Os últimos lances da temerária e imprevisível derrocada do governo bolsonarista indicam que estamos mais próximos de presenciar imagens grotescas e chocantes de um fracassado putsch de cervejaria, à la Hitler, do que de um golpe militar tradicional, com tanques nas ruas e aviões despejando bombas em alvos estratégicos. A convocação de embaixadores para uma degradante encenação golpista dentro do Planalto, o atentado político de Foz do Iguaçu e descobertas de novas redes de corrupção já constituem crimes para o afastamento de Bolsonaro. Faltam convocar o povo para as ruas e uma reação soberana dos tribunais superiores, cujos juízes estão sendo emparedados.
Faço parte de uma geração que chegando aos 20 anos, ao entrar numa faculdade, teve seus caminhos barrados por uma ditadura intransponível. Enredados num ciclo de perseguição e violência, os jovens reagiram como puderam, até de armas na mão. Caçados e assassinados nas ruas, muitos foram presos, torturados, mortos ou exilados, tragados por uma sangrenta repressão interna. Em processos abertos pela Justiça militar, foram acusados de subversivos e comunistas, assaltantes de banco, inimigos das famílias e da ordem ditatorial estabelecida.
Para os crentes que marcham com Deus pela liberdade e ainda não sabem, num regime totalitário a barbárie corre solta, não há leis nem esperança. Conhecedora deste submundo, uma amiga me ligou no sábado de manhã, apreensiva, perguntando se eu estava preparado para voltar às trincheiras. Estão planejando uma nova matança, disse ela, incapaz de dissimular o medo. Não sei se procuro uma embaixada ou se caio na clandestinidade novamente, mas acho que estou velhinha demais para isso. Sei que não aguento duas ditaduras.
Usando seu senso de humor, Márcia lamentou que de uma hora para outra possa ser impedida de sair de manhã para dar uma volta de bicicleta no calçadão da praia. Ou simplesmente caminhar pela areia, fazer alguns exercícios e respirar ao ar livre, sem se sentir aprisionada entre quatro paredes, dentro de um quartel, com uma janela gradeada à sua frente e toque de alvorada às 5 horas. Isso jamais, enfatizou minha amiga.
O que os brasileiros estão presenciando a cada momento é um processo de destruição paulatina das instituições democráticas, substituídas por e atos e medidas de um governo autocrático e populista, que se movimenta com a cobertura de seus aliados do Centrão, no Parlamento, e de militares da ativa, encobertos. O incentivo à ação direta e violenta de civis contra os inimigos é algo que vem sendo feito desde o início do governo. Agora, com a proximidade e a provável derrota na eleição, ele apressou o passo e tirou o revólver da cintura.
Violações das leis e crimes contra a ordem constitucional são cometidos às claras, diante de uma sociedade apática e desmobilizada. Seu objetivo é manter o poder presidencial a qualquer custo. Embora possa fracassar em seu intento terrorista, para ser barrado o bolsonarismo precisa ser confrontado por ações democráticas de mobilizações de massa. Sem a intervenção popular nas ruas, as instituições não serão capazes de conter as ameaças golpistas contra o sistema eleitoral.
O futurou tornou-se tenebroso, diz minha amiga, que não vê margens para grandes manifestações de rua. Não vejo condições de repetir passeatas, como a dos 100 mil. O povo sofre, passa fome, mas não identifica os responsáveis. A inércia trazida pela pandemia é predominante, desejos e necessidades são de outra natureza. Márcia estudou História na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, onde fiz jornalismo.
No início dos anos 60, num clima de liberdade e de grande agitação política e cultural, a Fenefi desempenhou papel importante na formação de uma geração de esquerda que estava entrando na vida social e econômica. Pelo intercâmbio interdisciplinar de seus cursos, era considerada uma pequena universidade, de elevado potencial subversivo.
A agitação estudantil da década foi prenúncio de uma decantada e frustrada guerrilha urbana. As escaramuças entre estudantes e policiais militares eram diárias, com as ruas bloqueadas por barricadas e cavaletes. Transeuntes fugiam em debandada, enquanto os PMs montados em seus cavalos saíam em disparada atrás dos estudantes.
Com o golpe de 1964, um contingente desses jovens engajados dispersou-se pelas diversas organizações revolucionárias que estavam em gestação. Depois da diáspora, no final da década, os sobreviventes foram se reencontrar nas Estações Doicodi da ditadura, ou no exílio. Muitos ficaram pelo caminho. Seus nomes figuram nas listas de mortos e desaparecidos. Alguns deles nomeiam praças, ruas e até escolas nos subúrbios.
Um vasto e inapreensível sentimento do mundo varreu a década, que o acúmulo de leituras, filmes e vivências pessoais transformou em descobertas múltiplas. Utopia foi um de seus nomes. Vários foram os caminhos e a revolução social um deles, tudo impregnado de uma magia transcendente, que pairava acima da realidade.
Estávamos às vésperas do apocalipse, como estamos de novo agora, Em 64, veio o golpe militar que implantou uma longa ditadura. Em agosto ou setembro de 2022 o que vem por aí pode ser a tentativa de um putsch sangrento, no modelo Adolf Hitler. O da cervejaria de Munique, em 1923, fracassou.
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