer os seis do STF eles serão isso em que se transformaram. Voto distrital puro, com um único representante eleito por cada pedaço da população (para poder ser legitimamente deseleito em caso de necessidade, nada mais) é o jeito testado e aprovado de esclarecer isso. Dizermos nós de que leis estamos precisando com leis de iniciativa popular é o jeito democrático de estabelecer prioridades. Deixar bem claro quem manda em quem com recall para político que trai seu eleitor e para juiz que trai a justiça; desafiar com referendos as leis que saírem deformadas dos legislativos é o jeito democrático de garantir que não haverá falcatruas.

Essas três ferramentas, quando andam juntas e somente quando andam juntas, são infernais. Invertem a direção do vetor primordial de forças sobre o sistema. Põem todo o poder nas mãos de cada cidadão mas só permitem que ele o exerça sobre o seu representante. Dão a todo o mundo o poder de obrigar o governo a se mexer mas a ninguém força bastante para agir sozinho ou para se impor a quem quer que seja.

O Brasil só se salva enriquecendo, e rápido. Mas felizmente não é preciso esperar o resultado inteiro. Basta o poder enriquecer que se destrava com os velhos remédios da política. Não é preciso estudar medicina para salvar a própria vida tomando antibióticos. Eles curam até os idiotas. Democratizar o nosso jeito de resolver problemas daria aos brasileiros a condição de voltar a jogar com as próprias pernas. E os brasileiros sempre se dão bem quando jogam com as próprias pernas. Eles provam isso todos os dias sobrevivendo aos governos que têm.

Fernão Lara Mesquita

O carnaval do Carnaval

Na Quarta-feira de Cinzas de 2015, escrevi uma crônica sobre o carnaval na qual o famoso brasilianista Richard Moneygrand, declarava:

- Acho que vocês enterraram o carnaval!

Naquele ano, o Prof. Moneygrand argumentava que o carnaval, como um ritual de abandono programado das rotinas e como festa de mascaramento da pobreza, iria sofrer abalos num país despertado pela comunicação eletrônica, cada vez mais consciente de suas assombrosas desigualdades sociopolíticas, ao lado de uma endêmica corrupção ironicamente efetuada em nome dos pobres e oprimidos.

- Como é possível continuar “brincando” fantasiado de deuses que imitam o luxo de uma saudosa realeza à brasileira? Como é possível - provocava o professor - exibir-se em carros alegóricos extraordinários, em cidades carentes de segurança, transporte, saneamento, educação, saúde e administradores honestos? De onde sai essa alegra loucura, quando obras públicas desmoronam, há uma batalha entre traficantes e policiais e balas perdidas fazem vítimas rotineiramente? Da profundeza deste indizível sofrimento, o riso carnavalesco-rabaleisiano não seria, ele próprio, a ironia do porco comendo gulosamente o seu toucinho?
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- É preciso - continuou Moneygrand - entender essas festas que promovem o turismo e geram renda ao mesmo tempo que compensam a pobreza e a desigualdade. Nas entranhas das festas, há os aproveitadores e todos sabem como contraventores usam o carnaval como instrumento de legitimação. Num país onde reina a ambiguidade do legal com o delituoso, seria o carnaval o fiel emblema dessa aliança? Sei que tudo isso é teoria e que estou complicando algo muito simples... Mas seria absurdo dizer que o carnaval é uma festa antiga num mundo moderno?

*

Quando, em 1979, publiquei Carnavais, Malandros e Heróis: Para uma Sociologia do Dilema Brasileiro, eu mencionei o elo entre transgressão e carnaval. O carnaval licencioso festejado num Brasil do proibido seria uma contradição em termos. Uma transgressão com hora para começar e terminar. Neste Brasil monárquico e escravocrata, a igualdade era lida como “folia” ou loucura racionalizada pelas normas do sistema. Liberdade e igualdade eram transgressões permitidas só no carnaval. Mas o que ocorre quando instituímos a igualdade republicana?

No fundo, carnavalizar é revolucionar, mas fico somente nisso porque o tema não cabe na crônica.

*

Não estranho que, nesse travoso ano de 2018, no qual o país tem um ex-presidente condenado, governadores presos, a vida se desmanchando numa avalanche de violência, e o prefeito-bispo da cidade governando por ausência (por motivos religiosos, ele não pode nem ver o carnaval...), a festa tenha sido, como previa o brasilianista, politizada.

De fato, onde estaria a “loucura” do carnaval se o cotidiano já havia enlouquecido? Como inverter carnavalescamente o mundo no sambódromo se o mundo real já estava de cabeça pra baixo? Seria, com efeito, surpreendente que o espírito carnavalesco amante do grotesco e da transgressão não fizesse essa irônica teatralização da “vida como ela é” neste Rio de Janeiro que virou uma Pompeia sem Vesúvio.

Quando algumas escolas de samba apresentaram o seu teatro de horrores numa festa da alegria, surge a pergunta que não quer calar: até quando vamos misturar meios e fins? E comer o pão antes de plantar o trigo?

*

A politização não é nova. Ela foi realizada em tempos autoritários pela Beija-Flor e pela Vila Isabel nos anos 80. Isso para não falar dos milhares de carnavalescos anônimos que, em bloco ou solitariamente, parodiavam freiras e padres pecadores, generais covardes, machões femininos e falsos profetas, presidentes e políticos ladrões.

O que chama atenção nesse desfile foi a politização sem a troça e em pleno regime democrático. Não era mais um protesto dos fracos contra os fortes (como no regime militar), mas uma tomada de posição. Nada contra, desde que todas as posições sejam exibidas. Caso contrário, o desfile vira manifestação partidária e se extingue o riso satírico que os poderosos ou a desgraça suportam. Sem a burla que permite rir de nós mesmos, corremos o risco de enterrar o carnaval tal como até agora o fabricamos.

Finlândia

Escravidão não é coisa do passado

Os piores senhores eram os que se mostravam mais bondosos com seus escravos, pois assim impediam que o horror do sistema fosse percebido pelos que o sofriam, e compreendido pelos que o contemplavam
Oscar Wilde

Os gatos não sabem ler

Com a agenda vazia, o Presidente Temer convocou seus marqueteiros de plantão para criar outra. Ensaiou o discurso que lhe prepararam e desfraldou a bandeira do combate à violência no Rio de Janeiro, o que equivale a dizer iniciar uma guerra contra. Pode alcançar vitória temporária, quando os criminosos, traficantes, policiais e políticos envolvidos com a violência pegarão mais leve, saindo do terreno enquanto a cruzada presidencial estiver em ação. Tudo será apresentado como o maior avanço do governo Temer, mas não vai durar. Quando a tropa se recolher, eles voltarão ao mesmo.

Nada contra a luta deflagrada. É evidente que o governo federal não poderia omitir-se da omissão do governador Pezão e antecessores. Mas não deveria transferir dessa forma sub-reptícia a responsabilidade para as tropas enfrentarem a calamidade instalada no Estado, resultante da sua ineficiência, do descaso pelo social, desmandos e corrupção reinante nas administrações federal, estadual e municipal.

O governo jogou nas ombreiras dos generais um problema que é seu, sem se preocupar em apresentar propostas complementares para assegurar a reversão da dramática situação do Rio de Janeiro. Nenhuma das medidas contidas no decreto que oficializou sua decisão representa, por exemplo, investimentos para enfrentar suas causas, que são muitas. Adotadas a vol d’oiseaux, as providências que serão adotadas durante a intervenção federal não refletem qualquer amadurecimento de pensamento sobre como nosso país se tornou um dos 25 mais violentos do mundo.

Combater é um conceito recorrentemente utilizado por dirigentes políticos quando nada mais têm a propor para equacionar problemas que vão surgindo para atrapalhar suas tranquilas existências. Exatamente pela forma equivocada como empregam a expressão, sem se deterem no exame aprofundado sobre como o Brasil chegou a esse estado de coisas, não conseguem engajar as populações na execução das providências anunciadas com estardalhaço como as mais adequadas.

É o que deve acontecer no Rio de Janeiro, onde a maioria da sua população, sobretudo a parcela mais jovem, já não acredita na instalação de uma sociedade justa e igualitária, capaz de promover o desenvolvimento social em iguais condições, onde a violência seja exceção e não a regra brasileira.Com certeza seria diferente se Temer empregasse suas imaginação criadora e tropas de choque para trabalhar por esse modelo de sociedade, existente em muitos países civilizados e do qual o Brasil encontra-se distante como do sol.

Quem imagina Michel Temer liderando uma campanha nacional, com os mesmos recursos que compraram duas vezes sua absolvição pela Camara dos Deputados, em favor da educação, com Moreira Franco bradando profissionalismo para socializá-la e elevar seus níveis? Ninguém, claro. Como o ministro teve a sinceridade de informar ao país, seu grupo não é amador. Sabemos todos o que ele quis dizer.

É preocupante a maneira como Moreira Franco classificou a esperteza do círculo presidencial. Mas poucos ainda se espantam com esse tipo de desfaçatez. O grupo de feiticeiros do Planalto esquenta o caldeirão com outros objetivos. Sob o manto da intervenção federal no Rio de Janeiro, escamoteia estratégias para esconder o despreparo do governo para tornar o Brasil um país mais justo e igualitário. De quebra, garante impunidade e sobrevivência aos procurados pela Lava Jato. Mas o rabo do gato costuma escapulir do esconderijo.

Não mais do que de repente, o sempre obsequioso ministro Dias Toffoli, do STF, lembrou que durante a intervenção federal não é possível modificar a Constituição. Por essa razão, justificou, não sabe quando apresentará seu voto sobre a questão foro privilegiado para os privilegiados de sempre. Isso depois de ter pedido vistas do processo em novembro do ano passado e sete Ministro terem votado pela restrição do seu alcance. Outros rabos felinos continuarão a surgir na cena política nacional.

Diversos fatores contribuem para aumentar a violência no Brasil. Estamos cansados de saber que uma delas é a escandalosa desigualdade social, traduzidas em miséria, fome, desemprego e a falta de programas e ações sociais públicas capazes de reverter a dura realidade da maioria da população. Bem como a sensação de injustiça e a crescente impunidade de políticos e parlamentares denunciados, mas dificilmente processados, julgados e sentenciados.

A lista é enorme e a questão batida. Mas bastaria o governo investir na questão educacional para melhorar a vida dos brasileiros, reduzindo, pela educação, a violência que busca combater colocando o bloco na rua. Há cada três anos, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa,na sigla em inglês), realiza grande pesquisa sobre o tema. A última, em 2015, revelou que o Brasil caiu no ranking mundial nas áreas de ciências, leitura e matemática, mantendo milhares de crianças fora da escola, professores mal remunerados e sem formação adequada para educar. Mas os gatos não estão preocupados com a escola. Eles não sabem ler.

Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!


Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:

Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny

A velha faixa do imperador

Gosto de metonímias. É o termo que se refere ao uso de uma palavra fora de seu contexto usual para denotar outro contexto em que a mesma possui uma relação. A parte pelo todo, em resumo. Por exemplo, uma roupa não é necessariamente um tecido. Pode ser um símbolo para classificação social. Uma representação de castas. Ou, somente, uma faixa. Depende do contexto.

Não acompanhei os desfiles das escolas de samba ao vivo, mas logo soube do carnaval que sucedeu. Uma figura se destacou. Com a escravidão através dos tempos como tema, a Unidos da Tuiuti expôs em sua última ala como a prática se perpetua na contemporaneidade. Regendo o carro, o “Vampiro Neoliberal”, um ser de cara fechada e pálida, ostentando uma cabeleira monstruosa penteada para trás e um terno preto brilhante. Ah, e uma faixa presidencial. Poderia ser uma faixa verde com linhas amarelas ao longo do corpo. Entretanto, para a maioria, foi o toque de Midas para fechar o personagem. Quando as campeãs retornaram à Sapucaí no sábado, o sinistro integrante estava presente. Sem sua faixa.

Na segunda-feira, foi publicada uma matéria com o presidente da escola Unidos do Tuiuti, Renato Thor, em que este afirma que a retirada da peça não se deu por temer represálias. Apesar disso, muitos acham que há algo omitido neste contexto. Uma simples mentira, talvez. Muito barulho por nada? Dá samba, com certeza.

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O lado bom em analisar os objetos é a possibilidade de nos aprofundarmos num tópico. Assim que o conhecimento nasce. Porém, outro lado da moeda consiste em nos perdermos justamente daquilo que buscamos em primeiro lugar. Podemos nos apegar a detalhes para preservar mais nosso senso de autojustificativa do que compreender o contexto criado. A diferença entre dinheiro e ouro dos tolos é sutil para quem tem convicções. Provas são alegoria, quando o olhar é capaz de mudar a forma.

Logo após o carnaval, outro grupo anunciou seu acesso ao Rio de Janeiro. A intervenção militar que dará fim à maré violenta que toma a cidade. Surge a certeza institucional de que abater pernilongos é a solução. Para quem está acostumado com febre malária e dengue, drenar o poço é um esforço desgastante. Se é um número de mágica cujos fios estão expostos, é ver para não crer. O que importa é que o cartão postal siga maravilhoso.

Logo, o reaparecimento do Vampiro Neoliberal torna-se relevante outra vez. Independentemente das intenções reais da escola de samba, é a imagem que o governo projeta. Uma criatura trevosa, que aproveita de seu porte para sugar sangue. Com sangue, o governo espera recuperar alguma popularidade. O enredo de insatisfações com o rumo do país prossegue por anos, enquanto o mestre-sala dança uma valsa em meio à bateria. O imperador está sem faixa há muitos carnavais. Será que, ao se olhar no espelho, sentiu falta de algo ao longo do peito? Afinal, se vampiros não têm reflexo, como ele pode saber que está nu? O todo pode ser apenas uma parte de uma questão maior. Olhe mais perto, mas sem perder as beiradas de vista.

Daniel Russell Ribas

Para que servem os ministérios, afinal?

Tenho certeza de que esta pergunta, feita em qualquer país com instituições estáveis e racionais, pareceria uma infantilidade. Formulada no Brasil, será percebida, de imediato, com um sentido dúbio que salta aos olhos. Afinal, para que servem os ministérios?

Você poderia pensar, por exemplo, que o Ministério do Trabalho e Emprego serve para organizar as ações e políticas do governo com vistas a ampliar o mercado de trabalho, formalizar e fiscalizar as relações trabalhistas e coisas assim. Poderia, mas não pensa. No fundo, você sabe que esse ministério pode servir, por exemplo, para que Roberto Jefferson, presidente do PTB, proporcione um mimo à própria filha, com direito a lágrimas de emoção e beijos de gratidão. Não tapemos o sol das fotos com a peneira dos decretos de nomeação. Ademais, o PTB tem, no Congresso, uma bancada de 20 deputados federais e 2 senadores que fazem peso quando o placar de votação fica apertado. Revela-se, assim, outra finalidade dos ministérios: eles são intercambiáveis com votos das bancadas partidárias que se credenciam ao direito de designar seu titular. Enfim, poderíamos seguir alinhando outras utilidades e usos maliciosos dos gabinetes na Esplanada: nomear afilhados, fazer negócios, arrecadar contribuições e comissões, ajudar a mídia amiga, atender a companheirada, angariar prestígio, e por aí vai.

Nos regimes de gabinete, parlamentaristas ou semiparlamentaristas, é a maioria formada por afinidade das bancadas eleitas que escolhe o chefe do governo e governa junto com ele. Quando o governo perde a maioria, por abandono ou traição dentro da base, cai. Esse preceito, ao contrário do que parece, tem consequência muito benéfica na conduta dos parlamentos. No presidencialismo, é o governante eleito que, permanentemente, precisa estar no balcão comprando, voto a voto, uma base que o sustente e isso corrompe o governo e o Congresso.

Se você achava ruim a concessão de um ministério à filha do presidente do PTB com vistas aos votos partidários, imagine a criação de 15 ministérios novos com objetivos semelhantes! Em 2002, o governo federal tinha 24 ministérios. Catorze anos mais tarde, o governo Dilma chegou a seu melancólico fim com 39 cadeiras ao redor daquela mesma mesa. E a vida, como se sabe, só piorou. O governo Temer voltou aos 24 e, agora, está criando o 25º para a Segurança Pública.

Muito mais importante do que reprovar o tipo de negócio feito nos prédios da Esplanada dos Ministérios é compreender o quanto é perniciosa a regra desse jogo político que transforma o governo num loteamento e o voto parlamentar em mercadoria com cotação unitária flutuante na bolsa política. É hipocrisia reprovar o eleitor que vende seu voto quando os membros do parlamento, a toda hora, fazem o mesmo com seu “Sim” e seu “Não” no painel de votação.

Paisagem brasileira

BENEDITO CALIXTO,Praia de Itararé,Óleo sobre Tela,22,5 x 32 cm
Praia de Itararé em São Vicente (SP), Benedito Calixto

Intervenção meia-boca

Como todas as iniciativas demagógicas adotadas para algum fim inconfessável e anunciadas como se tivessem por objetivo o interesse público, que dificilmente será alcançado, a intervenção federal sob chefia militar na segurança pública do Rio é, no popular, meia-boca.

O Estado do Rio de Janeiro está clamando por uma intervenção federal por inteiro há muito tempo, desde, pelo menos, a ampla divulgação da roubalheira superlativa que faz do ex-governador Sérgio Cabral protagonista do maior escândalo de corrupção e má gestão da História. E o atual ocupante do cargo (chamá-lo de governador é uma cínica licenciosidade léxica), Luiz Fernando Pezão, não passa de um capataz com carta branca do antecessor, enquanto este passa uma temporada no inferno prisional. Intervir na segurança e mantê-lo no cargo é um acinte para os fluminenses, que terão de continuar a suportar sua óbvia nulidade, e os brasileiros, que pagam a pesada conta secreta para manter essa fantasia de bloco de sujos.

Charge O Tempo 18/02/2018

No editorial Uma intervenção injustificável, publicado sábado, este jornal já fez a pergunta que não quer calar: o que aconteceu nos últimos dias que justificasse a decretação da medida radical antes de ser debatida e votada no Congresso Nacional a reforma da Previdência? Ao que se saiba, nada! A crônica do fiasco anunciado na conquista dos três quintos de votos dos congressistas para aprovar a reforma, sem a qual não há remendo possível para as contas públicas nacionais, é mero pretexto.

Em nome da busca desse ideal, Temer nomeou o mais truculento cabo de esquadra das hostes que herdou, no pra lá de baixo clero do MDB – à época ainda com o pê, não o do início de pudor, mas, sim, o do meio de impunidade –, do colega Eduardo Cunha, hoje habitante do Arquipélago Curitiba, onde se encontra Cabral. Carlos Marun na Secretaria de Governo é o erro de pessoa no lugar errado. Nomeado para seduzir parlamentares resistentes a uma causa improvável, ele só sabe rosnar e morder.

Se seria injusto inculpar só o valentão de circo com porrete à mão pela derrota na votação capital para o equilíbrio das contas públicas, sua instalação no Palácio do Planalto, à direita de “deus-pai todo-poderoso”, é a mais completa tradução da desistência sem honra da votação e do pretexto para evitá-la. Marun é subserviente a Eduardo Cunha a ponto de figurar entre os gatos-pingados que tentaram evitar sua cassação pela Câmara e de ir visitá-lo na cela, com passagem paga pelo contribuinte. E Marun não seria Marun se não tivesse confessado, como o fez há pouco, que a única atitude de que já se arrependeu até hoje na vida foi, sob pressão, devolver essa despesa. Pois, para ele, tudo o que o chefe manda é legítimo.

Resta a segunda questão: por que intervir pela metade, se Pezão já renunciou a governar o Estado? Não é o que ele fez ao se acoitar em seu berço, Piraí, para fugir do caos momesco na capital do Estado, depois de ter anunciado um plano de segurança sem dados, comprometimento de verbas nem metas à vista? A única explicação (usar justificativa seria um engano semântico) é a conveniência para os remanescentes palacianos – Temer, Moreira e Padilha –, que preferiram evitar a investigação do que Rodrigo Janot chamou de “quadrilhão do PMDB” a encará-la.

Eles são do mesmo partido de Geddel, que, ainda que viva aos prantos na Papuda, nunca deu nem indício de origem e destino dos R$ 51 milhões encontrados num apartamento em Salvador usado pelo clã, também formado pelo mano Lúcio, da fiel base de Temer na Câmara, e “mãinha” Marluce, acusada de usar o próprio closet como caverna de Ali Babá. São da patota de Rodrigo (nome pelo qual se identificou Joesley Batista ao entrar no Jaburu para gravar o presidente) Rocha Loures, recordista dos cem metros com mala com R$ 500 mil, sem dono nem fiel depositário. E de Henrique Alves, aquele lá das Dunas.

Convém não omitir Jorge Picciani, chefão na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro que conseguiu de Eduardo Cunha a nomeação do filhote Leonardo para a liderança da bancada do então PMDB na Câmara, vendeu o voto dele a Dilma e terminou aderindo ao companheiro de primeira hora, Temer. Por mercê dessa virada dupla, Leonardo Picciani é ministro do Esporte no ano da Copa do Mundo e, ao que indica seu sumiço, deve estar dando expediente na Rússia.

A terceira causa (usar razão seria um escárnio gramatical) da intervenção pela metade é que, despojado do disfarce de presidente reformista em plena Quarta-Feira de Cinzas, o atual chefe-geral da súcia resolveu apelar para o velho refrão da violência como tema de enredo que todos os governos adotam, mas nenhum se arrisca a enfrentar de verdade.

Para isso tomou “na moral” a bandeira de Bolsonaro e apelou para os militares de hábito. Assim foi na Eco-92, nos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Mundial da Fifa em 2014 e na Olimpíada de 2016. Sempre no Rio e com idêntico receituário: um acordo com os chefões do tráfico de drogas, que tiraram férias e deixaram a autoridade brincar de ocupação do Haiti nas praias, longe do seu território. Deu certo enquanto duraram os acordos. E agora?

O problema agora é que um objetivo colide com o outro. A violência campeia porque as Polícias Civil e Militar são corrompidas do topo à base, como constatou Torquato Jardim, “escanteado” ministro da Justiça. E isso só é possível porque os gestores públicos fazem vista grossa após serem comprados como o são os subordinados. Como se reprime o crime organizado se se faz isso para impedir que policiais, procuradores e juízes federais da primeira instância tenham mãos livres para combatê-lo? E isso não é só no Executivo. Quem duvida que o Supremo Tribunal Federal julgue (o que já é um absurdo) e até conceda habeas corpus ao criminoso (condenado por corrupção e lavagem de dinheiro) Lula da Silva? E um fato nega outro.

Ninguém vai ficar para assistir ao desfile final

Irônico: a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro foi decretada pouco mais de 48 horas depois da proclamação do resultado do desfile das escolas de samba. A campeã e a vice-campeã empolgaram as arquibancadas com enredos de forte crítica social. O outro lado da folia: arrastões pela orla e por bares da zona Sul. Não havia como deixar de lembrar um velho samba de Paulo César Pinheiro e Wilson das Neves: “O dia em que o morro descer e não for Carnaval”. Essa música é de 1996 e, por si, evidencia que o problema da violência no Rio de Janeiro não é de hoje. Há 25 anos, por ocasião da Eco-92, a classe média carioca viu-se aliviada porque as Forças Armadas haviam ocupado as praças e avenidas da Cidade Maravilhosa para garantir a segurança do evento. Finda a festa, a violência e as lamúrias voltaram. O mesmo ocorreu nas Olimpíadas de 2016.


Difícil prever o que virá. As raízes profundas dos problemas do Rio não serão arrancadas. Refiro-me à ausência de perspectivas econômicas de largo espectro e à desigualdade social. Os exércitos do comércio de drogas existem porque não há (especialmente com o declínio da atividade petrolífera) alternativas de ocupações lícitas para grande parte da população. Ademais, vale indagar: que tipo de vida é esse em que consumir droga passa a ser imprescindível para que alguém seja “feliz”? Roubo de cargas, assaltos e furtos diversos não passam de acumulação primitiva para a mercancia de entorpecentes. De quebra, o Estado enfrenta uma crise fiscal que inviabiliza qualquer política pública mitigadora do caos fluminense. E, não bastasse a desigualdade social decorrente de um regime tributário regressivo e da evasão fiscal, castas sociais parasitas se apoderaram dos poderes públicos de forma acintosa e fazem ouvidos moucos aos clamores populares. É bom que se diga: esse diagnóstico vale também para o resto do Brasil!

Há quem anteveja, com a intervenção, o declínio do Comando Vermelho e o crescimento do PCC. Os demais governadores da região Sudeste já se mostram preocupados.

A República Velha e os regime autoritários (Vargas e a ditadura de 1964) representaram décadas de controle dos Estados pela União, e nem mesmo assim a questão da segurança pública foi resolvida de forma satisfatória. Chegou-se ao ponto, durante o regime militar, de um oficial do Exército, tido como notório torturador, ter se tornado o líder do cartel do jogo do bicho e, por tabela, das escolas de samba!

E, para culminar, um Michel Temer “sobranceiro”, como se a criminalidade organizada não rondasse os Poderes da República, declara, do alto de sua condição de jurista, que tornará sem efeito, por alguns dias, o decreto de intervenção federal, para que o Congresso Nacional possa votar a reforma da Previdência. Um drible na letra da lei que pode ser descrito – “digamos assim” – como uma fraude à Constituição. Do jeito que anda o Brasil, mequetrefes povoam as instituições e se arvoram em constitucionalistas eruditos.

Isso, quem sabe, pode dar samba para o próximo Carnaval.

Como escravos entravam na Justiça e faziam poupança para lutar pela liberdade

Em 1883, Rita entrou com uma ação na Justiça da Imperial Cidade de São Paulo contra o Tenente Julio Nunes Ramalho. Poderia ser mais um processo qualquer, não fosse um fato notável: Rita não era considerada cidadã pela lei brasileira. Era escrava. Já o Tenente Ramalho era seu proprietário. O objeto do caso era o interesse de Rita de comprar sua liberdade.

De Rita, a Justiça sabia pouco. Não tinha sobrenome, nem idade certa - "38 anos aproximadamente". As informações eram apenas que tinha aptidão para o trabalho e era cozinheira, escravizada por Ramalho.

Por não ser livre, Rita não tinha direito a procurar a Justiça diretamente e precisou de um intermediário para representá-la. Tendo obtido uma doação de 200 mil réis "em moeda corrente deste Império", queria comprar sua alforria. Pedia, então, que seu proprietário fosse intimado para declarar se aceitava ou não a quantia. Seu representante conclui o pedido dizendo que o fazia "a rogo da suplicante, que não sabe escrever".

Cena urbana no Rio de Janeiro, Jean-Baptiste Debret
O Brasil estava mudando. Depois de mais de três séculos, a escravidão se aproximava do fim. Em 1850, havia sido proibido o tráfico negreiro. Em 1871, foi aprovada a Lei do Ventre Livre, que estabeleceu a liberdade para filhos de mulheres escravizadas nascidos dali em diante - como o menino Benedito, a quem Rita deu à luz três anos após a lei.

Além disso, a Lei do Ventre Livre deu às pessoas escravizadas o direito de juntar dinheiro - fosse fruto de doações, do próprio trabalho ou de economias - e, com ele, comprar sua própria alforria, independentemente da autorização do seu proprietário.

Essa alteração legal multiplicou nos tribunais as chamadas ações de liberdade. A de Rita é uma delas. Está armazenada no Acervo Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, junto com dezenas de outros processo centenários, em papel envelhecido e texto manuscrito, movidos por pessoas escravizadas contra seus senhores. Além de São Paulo, há casos semelhantes em diversos pontos do país.

"A ação de liberdade quebra a autoridade senhorial, porque passa a existir uma forma de se libertar da escravidão independentemente da vontade do senhor", afirma a historiadora Keila Grinberg, professora da Unirio e da New York University, e uma das maiores especialistas neste tema no Brasil.

"Isso quebra o mito de que a alforria era apenas uma forma de reconhecimento do senhor (aos seus escravos). Nada disso! Eles também foram para a Justiça para conquistar sua liberdade", completa Lúcia Helena Silva, professora da Unesp, que pesquisou as ações de liberdade em Campinas.

Porém, as ações de liberdade não eram um caminho fácil. "Apenas a minoria das pessoas escravizadas conseguia entrar na justiça. A maioria dos escravos nascia e morria escravo", pondera Grinberg.

Junto ao pedido de Rita, foi anexado um atestado médico: "Atesto que a preta Rita sofre de anemia e de artrite crônica, moléstias que por muitas vezes a inabilitam para qualquer trabalho". A informação tinha um objetivo estratégico. "Normalmente, o escravo usava a estratégia de se desvalorizar", explica Lúcia Helena Silva.

"Já o senhor fazia tudo possível para dizer que seu escravo valia muito". No caso de Rita, o Tenente Ramanho respondeu à intimação dizendo que não aceitava os 200 mil réis oferecidos. "Considero ser de maior valor a minha escrava. Há três meses, a comprei pela quantia de 800 mil réis".

Quando não havia concordância sobre o valor da liberdade, como no caso entre Rita e Ramalho, não era o fim do processo. Cabia ao Estado fazer a arbitragem do preço, que as duas partes seriam obrigadas a aceitar. Para isso, o primeiro passo era a pessoa escravizada ser mandada para uma avaliação.

"Depois de haverem examinado a dita escrava Rita, tendo em consideração a idade, saúde e profissão da mesma, (os avaliadores) apresentam os seguintes laudos: Salvador avaliava-a em 500 mil réis. Fernando em 320 mil réis. Em consequência da divergência havida, foi aceito o laudo de 320 mil réis".

O resultado da avaliação foi uma vitória para Rita. O valor estava mais próximo dos 200 mil réis que ela tinha proposto do que dos 800 mil réis pedidos por seu senhor. Por intermédio de seu representante livre, Rita apresentou à Justiça os 120 mil réis que estavam faltando e requereu "que lhe fosse passada a carta de liberdade".

 Desembargadores chegando ao Palácio de
 Justiça no Rio,  Jean-Baptiste Debret
Depois de três meses na Justiça, Rita, que nasceu submetida à escravidão no Brasil, se tornou 
finalmente uma mulher livre.

"Apesar de o Estado e suas leis abrirem portas para dar visibilidade a questões dos escravos, não era fácil iniciar um processo judicial e, menos ainda, terminá-lo", explica a historiadora Heloísa Maria Teixeira, que pesquisou a compra de alforrias em Mariana, Minas Gerais.

Em geral, os escravos que recorriam à Justiça viviam nas cidades. Ali, tinham mais acesso a informação. Também podiam receber apoio de redes de solidariedade, formadas por outras pessoas escravizadas e libertas, além de terem contato com ideias e movimentos abolicionistas. Já para aqueles escravizados na zona rural, entrar na Justiça era muito mais difícil.

Ao consultar os documentos mineiros, Heloísa encontrou o caso da menina Eva, escrava de "mais ou menos 14 anos", nascida na década de 1850. Sua história mostra como o fato de estar na cidade facilita o surgimento de uma rede de apoio.

A madrinha de Eva, que não tinha dinheiro, passou a pedir esmolas na cidade com o intuito de libertar a menina. O processo de Eva, inclusive, elenca uma lista de pessoas que participaram da arrecadação de fundos para compra de sua liberdade. Ao final, a madrinha conseguiu reunir 120 mil réis em dinheiro. O valor foi complementado por um burro entregue pelo pai da menina, no valor de 80 mil réis. Com os 200 mil réis totais, foi comprada a carta de alforria de Eva.

Além de processos de compra de alforria, houve no Brasil diversas ações de liberdade baseadas na ilegalidade da escravidão. Em 1883, por exemplo, Antonio - também sem sobrenome - entrou na Justiça de São Paulo argumentando que sua matrícula de escravo informava ser ele africano e ter 51 anos.

Logo, Antonio teria nascido na África em 1832. Porém, uma lei brasileira de 1831 declarou que era livre todo o escravo vindo de fora do Império do Brasil a partir daquela data. Foi a primeira legislação a tentar coibir o tráfico de pessoas escravizadas para o Brasil. Desta forma, como Antonio nasceu depois da lei, ele havia sido trazido para o país de forma ilegal. Por consequência, sua escravidão também era ilegal.

Seu proprietário tentou contra-argumentar. Afirmou que a matrícula do escravo estava errada e que, na verdade, ele tinha nascido cinco anos antes da lei. Em termos práticos, isso faria com que Antonio não tivesse direito à liberdade. Por outro lado, essa linha de argumentação implicaria o reconhecimento de que um menino de cerca de 5 anos tivesse sido transportado nos navios negreiros e vendido ainda criança no Brasil.

Mas a argumentação do dono de Antonio não foi bem sucedida. O juiz do caso concedeu a carta de liberdade ao "africano". Mas sob a condição estabelecida pelo proprietário: de que o agora ex-escravo prestasse serviços por mais quatro anos para seu antigo senhor e sua esposa. Assim, Antonio ficaria livre apenas em 1887 - um ano antes da Lei Áurea ser sancionada pela Princesa Isabel, decretando oficialmente o fim da escravidão no Brasil.

"Esses juízes e tribunais não eram abolicionistas. Tomavam a decisão baseados naquele caso específico. Ninguém ali estava defendendo o fim da escravidão", diz Grinberg.

Furto adquirido

Alguns acharão pesado ou até indevido o título deste artigo. Mas tenho certeza de que para muitos sua motivação estará correta e oportuna. A Constituição Federal, em seu artigo 5º, que trata dos direitos e garantias individuais, reserva especial proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Graças a Deus, reconheçamos, porque esse é um fundamento da segurança jurídica, cujo comprometimento seria a causa da instabilidade e da exceção.

Mas o que dizer-se dos direitos adquiridos assim consagrados sem que a própria Constituição cunhasse os critérios de sua materialização? As prefeituras, por exemplo – e essa é uma realidade em todo o país –, abrigam absurdos que permitem sangrar seus Orçamentos para pagar privilégios a funcionários escolhidos a dedo, valendo-se de manobras que dispensam empreender-se qualquer estudo mais acurado para saber que foram objeto de argúcia e espertezas da mais sórdida maquinação.

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Há prefeituras literalmente quebradas, sem recursos para atender seus compromissos mais elementares, nas quais amigos de prefeitos ou ex-prefeitos incorporaram como direito adquirido valores que fazem chegar seus vencimentos a cifras absurdas, sem qualquer constrangimento de seus beneficiários em os receber. O caminho quase sempre passa pelas gretas da legislação, e o instituto do apostilamento desponta como o mais usado. Há prefeituras, ao que se sabe, onde há funcionários com até dois apostilamentos incorporados a seus vencimentos. No Senado, na Câmara dos Deputados, em Assembleias legislativas e Câmaras municipais de todo o país há salários que deveriam ser objeto de ação penal e consequente exigência de devolução de parcelas criminosamente recebidas.

Mas quem tomará tal iniciativa, especialmente em prefeituras, se muitas vezes prefeitos enfiam na administração pública, como assessores de deputados e senadores, suas mulheres, seus filhos, suas amantes, ou quem a eles mais convier? Se todos os dias se tem notícia de que vereadores e até mesmo deputados e senadores – vários assim o fazem – nomeiam como assessores seus parentes, suas empregadas domésticas ou seus jardineiros, ou os pilotos de seus helicópteros, ou ainda – o que chega a ser nojento – cobram participações e metem em seus bolsos parte dos vencimentos recebidos por tais assessores? Há Câmaras municipais em Minas que, sozinhas, têm Orçamentos maiores do que de importantes prefeituras; com toda a autonomia para gastar, pagar, contratar, jogar no lixo ou o que entenderem mais apropriado, ao talante de seu presidente.

Quem julgará como ilegais – porque imorais não há dúvida que sejam – tais trapaças? Nosso Poder Judiciário, que defende, esse sim, uma Lei Orgânica da Magistratura, na qual não cabem mais penduricalhos, farta e diariamente denunciado, como, por exemplo, pelos tão badalados auxílios-moradia e pelas verbas de custeio do ensino dos filhos dos magistrados? O Judiciário, cuja Corte Suprema, com 11 ministros, consegue gastar R$ 620 milhões por ano para manter em seus quadros quase uma centena de secretárias, 90 bombeiros civis, 51 copeiros e garçons, apenas como exemplo? Ou será o CNJ, no qual seus membros, quase todos, ganham muito acima do teto constitucional? A transparência dos atos públicos é, isso sim, um direito adquirido e de toda a sociedade. Vale gritar.