Emma Hanquist |
A colega de uma revista quer saber se eu acho que o Brasil é a terra do “homem cordial”, tendo em vista a “assustadora escalada de corrupção, violência e intolerância”. Recebi esse pedido de entrevista justamente quando estava chocado com o que acontecera aqui perto de casa, na Rua Vinicius de Morais, na cosmopolita Ipanema: um jovem turista argentino fora trucidado por um grupo de brasileiros, dos quais quatro já estão identificados. Atingido por um soco numa briga de bar de madrugada, ele caiu e, desacordado, foi espancado com socos, pontapés e golpes de muleta até a morte. Se não bastasse, isso ocorreu no último sábado, quando veio a falecer a também jovem argentina que, no carnaval, ao entrar por engano numa comunidade, foi baleada por traficantes.
É verdade que episódios como esses não são rotineiros como aqueles que infernizam o dia a dia dos moradores do Rio e de outras grandes cidades: assaltos com faca, que é a nova modalidade, roubos de celulares a bordo de bicicleta, bolsas arrancadas e, enfim, tudo o que engrossa uma estatística de quase 60 mil homicídios por ano. Mas há também contribuições menos explícitas que ajudam a banalizar a violência e a reforçar a sua cultura.
Fica difícil falar em homem cordial num país em que um ex-presidente da República xinga um procurador da Justiça de “moleque”, e um ex-ministro e pré-candidato à Presidência ameaça um juiz de “receber com bala” o agente que fosse prendê-lo. São dois exemplos pouco edificantes fornecidos por Lula e Ciro Gomes num momento de tanta polarização e intolerância, a ponto de transformar, pelo ódio, adversários políticos em inimigos — um ambiente em que pessoas da importância de Chico Buarque e Luis Fernando Verissimo são hostilizadas e agredidas quase fisicamente por quem tem opinião diferente.
Por coincidência, a expressão “homem cordial” foi consagrada pelo pai de Chico, o historiador Sérgio Buarque de Holanda; porém, ela não tem o mesmo significado que lhe dá o senso comum, isto é, não quer dizer necessariamente delicadeza, civilidade, bons modos. O “cordial” a que ele se refere deriva etimologicamente do latim “cor”, coração, o órgão que comanda as ações com predominância das emoções. Desse jeito, o coração pode agir para o bem e para o mal, conforme o impulso de fundo emotivo que o move.
No nosso caso, em que se registra um ato de violência contra a mulher a cada sete minutos, não se pode falar em bom coração. Essa conduta tem mais a ver com o fígado, o órgão especializado em produzir bílis.
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