segunda-feira, 25 de julho de 2022

Pensamento do Dia

 


E aquela do Millôr?

Se o Brasil de hoje é isso que estamos vendo, não foi por falta de aviso. Millôr Fernandes (1923-2012) levou grande parte do século 20 nos avisando. Exemplos?

"Deus projetou o Brasil como uma sala de estar. Mas os proprietários preferiram usá-lo como depósito de lixo." "Deus é brasileiro. Mas, para defender o Brasil de tanta corrupção, só escalando Deus no gol." "A voz do povo é a voz de Deus. Mas Deus, sempre que fala, manda o povo calar a boca." "O Brasil é uma empresa unifamiliar." "Brasil, país do faturo." "Brasília é a prova de que os países também se suicidam."

"O cavalo foi um elefante projetado pelo Planalto. Na hora do acabamento, sumiram vinte por cento." "O dinheiro da corrupção compra até caráter sem jaça." "Nossos corruptos são tão incompetentes que só conseguem roubar do governo. Se fossem ladrões na iniciativa privada, morreriam de fome."

"Afinal, o que mais falta nesse Congresso? Quorum ou dequorum?" "No Congresso Nacional, uma mão suja a outra."

"Não há bem que sempre dure. Nem mar que nunca se acabe." "Bons tempos em que o faroeste era nos Estados Unidos!" "Racista é um cara que nunca mandou examinar sua árvore genealógica." "Conciliação vem de ‘cílios’. Conciliador é o cara que fecha os olhos. Não vê. Porque não quer ver." "Quem confunde liberdade de pensamento com liberdade é porque nunca pensou em nada."

"Só haverá democracia no dia em que tivermos voto a favor, voto contra e voto retroativo." "Aliás, por que não só o voto contra? O menos votado seria eleito." "O Brasil engoliu o gorila, mas deixou o rabo de fora." "Quando é que os milicos vão se convencer de que ‘civilização’ vem de civil?" "No Brasil, só há duas escolhas: desobediência civil ou obediência militar." "Uma maneira de acabar com as pretensões da caserna é pegar todos esses milicos metidos em política e convocá-los pro serviço militar obrigatório."

O saturado e o podre

Em entrevista bem ponderada, um pastor evangélico fez raro diagnóstico de "apodrecimento da política e da religião". Há, de fato, um momento em que toda forma de poder, benigna ou maligna, começa a definhar. Para o primeiro tipo, o sociólogo russo Pitirim Sorokin, fundador do departamento de sociologia de Harvard, concebeu a hipótese da "saturação", ou seja, de esgotamento das possibilidades históricas de uma forma social. O segundo diz respeito às formas autocráticas, que atropelam a normalidade das instituições sociais.

É possível, assim, falar de saturação das formas canônicas da democracia representativa ou, noutro plano, de uma fórmula anteriormente consagrada da indústria cultural. A televisão e as revistas semanais coloridas fornecem um bom exemplo. Nas décadas de 1960 e 1970, as revistas prosperaram em termos de audiência e publicidade até a inevitável saturação frente aos atrativos da televisão que, por sua vez, também tenta hoje contornar com "remakes" de sucesso o enfartamento das telenovelas. Esse é um fenômeno razoavelmente normal, dentro do escopo teórico de Sorokin.


Agora, fala-se publicamente de algo além do mero saturado, que é o podre. A fala do pastor foi explícita, mas referências e adjetivos de formadores de opinião revelam ampla percepção do apodrecimento cognitivo nos comportamentos públicos, de que acaba de dar mostra à diplomacia estrangeira o presidente da República. Além disso, porém, é o próprio tecido coesivo de instituições, no âmbito da religião e da política. Basta ver a sanha autodestrutiva da elite política, que oscila entre o espúrio e o escatológico. Ou então, as "igrejas" que se multiplicam como vírus ou filiais de comércio umas das outras, amealhando o máximo da renda mínima de legiões de incautos. É como se houvesse septicemia da dignidade pessoal e coletiva.

Numa perspectiva global, isso tudo é efeito da exaustão de instituições democráticas, em meio ao turbilhão mundial de mudanças. São diversos, porém, os níveis regionais do fenômeno. O que dá margem à "teoria da flor frágil", a ideia do sociólogo Anthony Giddens de que a democracia não pode crescer em terreno superficial, pois suas raízes dependem de solo profundo e de acumulação de cultura cívica. Seria o tipo de crescimento que Gramsci identificou como "ocidentalização" da sociedade civil, do qual se viram entre nós alguns sinais com o fim da ditadura militar.

Só que a política já saturada foi incapaz de perceber outro tipo de sedimentação, a do Mal, solo da atual variante "transgênica" entre o perverso e o asqueroso. Assim chegamos ao auge: não só as coisas, mas também um certo substrato humano está indo pelo ralo, além da saturação e apodrecendo a inferno aberto, como esgoto não tratado.

Bolsonaro atende às demandas do crime organizado

O século XXI é um século de prestação de contas com a natureza. A humanidade sofre cada vez mais as consequências do aquecimento global causado pelos efeitos acumulados da atividade econômica que, há quase dois séculos, libera gases do efeito estufa à atmosfera.

No século XXI, toda política pública deve levar em conta o dilema climático. Esse problema exige uma nova consciência e uma nova postura dos seres humanos em relação à realidade e à natureza, desvinculada da lógica deletéria que nos trouxe até aqui. Mas uma nova consciência não parece emergir. Pelo contrário, num dos estágios mais críticos da humanidade, os políticos mais desqualificados ganham destaque e ascendem ao controle da máquina pública.

Em um mundo minimamente decente e razoável, todo chefe de Estado deveria elaborar políticas ambientais que levem em conta o enfrentamento à emergência climática que assola a humanidade. Mas no capitalismo as coisas não funcionam assim. Ao invés da máquina pública ser administrada visando o bem coletivo, ela acaba sendo ocupada por interesses privados. A elite possui cabedal e fortuna o suficiente para utilizar seu dinheiro e poder econômico para se infiltrar na política em nome de seus interesses particulares.


Sabemos que, em nome das grandes propriedades de terras, a fronteira agrícola consome a vegetação nativa e instaura o pastoreio e a monocultura de soja. A exploração da Floresta Amazônica também conta com inúmeras mineradoras estrangeiras. Porém, no governo Bolsonaro a escala da destruição foi além. Os setores clandestinos da economia, como garimpeiros, grileiros e madeireiros, se sentiram empoderados e ganharam espaço com a conveniência do Estado que os livrou dos empecilhos causados pela fiscalização. Os incêndios aumentaram, o desmatamento acelerou e a violência se intensificou.

Bolsonaro opera na política sob uma visão de mundo em que o espaço físico e os recursos naturais devem ser explorados pelo agronegócio, pelas mineradoras e pelos setores clandestinos da economia. Ele contribui para a batalha deliberada contra o meio ambiente e o bem-estar coletivo, em nome da livre atividade do crime organizado.

A Floresta Amazônia, por exemplo, deve ser vista como fonte de muitas riquezas. Além de abrigar uma riqueza imaterial imensa, correspondente a uma variedade de espécies de plantas e animais – além de povos e comunidades tradicionais, sua transpiração e regime de chuvas irrigam a América Latina e impactam positivamente o clima em escala global. A vida que ali se ergue é um patrimônio imensurável, que pela própria grandeza tem o direito de permanecer onde está. Contudo, num país inserido de forma subalterna no mundo globalizado, cujo sistema econômico se configura para atender às demandas do mercado externo, toda riqueza natural é avaliada como um recurso a ser explorado para fazer dinheiro.

O assassinato de indígenas e outros defensores do meio ambiente ocorrem nesse contexto em que tudo é permitido em nome da exploração econômica da Floresta. O assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips é resultado de um projeto de governo, de uma situação elaborada pelo desmonte de políticas ambientais encabeçado pelo governo Bolsonaro. O próprio Bruno foi exonerado na Funai por Sergio Moro, depois de operações eficientes contra o garimpo.

Um governo que mina a eficiência do combate ao crime organizado é um governo que denuncia sua própria conveniência com ele. A impunidade e a falta de fiscalização decretada pelo governo empoderou os criminosos. O desmonte das políticas ambientais é a própria forma do governo declarar a permissividade às atividades clandestinas.

Não temos um Estado que se omite em relação à violência, ao crime organizado, à destruição da natureza, como muitos dizem. Na verdade, temos um Estado conveniente e apoiador desse tipo de crime, cujo próprio projeto de governo é facilitar a realização dessas atividades. A crise ambiental e humanitária enfrentada pelo Brasil conta com a colaboração ativa do governo.

A trajetória de uma geração : do golpe a um putsch de cervejaria

Violações das leis e crimes contra a ordem constitucional são cometidos às claras, diante de uma sociedade apática e desmobilizada. Seu objetivo é manter o poder presidencial a qualquer custo. Embora possa fracassar em seu intento terrorista, para ser barrado o bolsonarismo precisa ser confrontado por ações democráticas de mobilizações de massa

Os últimos lances da temerária e imprevisível derrocada do governo bolsonarista indicam que estamos mais próximos de presenciar imagens grotescas e chocantes de um fracassado putsch de cervejaria, à la Hitler, do que de um golpe militar tradicional, com tanques nas ruas e aviões despejando bombas em alvos estratégicos. A convocação de embaixadores para uma degradante encenação golpista dentro do Planalto, o atentado político de Foz do Iguaçu e descobertas de novas redes de corrupção já constituem crimes para o afastamento de Bolsonaro. Faltam convocar o povo para as ruas e uma reação soberana dos tribunais superiores, cujos juízes estão sendo emparedados.

Faço parte de uma geração que chegando aos 20 anos, ao entrar numa faculdade, teve seus caminhos barrados por uma ditadura intransponível. Enredados num ciclo de perseguição e violência, os jovens reagiram como puderam, até de armas na mão. Caçados e assassinados nas ruas, muitos foram presos, torturados, mortos ou exilados, tragados por uma sangrenta repressão interna. Em processos abertos pela Justiça militar, foram acusados de subversivos e comunistas, assaltantes de banco, inimigos das famílias e da ordem ditatorial estabelecida.

Para os crentes que marcham com Deus pela liberdade e ainda não sabem, num regime totalitário a barbárie corre solta, não há leis nem esperança. Conhecedora deste submundo, uma amiga me ligou no sábado de manhã, apreensiva, perguntando se eu estava preparado para voltar às trincheiras. Estão planejando uma nova matança, disse ela, incapaz de dissimular o medo. Não sei se procuro uma embaixada ou se caio na clandestinidade novamente, mas acho que estou velhinha demais para isso. Sei que não aguento duas ditaduras.

Usando seu senso de humor, Márcia lamentou que de uma hora para outra possa ser impedida de sair de manhã para dar uma volta de bicicleta no calçadão da praia. Ou simplesmente caminhar pela areia, fazer alguns exercícios e respirar ao ar livre, sem se sentir aprisionada entre quatro paredes, dentro de um quartel, com uma janela gradeada à sua frente e toque de alvorada às 5 horas. Isso jamais, enfatizou minha amiga.


O que os brasileiros estão presenciando a cada momento é um processo de destruição paulatina das instituições democráticas, substituídas por e atos e medidas de um governo autocrático e populista, que se movimenta com a cobertura de seus aliados do Centrão, no Parlamento, e de militares da ativa, encobertos. O incentivo à ação direta e violenta de civis contra os inimigos é algo que vem sendo feito desde o início do governo. Agora, com a proximidade e a provável derrota na eleição, ele apressou o passo e tirou o revólver da cintura.

Violações das leis e crimes contra a ordem constitucional são cometidos às claras, diante de uma sociedade apática e desmobilizada. Seu objetivo é manter o poder presidencial a qualquer custo. Embora possa fracassar em seu intento terrorista, para ser barrado o bolsonarismo precisa ser confrontado por ações democráticas de mobilizações de massa. Sem a intervenção popular nas ruas, as instituições não serão capazes de conter as ameaças golpistas contra o sistema eleitoral.

O futurou tornou-se tenebroso, diz minha amiga, que não vê margens para grandes manifestações de rua. Não vejo condições de repetir passeatas, como a dos 100 mil. O povo sofre, passa fome, mas não identifica os responsáveis. A inércia trazida pela pandemia é predominante, desejos e necessidades são de outra natureza. Márcia estudou História na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, onde fiz jornalismo.

No início dos anos 60, num clima de liberdade e de grande agitação política e cultural, a Fenefi desempenhou papel importante na formação de uma geração de esquerda que estava entrando na vida social e econômica. Pelo intercâmbio interdisciplinar de seus cursos, era considerada uma pequena universidade, de elevado potencial subversivo.

A agitação estudantil da década foi prenúncio de uma decantada e frustrada guerrilha urbana. As escaramuças entre estudantes e policiais militares eram diárias, com as ruas bloqueadas por barricadas e cavaletes. Transeuntes fugiam em debandada, enquanto os PMs montados em seus cavalos saíam em disparada atrás dos estudantes.

Com o golpe de 1964, um contingente desses jovens engajados dispersou-se pelas diversas organizações revolucionárias que estavam em gestação. Depois da diáspora, no final da década, os sobreviventes foram se reencontrar nas Estações Doicodi da ditadura, ou no exílio. Muitos ficaram pelo caminho. Seus nomes figuram nas listas de mortos e desaparecidos. Alguns deles nomeiam praças, ruas e até escolas nos subúrbios.

Um vasto e inapreensível sentimento do mundo varreu a década, que o acúmulo de leituras, filmes e vivências pessoais transformou em descobertas múltiplas. Utopia foi um de seus nomes. Vários foram os caminhos e a revolução social um deles, tudo impregnado de uma magia transcendente, que pairava acima da realidade.

Estávamos às vésperas do apocalipse, como estamos de novo agora, Em 64, veio o golpe militar que implantou uma longa ditadura. Em agosto ou setembro de 2022 o que vem por aí pode ser a tentativa de um putsch sangrento, no modelo Adolf Hitler. O da cervejaria de Munique, em 1923, fracassou.