quinta-feira, 30 de março de 2017

Armas de distração em massa

Aproximam-se as eleições francesas e alemãs e, em ambos os países, políticos e jornalistas se perguntam como enfrentar eventuais campanhas de uso contínuo de dados falsos, que tanto sucesso tiveram no Reino Unido e nos Estados Unidos. As Armas de Distração em Massa (título de uma canção do grupo francês de rap IAM e de um filme norte-americano bem ruim) são um fenômeno novo porque não fazem parte dos clássicos mecanismos de propaganda política idealizados na Alemanha de entre guerras ou na União Soviética dos anos trinta. Essas ADMs se destinam a mercados ocidentais, com democracias liberais, e foram testadas e aperfeiçoadas por especialistas vinculados à extrema direita ou à chamada direita alternativa, originária dos Estados Unidos.

Sua raiz não está tanto na propaganda política como na manipulação publicitária, e certamente é mais fácil encontrar paralelismos com a campanha montada pelas grandes multinacionais do fumo nos anos sessenta para impedir que seu produto fosse relacionado com o câncer do que com os discursos de Goebbels e Stalin. O economista e apresentador da BBC Tim Harford explica isso muito bem em um artigo intitulado The Problem with Facts.

As ADMs buscam que os debates políticos não se deem no terreno da ação, das medidas necessárias para solucionar determinados problemas, mas que se esgotem dando voltas sobre a falsidade de determinados dados. Faz sentido erguer um muro na fronteira entre o México e os Estados Unidos? Por ora, será preciso desmentir os dados falsos sobre o custo desse muro, difundidos maciça e organizadamente pelos interessados. A "bomba de distração" funciona às maravilhas e as dúvidas sobre o preço se instalam em todos os fóruns de debate, no lugar do sentido e eficácia do tema.

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No fundo, trata-se da total negação do debate político porque este tem de se concentrar não em torno de alguns dados, mas em torno de propostas para mudar esses dados e a realidade. As ADMs procuram duas coisas: negar a credibilidade das fontes, por mais conceituadas que sejam, e negar os próprios fatos. O efeito combinado dessas duas estratégias é brutal: a produção intencional de ignorância que, é bom ficar claro, precisa da colaboração não só de políticos e publicitários, mas também de grandes meios de comunicação e jornalistas bem conhecidos, comprados ou voluntários.

A agnotologia, o estudo dessa fabricação premeditada de desconhecimento, teve também um grande momento após a eclosão da crise econômica. Joaquín Estefanía recuperou o poder da palavra para contar como os responsáveis pela Grande Recessão conseguiram introduzir muitíssimo ruído sobre as causas do que ocorreu, quando estavam perfeitamente conscientes de seu próprio papel. O mesmo procedimento se aplica agora às causas do mal-estar político, maciças doses de distração destinadas a desviar a atenção de onde deveria estar: o que se fez e como pode ser corrigido.

Fazer frente a estratégias tão elaboradas não é fácil. É preciso divulgar os dados certos e insistir na autoridade das fontes, claro. Mas existe o perigo de empregar todo o tempo em checar e desmentir os dados falsos, o que proporcionaria um grande êxito aos manipuladores, donos da agenda, do enquadramento dos fatos e do debate, e capazes de ganhar todos os pontos por puro esgotamento do oponente. Assim, os jornalistas alemães e franceses tentam agora adotar uma estratégia diferente: voltar a contar histórias nas quais não se fale da mentira, mas em que se mostre a verdade e sua importância. Grandes histórias sobre a vida real das pessoas.

Gente fora do mapa

“Migrations” #Fotografía  Sebastião Salgado @Qomomolo:
Sebastião Salgado

O mau exemplo

“Espero que a decisão possa servir de exemplo a ser aplicado a muitas outras acusadas grávidas ou mãe de crianças que delas dependem e que respondem, encarceradas, a ações penais em todo território nacional
Juiz Marcelo Bretas no despacho para que Adriana Ancelmo deixe Bangu 8 e vá cumprir pena em casa.

De boas intenções, o inferno está cheio, sabe há muito não só o juiz evangélico da 7ª Vara Federal Criminal do Rio. O desejo humanitário de que a liberação da mulher do ex-governador sirva para que outros magistrados sigam a medida não é justificativa. Não parece plausível a concessão do benefício à ex-primeira-dama estadual parceira do marido ex-governador no assalto descarado aos cofres públicos para ser exemplo.

Aplicar a letra da lei, que não é cumprida, sem o espírito de Justiça, foi mais uma concessão de privilégio como qualquer outro que se vê às centenas no país.

À atitude de quixotesco humanitarismo, se sobrepõe o interesse de uma população já vilipendiada por uma série de concessões privilegiadas a ladrões públicos. Mostrar a deferência como demonstrou, o gesto do juiz foi mais um daqueles procedimentos típicos de uma sociedade em que se reverencia o poder mesmo quando este é criminoso.

Quando tanto se espera a mão forte da Justiça na guerra contra a corrupção, vemos um gesto de pelica na cara das milhares de mães presidiárias, ladras de fraldas e ninharias, mas que pagam como a ex-primeira-dama deveria pagar na cadeia.

A liberação, confirmada via assinatura digital de Paris, mais pareceu uma sucessão de escárnios à inteligência dos pobres mortais contribuintes (ou seriam reles pagadores de impostos medievais?). Veio ainda acompanhada da pegadinha jurídica de que a ex ficará, em casa, angelicamente, sem acesso a telefone e internet. Num país em que é livre o acesso dentro dos presídios a celulares, mesmo sob vigilância, como garantir que no luxo do próprio apartamento não lhe será concedido o pecadilho de teclar um celular?

E assim de privilégio em privilégio se alarga ainda mais o abismo entre população e os poderes que deviam lhe servir e proteger.
Luiz Gadelha

Urgência urgentíssima


São urgentes mecanismos institucionais que garantam um Estado público e um capitalismo privado
Carlos Alberto Sardenberg

A lei ou as conveniências?, eis o dilema do TSE

Ao recomendar a cassação do mandato de Michel Temer em parecer enviado ao TSE, a Procuradoria-Geral Eleitoral tornou mais constrangedora a articulação que se desenvolve nos porões de Brasília para afastar a corda do pescoço do presidente da República. O relator do processo sobre a cassação da chapa Dilma-Temer, ministro Herman Benjamin, também deve votar a favor da interrupção da presidência e Temer. E os ministros do TSE ficarão diante do seguinte dilema: observar a letra fria da lei ou se render à tese segundo a qual o afastamento de Temer a essa altura geraria uma crise que não convém ao país?

Eu conversei com um dos ministros que participarão do julgamento. Sem antecipar o voto, ele me disse que é impossível deixar de levar em conta a conjuntura num julgamento como esse. O ministro se refere ao fato de que, sob Temer, a economia do país parou de piorar. E o seu afastamento levaria a uma eleição indireta que abriria uma janela para o imponderável. Esse tipo de tese ganhou naturalidade depois que o surto de cólera das ruas foi substituído por uma epidemia de passividade.

De fato, não é fácil afastar mais um presidente em tão pouco tempo. Fica ainda mais difícil quando se considera que o substuituto será escolhido numa eleição indireta por um Congresso em que se misturam congressistas sujos e mal lavados. Mas surge uma pergunta simples: o que fazer com as provas de que a chapa eleita em 2014 foi financiada com dinheiro roubado? É esse tipo de jeitinho que transforma o Brasil num país sem jeito. Ao esticar a lei para acomodar dentro dela a conveniência política, o Brasil vai se consolidando como o mais antigo país do futuro do mundo.

Um clássico, segundo Woody Allen

Woody Allen e Goldie Hawn, no filme "I'm Through With Love" (1996), de Woody 

Quem salvará o Rio dos seus políticos?

O destino do Rio de Janeiro depende unicamente dos que votarem no próximo ano para eleger deputados estaduais, federais, senadores e o governador. Ou se promove um gigantesco expurgo político capaz de entrar para a História do Estado e, por tabela, do país ou não haverá salvação.

A indiferença, o desânimo e o desencanto com a politica e os políticos são os maiores aliados dos criminosos de colarinho branco que ainda esperam de alguma forma sobreviver à devastação ora em curso. A polícia e a Justiça, sozinhas, serão incapazes de dar conta do recado.

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O Rio está quebrado, econômica e politicamente. E não deve esperar ajuda a não ser dos cariocas. Se causou assombro a prisão de quem o governou por oito ano com índices geralmente altos de aprovação, o que não causará agora a descoberta de que a corrupção arrombou a porta de um tribunal?

O assombro da maioria que leva uma vida dura, sem tempo ou sem meios de cuidar de outra coisa, é compreensível. Não é dos que tiveram mais sorte, são bem informados e acompanham de perto o que se passa nas câmaras do poder. Esses, na melhor das hipóteses, fecharam os olhos.

Podia-se não ter uma ideia precisa do tamanho da quadrilha que se apoderou do aparelho do Estado, ou do volume de dinheiro surrupiado por ela. Mas a identidade dos principais quadrilheiros sempre foi conhecida, bem como a natureza dos seus negócios.

Como foi possível a nomeação para conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do filho de um governador que julgaria mais tarde as contas do próprio pai? Ou de um sujeito que a Justiça Eleitoral havia decidido cassar seu mandato de deputado por abuso de poder econômico?

Os malandros da Lapa conhecem a ficha de Jorge Picciani (PMDB), o presidente da Assembleia Legislativa, avalista do governador citado em delações à Lava Jato, e ultimamente encarregado de negociar com o governo federal o pagamento da dívida do Rio. Ninguém mais conhecia?

A corrupção não é monopólio do Rio. É possível que haja mais corrupção em outros Estados – a ver. Mas o Rio é o cartão postal do país interna e externamente. E o que ele mostra hoje dá nojo e revolta.

Evolução?

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Só porque o Cunegundes veio depois de Sócrates, não quer dizer que houve evolução
Herberto Sales

Futuro monumento

Há dias, Ancelmo Gois, no "Globo", propôs que o Posto da Torre —o posto de gasolina de Brasília que, há três anos, deu origem e nome à Operação Lava Jato— fosse tombado pelo patrimônio histórico. A ideia seria transformá-lo em monumento nacional, em memória da luta para limpar o país dos executivos da Petrobras, empreiteiros, lavadores de dinheiro, governantes e políticos que, só neste século, roubaram pelo menos R$ 20 bilhões e levaram o país a uma crise como nunca antes.

Não sei se a proposta de Ancelmo terá futuro, mas sou a favor dela. Se o posto se tornar monumento, fará jus a verbas para funcionamento e manutenção. Para isso, terá de deixar de vender gasolina, calibrar pneus ou servir hambúrgueres, mas estas nunca foram suas atividades preferenciais —a própria lavagem de carros, apesar do nome, jamais foi praticada ali. Em compensação, guias conduzirão os visitantes às salas onde se urdiram os primeiros golpes contra a economia e as instituições.


Como ponto subitamente promovido a atração turística, o posto não poderia ter melhor localização. Fica no começo da Asa Sul, perto de um setor hoteleiro e a apenas três quilômetros do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do STF –redutos de vários protagonistas e coadjuvantes do esquema.

Um dia, no futuro, os guias contarão aos incrédulos visitantes que, apesar de ter sido criada para fins até patrióticos –desmascarar as propinas distribuídas aos políticos para que estes fizessem passar emendas que permitiam a certas empresas economizar ou lucrar bilhões, sangrando as necessidades da nação–, a Lava Jato foi combatida pelo presidente e seus ministros, cinco ex-presidentes, os partidos em peso, quase todo o Congresso Nacional e até por alguns togados.
A seu favor, só as pessoas de bem.

Verdades enredadas (uma indústria bilionária)

Porque era sábado de manhã, porque o céu era azul e porque não fazia calor, o morador do Itaim Bibi, em São Paulo, tomou a resolução de sair a pé e comprar um CD para dar de presente a uma amiga que gosta de música. Mas... onde comprar? Ele foi ao Google. Na velocidade da luz, dois endereços se ofereceram na tela. O intrépido habitante do Itaim viu que as lojas ficavam bem perto do seu apartamento e pôs os pés à obra.

Depois de poucos quarteirões, deu com a cara em duas portas esquisitas. Na primeira, funcionava algo como um serviço de design de sobrancelhas (ao menos foi isso que o pedestre acidental registrou do estabelecimento). Na segunda porta, um salão de beleza. Desconcertado, assimilou a sua primeira lição daquele sábado: o Google erra.

O Google não tira da página as lojas que faliram. Seu nome, seus slogans e a foto da fachada continuam lá, em cores vivas, como se essas empresas comercias já não estivessem mortas e enterradas. Nas redes sociais não é diferente. Os usuários dão “likes” em páginas de gente que morreu faz tempo. A internet é isso, um universo de verdades enredadas e mentiras eletrizantes. “Manchetes” anunciando que o ex-presidente Lula acaba de ser preso na Lava Jato, “denúncias” assegurando que Teori Zavascki morreu num atentado tramado por um petista ou por um militar (os “culpados” se alternam) e “alertas” mandando você, na noite de hoje, deixar o celular desligado e fora do quarto para não “pegar câncer” convivem com toda espécie de ilações estapafúrdias.

Estapafúrdias e de enorme impacto. Donald Trump, por exemplo, insiste em acusar Barack Obama de ter grampeado, enquanto ainda era presidente dos Estados Unidos, os telefones da Trump Tower. O próprio FBI já negou essa possibilidade, mas, a esta altura, não se consegue avaliar direito quantos milhões de americanos tomaram por verdade o despautério sem prova de Donald Trump.

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Mentiras desse tipo ficam e frutificam. Para se ter uma ideia, uma pesquisa divulgada no final do ano passado pelo YouGov mostrou que, para 53% dos americanos, a informação de que o Iraque, ainda no tempo de Saddam Hussein, estava fabricando armas químicas de destruição em massa era verdadeira. A informação era falsa, grosseiramente falsa, mas foi com base nela que, em 2003, tropas lideradas pelos Estados Unidos invadiram o Iraque. Somente anos mais tarde os envolvidos naquela guerra, de George W. Bush a Tony Blair, admitiram que a acusação era uma fraude, mas o estrago já tinha sido feito.

E continuou a ser feito. Muita gente apoiou o ataque contra o Iraque porque acreditou nas tais armas químicas e seguiu acreditando. Para muitos, aquela história segue sendo verdadeira. Ou seja, para muita gente, o Iraque mereceu ser invadido daquela forma. Aquela notícia falsa moldou, e continua moldando, a opinião pública americana.

Não que as notícias falsas sejam uma criação da internet. Elas sempre existiram e, desde sempre, vêm provocando perseguições, tragédias e extermínios. Muito antes da invenção do computador, um livro inteiramente falsificado, Os Protocolos dos Sábios do Sião, desencadeou vagas de antissemitismo pela Europa. Mas há dois dados novos que mudam tudo.

O primeiro tem que ver com a velocidade, a escala, o alcance e a eficácia. Vários levantamentos mostram que as notícias falsas repercutem mais do que as verdadeiras. E mais rapidamente. Em questão de um dia ou dois, uma figura como Trump consegue fazer a metade dos Estados Unidos acreditar que Barack Obama nasceu no Quênia (o que é mentira, não custa avisar; Obama é americano nato).

O segundo dado novo é econômico. Como têm um incomparável poder de sedução e de engajamento, as notícias falsas viraram um negócio lucrativo no chamado ciberespaço. Dentro do ambiente virtual forjado por empresas como o Google, o Facebook, o YouTube e outras, mentir compensa, e muito.

Como a indústria das redes interconectadas remunera aqueles que postam “conteúdos” pelo número de clicks (quanto mais as pessoas acessam uma notícia, seja ela falsa ou verdadeira, mais o autor arrecada), e como a mentira é fácil de produzir (é barata) e desperta o furor das audiências, um dos melhores negócios da atualidade é contar lorotas. Uma redação profissional (seja um bom jornal ou uma boa revista jornalística), se começar a publicar mentiras, vai perder leitores e anunciantes. Com um site desses aí, como os que ajudaram Trump a se eleger, a equação é invertida: quanto mais mentiras publica, mais atrai leitores e anunciantes.

Isso mesmo: atrai anunciantes. Os anúncios também são distribuídos na rede de acordo com o número de clicks. Um anúncio pode ir parar em qualquer lugar da rede desde que haja muitos clicks por lá. Só muito recentemente os anunciantes começaram a reclamar. Alguns não aceitam mais aparecer em sites que fazem discurso de ódio, apologia do terrorismo e difusão de calúnias.

Conseguirão mudar a regra do jogo? É improvável. Ao menos até aqui, a regra tem sido perversa: o mesmo ambiente econômico que vem condenando algumas das boas redações jornalísticas à falência estimula e recompensa muito bem a irresponsabilidade dos que exploram as notícias falsas.

É bom ficar de olho e torcer para que as coisas mudem. De um jeito ou de outro, da próxima vez que o improvável leitor, interessado em comprar um CD, perguntar ao Google onde é que se vende esse tipo de antiguidade tecnológica e der com a cara na porta de um cabeleireiro, lembre-se de que mesmo aquele endereço errado no qual ele clicou rendeu um trocado para alguém. É assim que é. O divórcio traumático entre a ética jornalística e os cifrões da indústria das redes sociais atravessa como navalha esse desencontro inofensivo que qualquer um de nós pode experimentar num sábado de manhã, assim como determina a indústria de inverdades que pavimentam a fisionomia política do mundo.

Imagem do Dia

Ribeira
Rio do Dragão Azul (Algarve, Portugal)

'Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil'

No artigo “Doenças da carne, doenças da alma”, neste último domingo, no “O Globo”, o jornalista Fernando Gabeira disse que, quando menino, ouvia muito a frase que utilizei como título destas linhas: “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”.

Mais velho do que Gabeira, que, como Ricardo Noblat, meus contemporâneos no velho e saudoso “Jornal do Brasil”, já deve ter completado 50 anos de jornalismo, eu já a ouço há mais tempo ainda. Nós três envelhecemos, eu mais do que eles, e nenhum dos dois – o Brasil ou a saúva – acabou. Interessante é que, com o tempo, a frase perdeu a força que tinha antes. Hoje, a saúva pode ser enfrentada com êxito e, com certeza, se administrada com competência técnica, já não fará mais nenhum mal às terras e lavouras brasileiras. E seu sentido metafórico (ela passou a ser usada contra outros inimigos, como os políticos) também foi desaparecendo. Por cansaço, provavelmente. O mesmo cansaço que hoje vai tomando conta dos melhores de nossa imprensa tanto televisada quanto escrita. Afinal, ninguém é de ferro.

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Você já deve ter ouvido por aí, leitor, que a frase seria do escritor Monteiro Lobato. Na verdade, ela foi cunhada pelo naturalista e botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que ficou espantado com as formigas que destruíam até árvores frondosas, além de arbustos, pastos e gramas. O poeta, escritor e crítico literário Mário de Andrade a botou na boca de seu personagem Macunaíma: “Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são”. A frase também inspirou o hino da escola de samba São Clemente no Carnaval carioca de 1986.

Eis o final do artigo de Gabeira: “Já escondidos atrás do foro privilegiado, os políticos querem se esconder de novo atrás de listas fechadas, anular provas de delação da Odebrecht, enfim, voltar aos velhos tempos. Não vão acabar com o Brasil. As saúvas não acabaram”.

Concordo, plenamente, com o que disse Gabeira, mas tenho enfatizado sempre que a Lava Jato só terá algum sentido se ela for de fato transformadora não apenas da classe política (escolhida e eleita por nós), mas da sociedade brasileira como um todo. Esta, aliás, deverá ser a primeira e notável transformação. Não adianta tergiversar: somos todos, leitor, responsáveis por nossas escolhas. Somos – aliás, sempre fomos – o país do jeitinho e do pistolão. Às vezes, me vem à cabeça esta ideia maluca: a decepção e a desesperança (e a presença diminuta de pessoas na rua no último domingo) talvez expressem o cansaço crescente que toma conta de todos, sem exceção, quando chegamos à triste conclusão de que o mal está na raiz. É nela que reside a dificuldade para se fazer, por exemplo, a maior de todas as reformas – a política.

Mas o Brasil precisa, também, de outras reformas, como afirmou o economista e ex-presidente do Banco Central, no governo FHC, Gustavo Franco. Precisa – concluiu ele – de “reforma da Previdência. E também da trabalhista, tributária, orçamentária, urbana, rural (agrária), sindical e do ensino médio. Precisa de reforma do ensino superior e inferior, de reforma protestante, do espírito do capitalismo e de reforma ortográfica. Reforma na varanda, no banheiro e na cozinha”.

Só que quem quer voltar a presidir o país é o mesmo Lula, que, dizem, conta com 30% dos votos. Sua campanha para 2018 já começou. Seus assessores, com Mantega à frente, são os mesmos que nos entregaram este país roubado e quebrado. E, muito pior, traído!
Lula, Dilma, Temer...

Igualdade mentirosa

A Constituição Federal estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5º, caput). Os 78 incisos desdobram os direitos e as garantias advindos do princípio da igualdade, ou da isonomia. A igualdade se dá perante a lei – aplicação no caso concreto – e na lei, produzida por ato do legislador.

O princípio veda discriminações de quaisquer naturezas e limita a atuação do legislador, do intérprete, do operador do Direito, da autoridade pública e do particular. É menos penosa a fiscalização do cumprimento do princípio na lei, quando o ato do legislador precisa ser avaliado e aprovado antes de se tornar norma de obrigação geral.

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A igualdade perante a lei sofre as limitações advindas de um sistema de proclamação de vontades – como promessas – sem as garantias necessárias à sua aplicação.

Proclamar a igualdade perante a lei tem o mesmo significado de insculpir em letras garrafais que o salário mínimo será suficiente para uma família ter moradia, comida, educação, saúde e lazer.

Diante de estruturas burocráticas e elitistas, constituídas mais para atrapalhar do que facilitar a vida em comunidade, com acesso difícil, cartorial e caro, é muita hipocrisia acreditar que haja igualdade perante a lei.

É dizer que um homem simples manejará os mesmos instrumentos que um bilionário durante o processo, com os mesmos recursos e acessos, quando se sabe que a sociedade brasileira funciona à base de influências e compadrios, movidos pelos chamados embargos auriculares.

Uma pessoa do povo dificilmente chegará perto de um desembargador ou de um ministro, salvo se for empregada dele, o mesmo ocorrendo com advogados de pequenos escritórios. Enquanto isso, as grandes bancas participam constantemente dos banquetes da corte, fazendo dos embargos de pé de ouvido o recurso mais eficiente em defesa de sua clientela.

Quando alguém estranha o benefício concedido a Adriana Ancelmo, mulher de Sérgio Cabral, esquece que ela comandou uma das bancas mais importantes do Rio de Janeiro, esteve no centro do poder e ainda tem muita influência. Diferente de Lurdes Rouca, cuja riqueza são os quatro filhos que ela não tem com quem deixar.

Falta um bom coração

A ilustração de Emma Hanquist You've really taken my heart on a trip. Can I have it back now?:
Emma Hanquist
A colega de uma revista quer saber se eu acho que o Brasil é a terra do “homem cordial”, tendo em vista a “assustadora escalada de corrupção, violência e intolerância”. Recebi esse pedido de entrevista justamente quando estava chocado com o que acontecera aqui perto de casa, na Rua Vinicius de Morais, na cosmopolita Ipanema: um jovem turista argentino fora trucidado por um grupo de brasileiros, dos quais quatro já estão identificados. Atingido por um soco numa briga de bar de madrugada, ele caiu e, desacordado, foi espancado com socos, pontapés e golpes de muleta até a morte. Se não bastasse, isso ocorreu no último sábado, quando veio a falecer a também jovem argentina que, no carnaval, ao entrar por engano numa comunidade, foi baleada por traficantes.

É verdade que episódios como esses não são rotineiros como aqueles que infernizam o dia a dia dos moradores do Rio e de outras grandes cidades: assaltos com faca, que é a nova modalidade, roubos de celulares a bordo de bicicleta, bolsas arrancadas e, enfim, tudo o que engrossa uma estatística de quase 60 mil homicídios por ano. Mas há também contribuições menos explícitas que ajudam a banalizar a violência e a reforçar a sua cultura.

Fica difícil falar em homem cordial num país em que um ex-presidente da República xinga um procurador da Justiça de “moleque”, e um ex-ministro e pré-candidato à Presidência ameaça um juiz de “receber com bala” o agente que fosse prendê-lo. São dois exemplos pouco edificantes fornecidos por Lula e Ciro Gomes num momento de tanta polarização e intolerância, a ponto de transformar, pelo ódio, adversários políticos em inimigos — um ambiente em que pessoas da importância de Chico Buarque e Luis Fernando Verissimo são hostilizadas e agredidas quase fisicamente por quem tem opinião diferente.

Por coincidência, a expressão “homem cordial” foi consagrada pelo pai de Chico, o historiador Sérgio Buarque de Holanda; porém, ela não tem o mesmo significado que lhe dá o senso comum, isto é, não quer dizer necessariamente delicadeza, civilidade, bons modos. O “cordial” a que ele se refere deriva etimologicamente do latim “cor”, coração, o órgão que comanda as ações com predominância das emoções. Desse jeito, o coração pode agir para o bem e para o mal, conforme o impulso de fundo emotivo que o move.

No nosso caso, em que se registra um ato de violência contra a mulher a cada sete minutos, não se pode falar em bom coração. Essa conduta tem mais a ver com o fígado, o órgão especializado em produzir bílis
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