quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Brasil escolhe lobo para ilustrar nova cédula da era Bolsonaro. Acaso ou lapso freudiano?

Os economistas discutem os problemas que a nova nota de 200 reais que começou a circular no Brasil nesta era bolsonariana pode criar. E alguns partidos pediram a interrupção da emissão da cédula, pois poderia facilitar a vida de políticos e empresários corruptos, cujas malas com milhões de reais em dinheiro estão nos olhos de todos os brasileiros como a imagem mais simbólica do crime organizado.

A nova nota de 200 reais, o maior valor que existia até agora era de 100, foi ilustrada como as anteriores, com a figura de um animal em extinção da floresta brasileira, a do lobo-guará. As anteriores apresentavam as imagens do mico-leão dourado e da onça pintada, dois exemplares de incrível beleza que até as crianças adoram.

A efígie escolhida desta vez e na fase negra do Governo de extrema direita de Jair Bolsonaro foi justamente a de um lobo de cara feroz e as cores da cédula em vez de serem as alegres da bandeira solar do Brasil aparecem em tons de cinza e sépia como uma tarde sombria de inverno.



Desde que existem moedas no mundo, sua ilustração tem sido objeto de simbolismos que refletem o momento político e social do país. A efígie da mulher que aparece na moeda norte-americana, o mítico dólar, depois copiado por tantos países, sempre representou os valores da Revolução Francesa com suas exigências de liberdade e prosperidade.

No Brasil, a introdução de belas imagens de animais selvagens em extinção sempre foi vista como um reconhecimento da riqueza e da beleza de sua floresta, uma das mais importantes e ricas do planeta.

Essa tradição foi respeitada na nova cédula de 200 reais, mas desta vez não sabemos se por opção ou por acaso foi escolhido um animal que, embora seja tão importante quanto os mais belos, foi um lobo que na imaginação simbólica de pequenos e grandes apela a sentimentos de medo e ferocidade.

No momento mercurial que o país está vivendo ―o segundo mais afetado pela violência do coronavírus no mundo, atingido também pelos instintos de morte que inspira o Governo e pelos valores morais e políticos mais retrógrados― não deixa de ser simbólico e quase profético na decisão de escolher um lobo feroz.

Os simbolismos escritos ou gráficos são estudados por todas as correntes psicanalíticas. E a imagem que um lobo feroz evoca no subconsciente universal sempre foi a de medo e perigo.

Cabe perguntar se neste momento em que o Brasil vive uma crise de medo social e existencial não teria sido possível escolher uma iconografia que, mesmo sendo de animal, invocasse esperança, segurança e paz, e não guerra e violência.

Bolsonaro na verdade sempre foi desde o início um político e militar sombrio, homem de guerras e violências, cujo maior amor sempre foram as armas, físicas e verbais, com seu já proverbial desprezo pelos diferentes.

Neste momento, o presidente, com seu convite para não se vacinar, volta a fechar os olhos para a maior esperança que têm os milhões de brasileiros assustados com seus mortos cada dia que continuam ameaçando como a nova peste moderna.

Bolsonaro está injetando em seus encontros com as pessoas a rejeição da obrigação cívica de se vacinar. Isso carrega um substrato de crueldade, pois deu a entender ao mesmo tempo que “atletas” como ele e seus filhos, os saudáveis e fortes, se salvam da epidemia, esta mata os que chama de modo depreciativo de “bundões”, que simbolicamente seriam os que não querem trabalhar, os frouxos, os preguiçosos e, claro, os velhos, os doentes graves e em geral os que já não servem para produzir riqueza.

É algo que, quando analisado do ponto de vista psiquiátrico, evoca os tempos sombrios que o mundo tenta esquecer quando os alemães, em busca de uma raça pura e saudável, levavam aqueles considerados inúteis ao genocídio dos campos de concentração.

Já existem muitos pedidos no Brasil para que o presidente Bolsonaro seja convocado pelo Tribunal de Haia para responder por um possível genocídio na condução negativista da pandemia.

Por que então se surpreender com o fato de que a nova cédula da era bolsonarista apareça ilustrada com a boca feroz de um lobo selvagem? Que os pais perguntem aos filhos qual animal teriam escolhido e verão que seria um animal que, além de evocar força, inspiraria ao mesmo tempo sentimentos de amor e de ternura.

Não sabemos se a escolha da ilustração partiu ou não do próprio Bolsonaro, mas certamente não terá sido sem sua aprovação. E o Brasil dessa nova cédula, o Brasil amado e reconhecido em todo o mundo por sua idiossincrasia do afeto, da alegria, da riqueza étnica, cultural e religiosa, aparece com a cara feroz de um animal que infunde medo.

Até em seus novos signos estão sendo arrancadas as raízes da melhor alma da brasilidade, signos evocados no passado pelas cores vivas e alegres, luminosas de suas belezas naturais e humanas.

Triste.

O perigo da ignorância

O presidente Jair Bolsonaro alargou os limites do seu descaso pela saúde pública, já bastante elásticos, ao ensejar uma campanha contra uma vacina que ainda não existe. Diante de um grupo de apoiadores que o aguardavam na entrada do Palácio da Alvorada na noite de segunda-feira passada, Bolsonaro disse que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. Esta foi a resposta do presidente a uma senhora que lhe pedira para “não deixar fazer esse negócio de vacina, não”, pois “isso é perigoso”. O “perigo”, no caso, é a vacina contra o novo coronavírus, a última esperança de bilhões de pessoas no mundo inteiro para acabar com uma pandemia que já matou 850 mil pessoas nos cinco continentes, mais de 122 mil no Brasil.

É um descalabro.

Primeiro, a resposta de Jair Bolsonaro deveria ter sido outra, haja vista que sim, o Estado tem o poder de obrigar os cidadãos a serem vacinados. Um programa de imunização é, antes de tudo, uma questão de saúde pública, de proteção coletiva contra patógenos, muitos deles mortais, e não uma questão de escolha individual. É algo tão elementar que nem sequer deveria ser escrito. Mas reafirmar obviedades é típico desses tempos estranhos.

A Constituição determina que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. O Estatuto da Criança e do Adolescente diz que “é obrigatória a vacinação de crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. O Código Penal define como crime “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. Por fim, a Lei 13.979/2020, sancionada pelo próprio presidente Bolsonaro em fevereiro, estabelece a vacinação como uma das medidas compulsórias à disposição do Estado para o enfrentamento da pandemia de covid-19.



Mas como o presidente ignorou esse arcabouço jurídico, ao menos o absurdo deveria ter ficado circunscrito ao cercadinho do Alvorada, onde se reúne a sua claque, e não ter ganhado a projeção que ganhou após a infeliz frase de Bolsonaro ter ido parar em uma imoral campanha institucional da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) no Twitter.

Talvez para adular o presidente, a Secom tomou sua frase e a publicou em letras maiúsculas, afirmando que “o governo do Brasil investiu bilhões de reais para salvar vidas e preservar empregos. Estabeleceu parceria e investirá na produção de vacina. Recursos para Estados e municípios, saúde, economia, tudo será feito, mas impor obrigações definitivamente não está nos planos”. Termina a peça de propaganda dizendo que “o governo do Brasil preza pelas (sic) liberdades dos brasileiros”.

Tudo nesse disparatado tuíte da Secom está errado. E antes o erro de regência fosse o mais grave. A peça é moralmente condenável, pois a palavra do presidente da República tem peso. Quantos cidadãos podem, de fato, achar que vacinas são perigosas ao ouvir Bolsonaro dizer que “ninguém será obrigado” a tomá-las? Que tipo de mensagem Bolsonaro transmite à Nação? Vacinar-se, quando possível, será decisão individual? Não será. Há leis que assim o determinam.

A declaração do presidente também é incoerente com os “bilhões de reais investidos para salvar vidas e preservar empregos”, além das parcerias firmadas com laboratórios nacionais e estrangeiros para a produção da vacina, quando, enfim, um imunizante for desenvolvido com segurança e eficácia. Isso tudo para, ao fim e ao cabo, um grupo de cidadãos irresponsáveis ou, no mínimo, desinformados se achar no direito de não ser vacinado e colocar em risco, além de suas próprias vidas, as de familiares e concidadãos.

A frase transformada em propaganda oficial é um desrespeito à ciência. É um desrespeito ao Programa Nacional de Imunizações do Brasil, o maior programa público de vacinação do mundo, reconhecido internacionalmente. É um desrespeito à vida. A humanidade está prestes a ver o resultado de um esforço coletivo jamais empreendido na área de saúde, em tão curto espaço de tempo. Algo a celebrar, não a relativizar pela obtusa visão do presidente acerca de escolhas pessoais.

Brasil batizado

 


Um fiapo de Brasil nos esgotos da Guanabara

O Rio inventou Jair Bolsonaro, mas foi o Brasil quem pariu o bolsonarismo. É esta equação que está em jogo no imbróglio que envolve a sucessão do ex-governador Wilson Witzel. A sobrevida do presidente da República depende, em grande parte, do que será capaz de entregar ao país no segundo biênio do governo. Se não recuperar a economia, deixará a teia que o levou e o mantém no Planalto, mais suscetível às engrenagens da política, do judiciário e da polícia do seu Estado.

A decisão monocrática referendada ontem no STJ, pelo afastamento do governador, rifou uma parte dos riscos que Witzel oferecia a Bolsonaro, pela autonomia dos órgãos de investigação, e ao próprio Estado, pela ameaça de não renovação do generoso regime fiscal do qual o Rio é o único e felizardo beneficiário na União.

A saída do sexto governador do Estado envolvido em malfeitos é um bezerro desgarrado da boiada da corrupção que o Judiciário tem abrigado nesta pandemia. Não resolve, porém, o problema da sucessão. Esta passa pela política.

Ao presidente da República, o mais conveniente parece ser a permanência do vice Claudio Castro (PSC), que, sem lastro na política, ficará ainda mais dependente do Planalto do que costumam ser os governadores fluminenses. Os indícios de que uma das delações do caso o envolve, porém, sugerem que à Assembleia Legislativa não restaria outra alternativa senão dar curso a um processo de impeachment de ambos.

Concretizado ainda em 2020, a cassação de Witzel e Castro levaria a uma eleição direta. O desfecho, porém, além de subir o preço da incerteza, ameaçaria a missão mais premente do governador em exercício que é a escolha do procurador-geral de Justiça, chefe do ministério público estadual.



Realizado a partir de 2021, o impeachment levaria a uma escolha indireta pela Alerj. É nesse prumo que se coloca a hipótese de o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), vir a assumir a incumbência. Levantada por Mônica Bergamo, na “Folha de S.Paulo”, a possibilidade, cogitada como uma possibilidade real por ministros de tribunais superiores, governadores e parlamentares, desperta no personagem em questão, um obsequioso silêncio.

Maia sinaliza ter deixado o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, sozinho na barca furada da reeleição para as mesas do Congresso. A tarefa se revelará ainda mais dura para o senador se o Supremo delegar a decisão para o regimento do Senado, instância em que a presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Simone Tebet, que já esteve e pode voltar ao páreo, terá larga margem de manobra.

Maia terá mais a ganhar se for capaz de desamarrar o nó de sua sucessão. A aproximação do ex-presidente Michel Temer com Bolsonaro pode amaciar o caminho do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), mas atravanca o jogo do partido que hoje mais postulantes tem no Senado. Nenhuma legenda parece capaz de repetir o feito do DEM de acumular a Presidência das duas Casas. A opção pelo deputado Aguinaldo Maia (PP-PB) abre o Senado para o MDB mas esbarra na pré-candidatura do deputado Arthur Lira (PP-AL), mais próximo do Palácio do Planalto.

Ultrapassada a sucessão das mesas, porém, não será fácil encontrar um lugar para o presidente da Casa que mais tempo ficou ininterruptamente no cargo. A eventual vacância no governo do Rio, por isso, aparece como uma saída.

Daria ao presidente da Câmara uma função com peso compatível àquela que exerce hoje e à qual seu histórico de votações como deputado não sugere que viesse a chegar pelo voto direto. Livraria o sucessor da sombra de um articulador do seu quilate e, finalmente, daria ao Rio um administrador de credo liberal, mas com trânsito na esquerda, merecedor da confiança de empresários e investidores, e azeitado relacionamento na alta magistratura.

Se bem sucedido no projeto de reforma administrativa da Câmara, o deputado daria uma demonstração da disposição para enfrentar os esqueletos da máquina pública do Rio. Ofereceria, por fim, uma chance para o Estado por um pé para fora daquela que Hipólito José da Costa, no seu auto exílio londrino, no fim do século XVIII, e recuperado em boa hora pelo historiador Chico Alencar, chamou de “Corte infame, corrupta e depravada”.

Resolve muitos problemas, menos o do presidente da República. Uma costura intrincada dessas não teria como contorná-lo. Exigiria um acordo, senão de cavalheiros, porque pressupõe que exista um no Palácio do Planalto, mas de interesses.

Um desfecho que venha a colocar Maia no governo do Rio passa por um emaranhado de processos, do prosseguimento das ações judiciais envolvendo o titular e o vice ao encaminhamento do impeachment na Alerj passando pela sucessão na Câmara. E com degraus, barreiras e recuos em cada uma dessas etapas.

Paralelamente transcorreriam no Judiciário duas sucessões cruciais para os Bolsonaro, a eleição do presidente do Tribunal de Justiça do Estado, instância decisiva para o caso de ser sacramentada a segunda instância como o foro do senador Flávio, e a lista tríplice para a Procuradoria Geral de Justiça.

Bolsonaro tem um par de trunfos para interferir nas escolhas, as vagas no Supremo Tribunal Federal. Para ambas, chovem candidatos em várias instâncias com poder sobre o processo - Procuradoria Geral da República, ministérios e tribunais superiores, para não falar daqueles patrocinados por ministros do STF.

Em julho do próximo ano, porém, quando se fecha a última vaga no Supremo, se reduz, em grande parte, o poder de barganha do presidente. E ainda que tenha sido capaz de garantir aliados no TJ e na PGJ, poderá não ter sido capaz de fechar todas as brechas que permitam revelar a contribuição das milícias para a atualidade da Corte descrita por Hipólito José da Costa.

A esta altura, um novo governador já estaria no cargo, com plenos poderes. Se este se chamar Rodrigo Maia, ainda teria a boa vontade da legião de bolsonaristas arrependidos e bem postos para viabilizar um campo para 2022. Teria que ser capaz de manter, ao mesmo tempo, canais com a União e as esperanças dos que acreditam ser possível cortar o mal pela raiz. Deve ser assim que se troca a meia sem descalçar o sapato.

A morte do século


Morrer de frio não é uma morte medieval, é uma morte do século 21
Júlio Lancellotti, padre coordenador da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, “ cidade tem mais casa sem gente do que gente sem casa”

Auxílio emergencial e recessão

O presidente Jair Bolsonaro anunciou a prorrogação do auxílio emergencial por mais quatro meses, no valor de R$ 300; metade do que estava sendo concedido nos últimos cinco meses. O valor é resultado das conversas entre o presidente da República, o ministro da Economia, Paulo Guedes, e os líderes da base do governo. A medida provisória que renova o abono será examinada pelo Congresso e ainda pode sofrer modificações. A oposição pressiona para que seja mantido o valor de R$ 600. O próprio Bolsonaro gostaria que isso ocorresse, porque sua popularidade aumentou devido ao abono, mas o governo não tem recursos para isso. A dívida pública deve chegar a R$ 1 trilhão e projeta um déficit fiscal que deve perdurar por 13 anos.

Os beneficiados pelo auxílio, no total, receberão R$ 4,2 mil do governo federal. Muitos nunca viram tanto dinheiro. Esses recursos explicam em parte o bom desempenho da agricultura, único setor positivo do PIB deste segundo trimestre do ano, principalmente da cultura do arroz (7,3%), porque o café (18,2%) e a soja (5,9%), embora tenham também grande consumo interno, foram beneficiados principalmente pelas exportações. O abono ajudou a manter os níveis de consumo de alimentos pela população. O Brasil, porém, está vivendo a maior recessão de sua história, segundo o IBGE, com uma retração de 12,3% no segundo trimestre e de 12,7% na comparação com igual período do ano passado; o agronegócio foi o único setor, pelo lado da produção, a ter números positivos, de 0,4% e 1,2%, respectivamente. Os dados foram divulgados ontem pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).


O problema principal é a indústria parada. A queda de produção na indústria de transformação foi de 17,5%, na comparação com os primeiros três meses do ano, e 20% em relação ao mesmo período do ano passado. Os setores mais atingidos foram: automotivo, máquinas e equipamentos, transporte, metalurgia e têxtil. Na indústria têxtil, a queda foi 93%, o que aponta uma retração de 23% neste ano. O ministro da Economia, Paulo Guedes, minimizou a queda do PIB e voltou a defender a tese, inverossímil, de que haverá uma recuperação em V da economia no curto prazo, o que não coincide com a avaliação do mercado financeiro. Comparou os números do PIB à luz das estrelas, que viajam milhões de ano para chegar até nós. Segundo ele, os dados refletem o passado e não a situação real da economia. A narrativa pode convencer Bolsonaro; no mercado, quase ninguém acredita.

O problema de Guedes é que os agentes econômicos estão de olho na crise fiscal. O custo do abono é quase de 1% do PIB por mês. Embora Guedes tente reduzir isso pela metade, não será muita surpresa se o Congresso decidir manter os R$ 600 até o fim do ano. O raciocínio da oposição é muito simples: é melhor aumentar o abono, com Bolsonaro contra, do que deixar o governo com saldo para gastar em obras dos ministérios da Infra-Estrutura e do Desenvolvimento Regional, que miram apenas os aliados do presidente. A relação entre a dívida e o Produto Interno Bruto (PIB) deve superar o patamar de 95% neste ano. Em 2019, o endividamento do Brasil foi de 75,8%. Se o abono de R$ 600 for mantido, a dívida pública ultrapassará 100% do PIB. O xis da questão para o mercado financeiro é o “teto de gastos”, que Guedes quer manter, mas Bolsonaro não faz muita questão. Se ele for ultrapassado, haverá retração ainda maior nos investimentos privados, sem que o governo possa compensar com recursos públicos.

A decisão de reduzir o abono emergencial de R$ 600 para R$ 300 tem um cálculo eleitoral de Bolsonaro. A ideia é absorver o desgaste inicial e, mais na frente, faturar a manutenção desse auxílio para as famílias de baixa renda por meio do novo programa de transferência de renda que substituirá o Bolsa Família, denominado Renda Brasil. Esse abono é 50% maior do que o programa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que chega no máximo a R$ 205, quando beneficia cinco pessoas, e atenderá a um número maior de pessoas de baixa renda. Com ele, o presidente da República pretende pavimentar sua reeleição. O abono ajudou o governo a mitigar o desgaste com a pandemia de Covid-19 e abriu as portas desse eleitorado para Bolsonaro, deslocando a oposição de boa parte desse segmento, inclusive no Nordeste.

O outro lado da moeda é a forma como esse déficit fiscal será administrado por Guedes. No mercado financeiro há duas hipóteses: aumento de impostos ou inflação. Qualquer um dos dois é péssimo para a economia. Preocupado com as expectativas negativas, Guedes disse que a reforma tributária ainda não está madura — na verdade, não há clima político para aumento de impostos – e anunciou que pretende mandar a proposta de reforma administrativa para o Congresso amanhã, o que sinalizaria o empenho do governo no sentido de reduzir os gastos com a sua própria máquina administrativa.

Coroa de espinhos

Agradeço a Deus por ser ateu. Se eu fosse religioso seria obrigado a, antes de mais nada, escolher um deus para cultuar, tamanha é a quantidade de deidades que existem, incluindo as afro descendentes e as de seitas esotéricas menos conhecidas. Escolhida a religião, eu teria que me familiarizar com suas doutrinas e aceitar mesmo as que desafiam o bom senso ou as leis da física. História pessoal: minha mãe católica ia à missa todos os domingos, meu pai era agnóstico, eu fui católico praticante até os 14 anos — praticante mesmo, de fazer a primeira comunhão vestindo a primeira fatiota, tendo cuidado para não morder o corpo de Cristo na hóstia e pensando nos doces que nos esperavam em casa depois da cerimônia — mas aí perdi a fé, acho que num bolso da fatiota. Me rebelei no meio do caminho. Mas me lembro dos doces, que eram ótimos.


Vendo o vídeo do Bolsonaro sendo batizado nas águas do Rio Jordão, anos atrás, me lembrei da vez em que estive no mesmo lugar, numa rápida passagem por Israel. Não, não entrei na água, mas muitos fiéis faziam fila para entrar, e serem submergidos no mesmo bálsamo sagrado com que João Batista um dia ungira Jesus, no que não deixava de ser uma cena emocionante. Entrei na loja de “souvenirs” que tem ao lado do local dos batismos no rio ainda enlevado pelo espetáculo de devoção coletiva que acabara de presenciar, talvez até a meio caminho de uma conversão como a epifania do apóstolo Paulo na estrada para Damasco, quando vi, logo na entrada da loja, uma pilha de objetos que não demorei em identificar. Eram reproduções da coroa de espinhos que martirizara Jesus no caminho da cruz — feitas de plástico!.

As coroas estavam tendo uma boa saída. Decidi que não encontraria nada que me interessasse na loja de “souvenirs” muito menos uma epifania. Um jogo que você pode fazer é cotejar tudo de bonito que devemos à Igreja, de catedrais barrocas a missas do Bach, e tudo de horroroso, da Inquisição a coroas de espinhos feitas de plástico.

O desprezo de Bolsonaro pela Ciência, as leis, a razão e a vida

Jair Messias Bolsonaro, aquele que foi candidato, se elegeu e governou até há pouco quando cedeu a vez ao presidente da República aparentemente normal que se vê hoje, pois bem, o Jair tal como sempre foi nos seus quase 30 anos de deputado federal reapareceu ao reunir-se com um bando de devotos no cercadinho de entrada do Palácio da Alvorada, em Brasília.



Foi uma breve aparição, como se quisesse demonstrar que está vivo e apenas adormecido. Ao ouvir uma mulher dizer: “Ô, Bolsonaro, não deixa fazer esse negócio de vacina, não, viu? Isso é perigoso”, Jair respondeu sem pestanejar: “Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. Bastou para que a Secretaria de Comunicação do governo reproduzisse o comentário no Twitter.

“O governo do Brasil investiu bilhões de reais para salvar vidas e preservar empregos. Estabeleceu parceria e investirá na produção de vacina”, escreveu a Secretaria. “Recursos para estados e municípios, saúde, economia, tudo será feito, mas impor obrigações definitivamente não está nos planos”. E, por fim: “O governo do Brasil preza pelas liberdades dos brasileiros”.

Pelas leis, não preza. O parágrafo primeiro do artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente diz que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. O artigo 3º da Lei 13.979, assinada por Bolsonaro, diz que “para enfrentamento da emergência de saúde pública as autoridades poderão adotar a realização compulsória de vacinação”.

No momento, o Ministério da Saúde investe em um acordo com a Fiocruz em busca de uma vacina contra a Covid-19 e discute estratégias e públicos prioritários para uma possível futura oferta. Na mais recente pesquisa Datafolha, 9 em cada 10 brasileiros disseram que pretendem ser imunizados contra o vírus que só por aqui já matou quase 123 mil pessoas, infectando 4 milhões.

Bolsonaro já pregou contra o isolamento social, o uso de máscaras e defendeu o direito das pessoas de irem e virem livremente mesmo durante uma pandemia. Como se indo e vindo e sem usar máscaras, elas não corressem o risco de se contaminar e de transmitir a doença. Contrariou a Ciência, desrespeitou as leis e desprezou a razão e a vida. O que mais falta fazer?