quarta-feira, 8 de julho de 2020

Pensamento do Dia


Receita do Dr. Bolsonaro

Subitamente diagnosticado com a Covid-19, Jair Bolsonaro convocou seus veículos de confiança e ofereceu um reconfortante relatório sobre sua saúde. “Estou perfeitamente bem!”, declarou, e atribuiu essa esplêndida condição à hidroxicloroquina, remédio indicado para malária. Pena que não possamos compartilhar sua euforia. Ao fazer um apanhado de quem deve ou não se preocupar com o vírus, foi tão categórico quanto fatalista: “É uma chuva, você vai pegar”.

É alarmante. A caminho dos primeiros 2 milhões de infectados e 100 mil óbitos nas próximas semanas, só podemos imaginar quantos brasileiros ainda tomarão essa chuva —e quantos irão encharcados para a cova.


É verdade que Bolsonaro tem trabalhado para que esses milhões sejam contaminados o quanto antes. Nas inúmeras aglomerações de que participou, sem máscara e nos braços de seus apoiadores, as imagens o mostram tirando ramela, cavoucando o nariz, disparando perdigotos e os levando em troca. Só mesmo seu histórico de atleta —exímio praticante de tiro ao alvo no Exército— explica que não tenha sido afetado antes, embora talvez não se possa dizer o mesmo dos festivos participantes de seus forrobodós.

O Dr. Bolsonaro não vacila em suas afirmações. Segundo ele, os jovens podem ficar tranquilos —mesmo que peguem o coronavírus, “a possibilidade de algo grave é próxima de zero”. Tal imunidade parece se estender também aos religiosos, presidiários, estudantes, comerciários e demais categorias que ele liberou do uso de máscara. Já os mais velhos, sim, devem se cuidar, principalmente se apresentarem “comorbidades”. Como esses coroas insistem em ser acometidos por “comorbidades”, podem ir botando suas barbas —brancas— de molho.

Já Bolsonaro está tranquilo. Se precisar, não lhe faltarão UTIs, respiradores e cânulas para intubação. E, enquanto isso, ninguém lhe perguntará pelo Queiroz.
Ruy Castro 

Escracho nacional



A política é constituída por homens sem ideais e sem grandeza
Albert Camus

Por que quero que Bolsonaro morra

Jair Bolsonaro está com Covid-19. Torço para que o quadro se agrave e ele morra. Nada pessoal.

Como já escrevi aqui a propósito desse mesmo tema, embora ensinamentos religiosos e éticas deontológicas preconizem que não devemos desejar mal ao próximo, aqueles que abraçam éticas consequencialistas não estão tão amarrados pela moral tradicional. É que, no consequencialismo, ações são valoradas pelos resultados que produzem. O sacrifício de um indivíduo pode ser válido, se dele advier um bem maior.

A vida de Bolsonaro, como a de qualquer indivíduo, tem valor e sua perda seria lamentável. Mas, como no consequencialismo todas as vidas valem rigorosamente o mesmo, a morte do presidente torna-se filosoficamente defensável, se estivermos seguros de que acarretará um número maior de vidas preservadas. Estamos?


No plano mais imediato, a ausência de Bolsonaro significaria que já não teríamos um governante minimizando a epidemia nem sabotando medidas para mitigá-la. Isso salvaria vidas? A crer num estudo de pesquisadores da UFABC, da FGV e da USP, cada fala negacionista do presidente se faz seguir de quedas nas taxas de isolamento e de aumentos nos óbitos. Detalhe irônico: são justamente os eleitores do presidente a população mais afetada.

Bônus políticos não contabilizáveis em cadáveres incluem o fim (ou ao menos a redução) das tensões institucionais e de tentativas de esvaziamento de políticas ambientais, culturais, científicas etc.

Numa chave um pouco mais especulativa, dá para argumentar que a morte, por Covid-19, do mais destacado líder mundial a negar a gravidade da pandemia serviria como um “cautionary tale” de alcance global. Ficaria muito mais difícil para outros governantes irresponsáveis imitarem seu discurso e atitudes, o que presumivelmente pouparia vidas em todo o planeta. Bolsonaro prestaria na morte o serviço que foi incapaz de ofertar em vida.

Menor que a cadeira

O anúncio de que o presidente Bolsonaro foi infectado pela Covid-19 traz em si mesmo diversas facetas dele: irresponsabilidade, falta de compaixão, negação da gravidade da pandemia, desdém indicando falta de entendimento do que seja a presidência do Brasil.


Não apenas aproveitou a ocasião para reafirmar a indicação de cloroquina e seus derivados para tratamento da doença, como fez um vídeo em tom amolecado tomando o remédio e sugerindo-o para a população que precisar. Parecia um verdadeiro garoto propaganda do remédio, cuja fabricação obrigou o Laboratório do Exército a aumentar, além dos milhões de comprimidos que recebeu como “doação” dos Estados Unidos depois que o FDA proibiu sua utilização.

A gravidade do comportamento é que o uso da cloroquina já foi desaconselhado por estudos de diversos países, e organismos com credibilidade como a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Federal Drug Administration (FDA), agência regulatória americana, o hospital Albert Einstein em São Paulo, o Instituto do Cérebro no Rio.

Todos suspenderam o uso da cloroquina para tratamento da Covid-19 depois de demonstrado que, além de não ser eficaz no combate ao novo coronavírus, a cloroquina pode causar efeitos colaterais graves, como arritmia cardíaca.

A irresponsabilidade marcou também o anúncio de que havia testado positivo para Covid-19. Embora estivesse de máscara a maior parte do tempo, o presidente tocou o microfone das televisões escolhidas para ouvir seu anúncio, aproximou-se dos repórteres e tirou a máscara em determinado momento.

Voltou a mostrar falta de empatia e desinformação ao afirmar que a Covid-19 “é como a chuva, vai molhar todo mundo”. A inevitabilidade da morte, sempre lembrada por Bolsonaro diante da tragédia humanitária que o país enfrenta, não significa que ela não deva ser retardada o mais possível, através de uma vida saudável e dos meios de atendimento à população mais carente.

Desde o início da pandemia o presidente Bolsonaro tentou mostrar-se inatingível pelo vírus, expôs-se e expôs seus admiradores ao contágio até mesmo na segunda-feira, quando voltava dos exames já com os primeiros sintomas. Bolsonaro foi conversar com o pequeno grupo que o esperava no Alvorada, quando deveria ter passado direto para não correr o risco de contaminar alguém.

Mesmo quando anunciou que está infectado, Bolsonaro não poderia tê-lo feito de forma presencial. Bastaria um comunicado oficial do Palácio do Planalto ou, se quisesse comunicar pessoalmente o fato, poderia ter usado as lives tão famosas que faz.

Seu “amigo” Donald Trump usou o caso como exemplo “do que está acontecendo” no Brasil. A doença de Bolsonaro traz também mais esse estrago político, reafirmando a situação descontrolada da pandemia entre nós. Sem ministro da Saúde, o país vai cavando sua própria cova como o que tem mais mortos por dia, e caminha resoluto para ter o maior número total de mortos.

Os brasileiros já estão proibidos de viajar não apenas para a Europa e os Estados Unidos, mas também para alguns de nossos vizinhos sul-americanos. Trump nos Estados Unidos deu uma recuada estratégica quando viu o tamanho da tragédia, embora continue não usando máscara e tenha anunciado que estava tomando cloroquina como preventivo. Boris Johnson, na Inglaterra, teve uma atuação de estadista, depois de menosprezar os riscos e sair às ruas abraçando e cumprimentando seus simpatizantes, como um Bolsonaro descabelado.

Apanhado pelo vírus, esteve quase à morte e, ao retornar são e salvo ao dia a dia de primeiro-ministro de um país que enfrenta uma crise sanitária sem precedentes, caiu em si e pediu desculpas por ter desprezado os riscos.

O momento seria uma oportunidade de ouro para Bolsonaro se redimir de sua atuação pífia diante da pandemia, e unir os brasileiros nessa guerra que ainda está longe de terminar. Mas ele não tem esse tamanho, é menor que a cadeira de presidente da República.

Bolsonarice contagiosa

A notícia de que Jair Bolsonaro, depois de tanto desafiar as regras de bom senso em uma pandemia, foi contaminado pelo novo coronavírus deflagrou um outro surto: a ira irracional daqueles que colocam adesivos antifascistas em seus perfis nas redes sociais e passaram a desejar a morte do presidente da República.

A onda não ficou restrita à internet. Chegou a colunas de jornais, travestida de exercício filosófico-linguístico, mas cujo único resultado prático é vitimizar o presidente que até agora destilou sua falta completa de empatia diante da tragédia. Perde a imprensa, perde o País, perdemos todos nós, que nos desumanizamos a cada dia, sem perceber que, aos poucos, nos transformamos naquilo que mais desprezamos.



Bolsonaro não ganhou apenas corações e mentes dos minions que os segue nas portas dos palácios e em posts ensandecidos. O presidente conseguiu comprometer o fígado e o cérebro de parte daqueles que o criticam, num jogo que apenas rebaixa todos ao seu patamar e permite que ele ganhe espaço, porque no lodaçal é imbatível.



Não há nada que justifique que democratas, pessoas e instituições se ponham a “torcer” pela morte desse ou daquele. Muito menos as indignidades de Bolsonaro, uma vez que é justamente contra elas que se conclama a união de esforços daqueles que prezam a vida, a ciência, a educação, a cultura e a civilidade.

Sim, o presidente colhe de volta a absoluta falta de compaixão que cuspiu na cara de um país estarrecido ao longo dos últimos cinco meses. Andou a cavalo, passeou de jet ski, subiu em boleia de caminhão, assoou o nariz e cumprimentou velhinhos em seguida, receitou cloroquina sem ser médico, mandou invadirem hospitais, chegou ao cúmulo de vetar o uso de máscaras e passeou por aí já infectado, possivelmente transmitindo coronavírus para os poucos com os quais diz se importar.

Diante de tanta atrocidade, merece morrer? Não. Porque esse pensamento nos prende à barbárie que o presidente, sua família e seu núcleo insano tratam de cultivar desde antes mesmo da campanha, como terreno fértil para permitir a supressão da razão, único ambiente em que alguém tão virulento pode ser eleito presidente da República.


Aqueles que são de fato a antítese de Bolsonaro só têm um caminho: torcer pela medicina, pela ciência e pela sua cura. E para que ele responda diante dos órgãos competentes pelos crimes de responsabilidade que cometeu e diante dos eleitores pelas vezes em que brincou com a vida como um déspota de quinta categoria.

O oposto de Bolsonaro não é a hashtag “força, corona”. Essa é sua consagração, seu triunfo, o caminho para sua perpetuação.


Construir de forma inteligente e lúcida o caminho para que nos curemos de Bolsonaro significa mostrar com dados e evidências o quanto seu comportamento colocou em risco não apenas a si mesmo e seus familiares, mas um país inteiro.

Como sob a falácia de salvar a economia acabou condenando vidas e boicotando qualquer chance de minimizar o estrago econômico.

É acompanhar seu tratamento e repetir aos incautos que não, cloroquina não tem efeito preventivo nem curativo comprovado. E que um presidente da República virar mascate de remédio e impor a um ministério sem ministro há quase dois meses que enfie esse remédio goela abaixo da população é mais um dado que o inabilita para exercer o cargo que exerce.


A morte de Bolsonaro em nada contribuiria para que o Brasil tivesse alta de sua doença crônica e generalizada, em que a política virou uma peste e que, ao se curar de um vírus, você automaticamente cai acamado por outro ainda mais letal. A vacina para isso se chama democracia, já está disponível e permite a imunidade a esse comportamento de rebanho que nos desumaniza.

Isolado do mundo

No dia 24 de setembro 2019, Jair Bolsonaro desperdiçou uma oportunidade de ouro para se colocar em sintonia com o concerto das nações civilizadas. Estava no primeiro ano do seu mandato e abriria a Assembleia Geral da ONU, uma tradição que vem desde os tempos de Osvaldo Aranha. Havia enorme expectativa diante de seu discurso em virtude da divulgação de números que apontavam o avanço do desmatamento da Amazônia, fruto de atividades ilegais e das queimadas.

Em vez de pregar o diálogo e mostrar compromissos com a sustentabilidade, a peça oratória de Bolsonaro investiu no anátema. Parecia que estava congelado no tempo, refém da polarização da era da guerra fria. Como um Dom Quixote da ultradireita mundial, combateu os moinhos de vento do comunismo e do multilaterismo.

Crente de que a melhor defesa seria o ataque, agrediu países como a Alemanha, Noruega e França, acusando-as de agir por protecionismo de suas produções agrícolas e de serem uma ameaça à nossa soberania nacional. As ONGs seriam os agentes desses interesses escusos. Assim, as queimadas foram vendidas como coisa da natureza e o governo como modelo na defesa do meio ambiente.

O discurso foi um marco na condição de pária à qual o Brasil passou a ser tratado.

Nove meses depois, a fatura apareceu. Fundos investidores que controlam ativos da ordem de 4 trilhões de dólares ameaçam excluir o Brasil de sua carteira de investimentos se o governo não tomar medidas concretas contra a devastação da Amazônia e de defesa dos direitos indígenas.

O governo sentiu o golpe. Mas sua reação é a de um boxeador nocauteado, sem saber como sair do canto do ringue. O vice, Hamilton Mourão, coordenador do Conselho Nacional da Amazônia, viu nas preocupações dos fundos de investimentos interesses protecionistas de outros países. Repetiu os chavões do discurso do presidente na ONU.

Já o ministro Paulo Guedes atribui a imagem negativa do Brasil a maus brasileiros. Mutatis mutantis, é o mesmo discurso da época da ditadura militar, quando se atribuía a quem denunciava no exterior as torturas a responsabilidade sobre a péssima imagem do Brasil.

A Amazônia é um tema que desperta teorias conspiratórias no governo. A começar pelo presidente. A paranoia da ameaça externa leva os militares a defenderem a ocupação da Amazônia a qualquer preço, mesmo que esse preço seja a degradação do meio ambiente e a violação dos direitos indígenas.

É uma herança dos anos 70, quando o slogan do governo Médici era integrar para não entregar.

Essa integração deu na Transamazônica, na colonização fracassada e em Serra Pelada. Também na exploração irracional da madeira, na pecuária devastadora. Em relação aos índios, foi a própria negação dos valores do Marechal Rondon, para quem a integração deveria se dar de forma voluntária e pacífica, respeitando-se o modo de vida e os valores dos nativos.

O governo está inteiramente equivocado na sua compreensão de que a reação dos fundos de investimentos e dos países desenvolvidos é fruto da “desinformação”. Ela decorre de mudanças substantivas na forma como o capitalismo se estrutura nos tempos atuais.


As empresas se organizam cada vez mais como um capitalismo de partes interessadas, dentro do conceito que elas não se compõem apenas de acionistas, mas também de funcionários, consumidores e fornecedores. De acordo com os novos conceitos, elas tem responsabilidades sociais e ambientais, daí suas preocupações com a Amazônia e os povos indígenas.

O modelo predatório vai inteiramente na contramão das tendências do capitalismo moderno. Não apenas internacionalmente, mas também internamente. Quarenta grandes empresas brasileiras acabam de encaminhar ao vice-presidente Mourão manifesto com as mesmas preocupações dos fundos investidores e onde enfatizam que “é necessário adotar rigorosa fiscalização de irregularidades e crimes ambientais na Amazônia e demais biomas brasileiros”.

O moderno agronegócio brasileiro tem se desenvolvido principalmente pelo incremento da produtividade e não pela expansão da fronteira agrícola. A frase da ministra da Agricultura, Teresa Cristina, de que o agronegócio não precisa da Amazônia para crescer, é autoexplicativa.

O problema é que o governo Bolsonaro é a negação de tudo isso. Em matéria de relações externas, de política ambiental, de modelo de exploração da Amazônia e, para acrescentar, em relação à pandemia. Não só nos condena ao isolamento no cenário internacional como age contra os interesses nacionais ao prejudicar nossas exportações.

O Brasil não sairá da condição de pária apenas trocando nomes, embora a substituição de Ernesto Araújo, no Ministério do Exterior, e de Ricardo Salles, no Meio Ambiente, seja condição necessária para romper o isolamento. Não basta mudar para tudo continuar como está. É preciso uma nova atitude e um novo modelo pautado na exploração sustentável e na cooperação. Isso contraria a alma de um presidente que ainda não se livrou dos fantasmas da guerra fria.

Brasil visto de fora


Também sou brasileiro

As noites de quarentena são marcadas por sonhos. Quem conta com eles para melhor se conhecer, acorda tentando recompor lances, faces, atmosfera, interpretando, enfim.

Esse esforço ontológico se amplia no café da manhã, aurora da dura realidade cotidiana: não importa quem eu seja, também sou brasileiro.

Os jornais dizem que brasileiros não podem entrar nos Estados Unidos. Não podem entrar na Europa. Em tempos de pandemia, isto significa que não soubemos cuidar da vida. Dizem também os jornais que 29 fundos de pensão ameaçam não investir no Brasil enquanto continuar o processo de devastação da Amazônia. Isto quer dizer que não cuidamos dos nossos recursos naturais, não nos importamos com a vida dos índios, das plantas e dos bichos.



Paulo Guedes disse que nossa imagem negativa é produzida pela ação de alguns brasileiros. Esqueceu-se de um deles, Jair Bolsonaro. A visão de mundo de Bolsonaro, sua política ambiental e seu desprezo pela gravidade da pandemia são alguns dos fatores que arrasaram nosso prestígio no exterior.


O Brasil sempre exalou vida, alegria, música exuberante e talentosos intérpretes. O próprio Guedes e Bolsonaro participaram de um espetáculo devastador para nossa imagem: uma live em que é tocada no acordeom a “Ave Maria” de Schubert.

Isso correu mundo. Em Portugal, foi tema de debate num programa de TV. Um dos debatedores, consternado com a qualidade do espetáculo, disse: qualquer brasileiro com mais de cem de QI deve estar envergonhado. A hipocrisia da homenagem aos mortos na pandemia, a qualidade do intérprete, a própria live, eram uma visão rastaquera do Brasil.

Não trabalho com critérios de QI, nem conheço bem as diferenças entre seus números. Imagino que Paulo Guedes, a julgar pela admiração da elite brasileira, tenha um dos índices mais elevados.

A impressão que tive dele na reunião de 22 de abril não é boa. Não tanto por se inspirar num ministro da Economia nazista, nem por propor trabalhos militarizados para os jovens. O que me chamou a atenção foi ouvi-lo dizer que leu oito livros para cada uma das experiências de reconstrução alemã.

Nelson Rodrigues, quando alguém argumentava com números e frações, 50,2, por exemplo, perguntava: para que os quebrados? No meu caso, perguntei a mim mesmo, por que uma simetria tão rigorosa de leitura? Não seria algo para impressionar a maioria de iletrados em torno da mesa?

Paulo Guedes está enganado. Estamos tentando segurar a onda dessa grotesca vulgaridade do governo brasileiro. Quando se faz o movimento Stop Bolsonaro lá fora é para mostrar que nem todos os brasileiros compartilham essas ideias retrógradas.

Paulo Guedes apontou para nos representar no Banco Mundial um homem que diz odiar a expressão “povos indígenas”. Essas duas participações, uma no campo da estética, outra, no da economia, são suficientes para que se olhe no espelho e pergunte: serão mesmo os outros brasileiros que comprometem nossa imagem no exterior?

Os liberais brasileiros têm uma longa relação com o autoritarismo. Alguns de alto nível, como Milton Campos e Pedro Aleixo, tentaram ser discretos no seu escorregão histórico.

Os liberais na economia parecem topar tudo por seu projeto. Assim como os estatizantes também topam. Se dependêssemos do radicalismo dos primeiros, estávamos sem um instrumento essencial nessa crise: o SUS. Se dependêssemos dos estatizantes radicais, não teríamos privatizado as telecomunicações e nem amenizado o impacto da pandemia.

Guedes, Bolsonaro e os militares precisam saber que também somos brasileiros e que grande parte de nosso poder depende da arte, da diplomacia da paz, de uma respeitada legislação ambiental.

Eles demoliram nosso soft power para colocar no seu lugar essa caricatura de imagem que se transforma em piada nos programas de TV em Portugal, em irritação no norte da Europa.

Eles riscaram o Brasil do mapa mundial. Deveriam ter a lucidez de renunciar e deixar que o recoloquemos. Não é só uma questão narcisística de imagem: é de nossa sobrevivência que se trata.

Já não podemos sair, os capitais dos fundos de pensão não querem entrar, daqui a pouco boicotam nossos produtos no exterior. Por que não se reúnem na intimidade para ouvir o presidente da Embratur tocar a “Ave Maria”? Há espaço para tudo aqui dentro. Mas nem tudo representa o Brasil.
Fernando Gabeira

'Superioridade' tabajara



Há em ser brasileiro o gozo de um benefício, uma vantagem, uma superioridade
Conde Afonso Celso, “Porque me ufano de Meu país”

Memórias da milícia

Se a longa história da palavra tivesse a duração de uma partida de futebol, só aos 43 minutos do segundo tempo "milícia" ganharia o sentido que inunda o noticiário policial e se infiltra no político.

Ao desembarcar no português do século 14, tinha a acepção que herdara do latim "militia": campanha de guerra, serviço militar. Logo surgiria uma distinção entre miliciano e militar, uma rusga no seio da família do patriarca latino "miles" (soldado).

A distinção era semântica e de classe. Formada por cidadãos informalmente armados, não por profissionais, às vezes nem dinheiro para comprar garruchas a milícia tinha. Ficava bem abaixo dos militares na pirâmide social.

Consta que o sentido de força auxiliar de segurança surgiu no século 17 no francês "milice": "tropa de cidadãos recrutados nas comunidades para reforçar o exército regular". Recrutados por quem?

Pelo Estado, claro. As milícias tiveram na Revolução Francesa e nas guerras de independência do Novo Mundo um viés libertário, mas o Estado sempre deu um jeito de se apropriar de seu ardor.

Preservada em formol, aquela rebeldia original sustenta o direito às armas consagrado na Segunda Emenda à Constituição americana --relíquia do tempo do mosquetão na era do AR-15.

Findos os tumultos de outrora, a história tendeu ao estabelecimento de Estados nacionais garantidores de ordem interna. É verdade que às vezes se dá o oposto, mas desde então, na maioria das ocasiões, o cidadão ocidental médio tem feito escolhas políticas que acredita capazes de lhe garantir paz para tocar a vida sem precisar matar uma mosca.

Assim, domesticadas no século 19 como guardas nacionais e forças auxiliares, as milícias tiveram em diversos países uma carreira oficial, ainda que subalterna. No caso brasileiro, o papel de polícia constava entre suas funções --na manutenção da "ordem pública" e na captura de escravos fugidos, por exemplo.

Quando, em 1918, o sociólogo Max Weber definiu o Estado como o detentor do monopólio da violência, as milícias já vinham sendo descartadas como elementos de política de segurança em todo o mundo.

Transmutaram-se em burocráticas forças policiais, do lado civil, ou foram extintas, do lado militar. Se a Segunda Emenda preserva o espírito miliciano setecentista, seu colega brasileiro do século 19 mora no título do clássico "Memórias de um Sargento de Milícias" (1854), de Manuel Antônio de Almeida.

Órfã do Estado, a milícia voltou no século 20 a velhas zonas de voluntarismo e ilegalidade. Às vezes em sentido figurado, passou a designar grupos de militantes de causas variadas.

Essa é a história geral. A milícia brasileira do século 21 é diferente, específica. Diz o dicionário "Houaiss": "grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime".

O dicionário informa ainda que a acepção surgiu em torno de 2007 (há registro dela dois anos antes em reportagem de "O Globo") e que se trata de um uso carioca (hoje nacionalizado).

Como a diferença faz fronteira com a semelhança, as milícias de hoje ecoam as de antigamente na função de polícia, na opressão aos descendentes daqueles mesmos escravos e no apoio discreto --ou nem tanto-- recebido de um Estado degradado que acha boa ideia abrir franquias daquilo que, como ensinou Weber, é sua própria razão de ser.

A era do ‘vale-tudo’ nas redes sociais está acabando

Nos últimos dias houve novidades impactantes para o futuro das redes sociais. Nenhuma decisão por si só é brutalmente inovadora. Mas seu fluxo incessante indica o caminho que as redes adotaram: o discurso de ódio não é permitido e a linha vermelha ficará cada vez mais clara. A guerra sobre onde está o limite marcará o futuro da Internet.
Em ordem de importância, as decisões foram estas quatro: primeiro, o Twitch removeu temporariamente o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de sua plataforma. O Twitch é uma rede de transmissões ao vivo dedicadas principalmente a videogames. Mas seu crescimento é contínuo e os streamings são cada vez mais variados. O conteúdo que aparentemente provocou a suspensão temporária de Trump é um streaming de um comício dele em 2015, no qual dizia que o México estava enviando estupradores para os Estados Unidos, além de outros comentários racistas em um recente comício em Tulsa, Oklahoma.


O Twitch parece que passou a levar a sério as repetidas acusações de mulheres de que permite o assédio em sua plataforma. A importância primordial da decisão do Twitch é que cancelou a voz do presidente dos Estados Unidos. Outras redes sempre optam por mantê-lo, com a desculpa do discurso político e de sua importância informativa, na melhor das hipóteses chamando a atenção com avisos ao lado de suas mensagens. O Twitch, de propriedade de Jeff Bezos, com quem Donald Trump tem uma relação complicada, foi um passo além.

A decisão do Twitch se soma à do Snapchat no início de junho, quando decidiu deixar a conta de Trump intacta, mas não a destacar mais em sua página principal, para impedir que seus comentários promovam violência.

O segundo é o Reddit, que removeu mais de 2.000 comunidades de sua plataforma por promoverem discurso de ódio. O motivo foi a atualização de suas políticas: “A regra 1 estabelece explicitamente que as comunidades e os usuários que promoverem o ódio baseado em identidade ou em vulnerabilidade serão suprimidos”. O Reddit é uma rede social estruturada em torno de milhares de comunidades de interesse às quais os usuários se unem ―de questões políticas a peculiaridades como bricolagem, culinária ou arquitetura― e que têm seus próprios moderadores voluntários.

Desde a sua criação, em 2005, o Reddit se caracterizava como um dos fóruns mais transgressivos da Internet. Isso acabou. O Reddit agora baniu canais que violam sua nova norma de ódio, de todas as ideologias, mas um se destaca: r/The_Donald. Chama-se assim por seu apoio ao presidente. O Reddit tentou, durante anos, sem sucesso, fazer com que os moderadores do r/The_Donald restringissem os posts ao que é permitido. As punições e sanções da empresa contra a comunidade fizeram com que os usuários mais ativos migrassem para um fórum próprio: TheDonald(.)win.

Terceiro, o Facebook designou o movimento Boogaloo como uma “organização perigosa”, o que resulta em ações contra seus promotores. A empresa excluiu 220 contas do Facebook, 95 contas do Instagram, 28 páginas do Facebook e 106 grupos, além de outros 400 grupos e 100 páginas vinculadas.

O Boogaloo é uma dessas coisas impossíveis que não existiriam sem a Internet. O nome vem de um filme dos anos 80 e era usado em fóruns remotos como 4chan e 8chan. Seus membros são aparentemente filiados à tradição de milícias armadas nos Estados Unidos e sua suposta intenção é provocar uma segunda guerra civil nos Estados Unidos. No final de maio, um extremista que dizia pertencer ao grupo matou um policial em Oakland, Califórnia. Seu local preferido de coordenação era supostamente o Facebook.

Parece natural para o Facebook perseguir grupos que usam sua plataforma para matar policiais, mas o Boogaloo é um desafio em si mesmo. Seu esquema de organização consiste em usar outros nomes como referência, dissimular suas opiniões e enganar a rede. O esforço que o Facebook deverá dedicar à caça de grupos organizados para combater ferramentas de inteligência artificial que eles adotam será enorme e uma novidade.

Quarto, o YouTube fechou alguns canais que considerava racistas. De novo, não é a primeira vez. Mas seus tentáculos se expandem. Um dos canais é de Stefan Molyneux, que lamentou no Twitter a “censura” imposta pela plataforma. Para gente como ele, o desaparecimento do YouTube pode causar problemas de subsistência. A possibilidade de crescimento que o YouTube lhe dava é difícil de encontrar em outro lugar. Molyneux tentou o Twitch, com pouco sucesso. A personalidade e os usuários de cada rede são únicos.
A Internet não é mais a mesma

Estas medidas são importantes por vários motivos, mas há um mais do que evidente: a Internet não é mais o espaço livre e aberto onde todos nós nos conectamos com todos, sem que ninguém intervenha. Isso pode continuar a ser feito, é claro: na maioria dos países, ninguém impede a abertura de um site nem que se conte a barbaridade que se desejar, desde que isso não seja um crime. O problema será como ficar conhecido, disseminar e propagandear esse conteúdo.

As principais plataformas são aquelas onde as pessoas estão. Um grupo de fanáticos poderá continuar criando seu fórum supremacista na Internet, mas como recrutarão novos usuários? Onde encontrarão milhões de almas cândidas dispostas a rir de seus memes agressivos? O r/The_Donald se beneficiava da página inicial do Reddit ―”a capa da Internet”― que milhões de pessoas acessavam para ver o que estava acontecendo, qual era a tendência. Ali, as piadas poderiam atrair a atenção de usuários que acabariam entrando no r/The Donald para ver o que mais havia. Agora, The_Donald é um site na Internet. Lá podem conversar, rir e se organizar, até crescer, mas devagar. Eles não têm mais um lugar fácil para recrutar adeptos.

O pesquisador Savvas Zannettou, do Instituto Max Planck, de Berlim, analisou a influência na conversa na Internet do antigo canal r/The_Donald no Reddit. Era impactante. Agora ele se empenha em analisar como o fim de sua relação com o Reddit repercutiu no peso desse grupo. A investigação não está terminada, mas ele é cético: "Nossos resultados preliminares mostram que apenas uma fração dos usuários ativos no r/The_Donald migrou para a nova casa, mas esses usuários estão mais ativos agora do que quando estavam no Reddit", explica. Embora o trabalho não esteja concluído, a intuição de Zannettou indica que seu peso caiu. "Suspeito que a influência da nova casa será substancialmente menor em comparação com a anterior, pois agora eles têm plataforma/fórum próprios e não podem facilmente alcançar o grande número de usuários que passavam pelo Reddit", acrescenta.

O nervosismo do ano eleitoral nos EUA, a pressão desencadeada pelo movimento Black Lives Matter e as evidências, com a pandemia, de que as informações que circulam nas redes têm consequências reais facilitaram a absorção dessas decisões. Mas é uma tendência que parece clara há anos. O fundador e CEO do Reddit, Steve Huffman, refletiu no The New York Times sobre sua mudança de opinião: “Quando começamos o Reddit, há 15 anos, não proibíamos coisas. E era fácil, como para muitas outras pessoas, dizer coisas assim porque, primeiro, eu tinha crenças políticas muito mais rígidas, e segundo, me faltava perspectiva e experiência do mundo real”, diz ele. A tradução é simples: os fundadores dessas redes não são mais tão jovens e viram que as consequências de permitir tudo são extraordinárias.

Mas Huffman prossegue: “Aqui estamos agora, acreditando que a liberdade de expressão é muito importante e que é uma das coisas que torna o Reddit especial, mas, ao mesmo tempo, vendo que permitir tudo é trabalhar contra a nossa missão”. Até agora, a linha vermelha do que as redes permitiam era feita de tinta borrada e desgastada, mas, com o tempo, está se tornando um muro sólido para deixar de fora o que acreditam ser ódio, assédio e violência. Parece uma decisão lógica e fácil, mas há tribunais que discutem os limites há décadas.
Jordi Pérez Colomé

Bolsonaro, fique em casa!

Caros brasileiros,

Bolsonaro esta com covid-19. E daí? Quando o presidente anunciou a infecção pelo vírus, tentou tranquilizar todo mundo: "Estou perfeitamente bem."

Se existe uma coisa da qual não se pode acusar o presidente é de falta de coerência. Com ou sem coronavírus, ele permanece o mesmo. Continua minimizando os efeitos da pandemia, mesmo depois de ser infectado.

É uma coerência impressionante, porém puramente negativa. É baseada na falta de tudo o que é importante para um bom governo: falta de responsabilidade, falta de empatia, falta de conhecimento, falta de sinceridade, falta de racionalidade, falta de educação, falta de tato, falta de atitude de estadista.

Essa coerência negativa é a marca registrada do governo Bolsonaro. E ela contribuiu definitivamente para a propagação da epidemia no Brasil. Mesmo com mais de 65 mil mortos pela covid-19, aposto aqui que Bolsonaro não vai mudar sua atitude.

Pelo contrário: ele vai continuar insistindo em uma narrativa de que está enfrentando o mal e a "histeria" em torno do combate à "gripezinha" – como ele se referiu à doença numa entrevista à Radio Bandeirantes em 16 de março deste ano.


"Se a economia afundar, afunda o Brasil. E qual o interesse dessas lideranças políticas? Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder."

Essa "luta de poder" causou uma tragédia política e econômica no Brasil. Mas Bolsonaro deve ir até o fim. E seus apoiadores vão segui-lo. Pois a cegueira ideológica não permite outra saída.

Só um pequeno detalhe: Bolsonaro pode se dar o luxo de manter uma postura tão radical. Afinal, ele terá o melhor tratamento médico possível. Para ele, com certeza não vai faltar leito na UTI, nem médicos e enfermeiros.

Mas para milhões de brasileiros, inclusive muitos dos seguidores do presidente, a situação é bem diferente. O vírus continua matando numa velocidade assustadora. E ele ataca especialmente pessoas vulneráveis, sem plano de saúde, que correm um risco ainda maior de contaminação, pois não podem trabalhar em casa.

"E daí!?" Os familiares dos mais de 65 mil mortos por covid-19 com certeza não falariam uma frase dessas no enterro dos seus entes queridos. "A vida continua" para eles de um modo bem diferente daquele que Bolsonaro sugere.

Para Bolsonaro, "a vida continua" na coerência negativa. Com ou sem coronavírus, ele não tem mais como fugir do caminho rumo ao abismo. Pois até o final do mandato não terá tempo suficiente para corrigir suas inúmeras decisões erradas e pedir perdão pelos inúmeros insultos e ofensas proferidos.

Para o Brasil, chegou a hora de decidir se o país vai continuar caminhando rumo ao abismo ao lado de seu presidente doente. Eu ficaria feliz se o presidente seguisse os conselhos dos seus médicos e ficasse em casa. Melhoras!
Astrid Prange de Oliveira