De Rita, a Justiça sabia pouco. Não tinha sobrenome, nem idade certa - "38 anos aproximadamente". As informações eram apenas que tinha aptidão para o trabalho e era cozinheira, escravizada por Ramalho.
Por não ser livre, Rita não tinha direito a procurar a Justiça diretamente e precisou de um intermediário para representá-la. Tendo obtido uma doação de 200 mil réis "em moeda corrente deste Império", queria comprar sua alforria. Pedia, então, que seu proprietário fosse intimado para declarar se aceitava ou não a quantia. Seu representante conclui o pedido dizendo que o fazia "a rogo da suplicante, que não sabe escrever".
Cena urbana no Rio de Janeiro, Jean-Baptiste Debret |
O Brasil estava mudando. Depois de mais de três séculos, a escravidão se aproximava do fim. Em 1850, havia sido proibido o tráfico negreiro. Em 1871, foi aprovada a Lei do Ventre Livre, que estabeleceu a liberdade para filhos de mulheres escravizadas nascidos dali em diante - como o menino Benedito, a quem Rita deu à luz três anos após a lei.
Além disso, a Lei do Ventre Livre deu às pessoas escravizadas o direito de juntar dinheiro - fosse fruto de doações, do próprio trabalho ou de economias - e, com ele, comprar sua própria alforria, independentemente da autorização do seu proprietário.
Essa alteração legal multiplicou nos tribunais as chamadas ações de liberdade. A de Rita é uma delas. Está armazenada no Acervo Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, junto com dezenas de outros processo centenários, em papel envelhecido e texto manuscrito, movidos por pessoas escravizadas contra seus senhores. Além de São Paulo, há casos semelhantes em diversos pontos do país.
"A ação de liberdade quebra a autoridade senhorial, porque passa a existir uma forma de se libertar da escravidão independentemente da vontade do senhor", afirma a historiadora Keila Grinberg, professora da Unirio e da New York University, e uma das maiores especialistas neste tema no Brasil.
"Isso quebra o mito de que a alforria era apenas uma forma de reconhecimento do senhor (aos seus escravos). Nada disso! Eles também foram para a Justiça para conquistar sua liberdade", completa Lúcia Helena Silva, professora da Unesp, que pesquisou as ações de liberdade em Campinas.
Porém, as ações de liberdade não eram um caminho fácil. "Apenas a minoria das pessoas escravizadas conseguia entrar na justiça. A maioria dos escravos nascia e morria escravo", pondera Grinberg.
Junto ao pedido de Rita, foi anexado um atestado médico: "Atesto que a preta Rita sofre de anemia e de artrite crônica, moléstias que por muitas vezes a inabilitam para qualquer trabalho". A informação tinha um objetivo estratégico. "Normalmente, o escravo usava a estratégia de se desvalorizar", explica Lúcia Helena Silva.
"Já o senhor fazia tudo possível para dizer que seu escravo valia muito". No caso de Rita, o Tenente Ramanho respondeu à intimação dizendo que não aceitava os 200 mil réis oferecidos. "Considero ser de maior valor a minha escrava. Há três meses, a comprei pela quantia de 800 mil réis".
Quando não havia concordância sobre o valor da liberdade, como no caso entre Rita e Ramalho, não era o fim do processo. Cabia ao Estado fazer a arbitragem do preço, que as duas partes seriam obrigadas a aceitar. Para isso, o primeiro passo era a pessoa escravizada ser mandada para uma avaliação.
"Depois de haverem examinado a dita escrava Rita, tendo em consideração a idade, saúde e profissão da mesma, (os avaliadores) apresentam os seguintes laudos: Salvador avaliava-a em 500 mil réis. Fernando em 320 mil réis. Em consequência da divergência havida, foi aceito o laudo de 320 mil réis".
O resultado da avaliação foi uma vitória para Rita. O valor estava mais próximo dos 200 mil réis que ela tinha proposto do que dos 800 mil réis pedidos por seu senhor. Por intermédio de seu representante livre, Rita apresentou à Justiça os 120 mil réis que estavam faltando e requereu "que lhe fosse passada a carta de liberdade".
Desembargadores chegando ao Palácio de
Justiça no Rio, Jean-Baptiste Debret
|
Depois de três meses na Justiça, Rita, que nasceu submetida à escravidão no Brasil, se tornou
finalmente uma mulher livre.
"Apesar de o Estado e suas leis abrirem portas para dar visibilidade a questões dos escravos, não era fácil iniciar um processo judicial e, menos ainda, terminá-lo", explica a historiadora Heloísa Maria Teixeira, que pesquisou a compra de alforrias em Mariana, Minas Gerais.
Em geral, os escravos que recorriam à Justiça viviam nas cidades. Ali, tinham mais acesso a informação. Também podiam receber apoio de redes de solidariedade, formadas por outras pessoas escravizadas e libertas, além de terem contato com ideias e movimentos abolicionistas. Já para aqueles escravizados na zona rural, entrar na Justiça era muito mais difícil.
Ao consultar os documentos mineiros, Heloísa encontrou o caso da menina Eva, escrava de "mais ou menos 14 anos", nascida na década de 1850. Sua história mostra como o fato de estar na cidade facilita o surgimento de uma rede de apoio.
A madrinha de Eva, que não tinha dinheiro, passou a pedir esmolas na cidade com o intuito de libertar a menina. O processo de Eva, inclusive, elenca uma lista de pessoas que participaram da arrecadação de fundos para compra de sua liberdade. Ao final, a madrinha conseguiu reunir 120 mil réis em dinheiro. O valor foi complementado por um burro entregue pelo pai da menina, no valor de 80 mil réis. Com os 200 mil réis totais, foi comprada a carta de alforria de Eva.
Além de processos de compra de alforria, houve no Brasil diversas ações de liberdade baseadas na ilegalidade da escravidão. Em 1883, por exemplo, Antonio - também sem sobrenome - entrou na Justiça de São Paulo argumentando que sua matrícula de escravo informava ser ele africano e ter 51 anos.
Logo, Antonio teria nascido na África em 1832. Porém, uma lei brasileira de 1831 declarou que era livre todo o escravo vindo de fora do Império do Brasil a partir daquela data. Foi a primeira legislação a tentar coibir o tráfico de pessoas escravizadas para o Brasil. Desta forma, como Antonio nasceu depois da lei, ele havia sido trazido para o país de forma ilegal. Por consequência, sua escravidão também era ilegal.
Seu proprietário tentou contra-argumentar. Afirmou que a matrícula do escravo estava errada e que, na verdade, ele tinha nascido cinco anos antes da lei. Em termos práticos, isso faria com que Antonio não tivesse direito à liberdade. Por outro lado, essa linha de argumentação implicaria o reconhecimento de que um menino de cerca de 5 anos tivesse sido transportado nos navios negreiros e vendido ainda criança no Brasil.
Mas a argumentação do dono de Antonio não foi bem sucedida. O juiz do caso concedeu a carta de liberdade ao "africano". Mas sob a condição estabelecida pelo proprietário: de que o agora ex-escravo prestasse serviços por mais quatro anos para seu antigo senhor e sua esposa. Assim, Antonio ficaria livre apenas em 1887 - um ano antes da Lei Áurea ser sancionada pela Princesa Isabel, decretando oficialmente o fim da escravidão no Brasil.
"Esses juízes e tribunais não eram abolicionistas. Tomavam a decisão baseados naquele caso específico. Ninguém ali estava defendendo o fim da escravidão", diz Grinberg.
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