Enfermeira segura bebê com Covid-19 em Wuhan, na China, (China Daily) |
terça-feira, 24 de março de 2020
Entre charlatanismo e ciência, o povo já escolheu
Assistimos a um governo em esfacelamento, acuado e incapaz de agir de forma decisiva. A ajuda de R$ 200 mensais a trabalhadores informais, irrisória (mas melhor do que nada), anunciada semana passada, ainda não foi detalhada.
A MP 927, publicada no domingo, teve de ser revogada pelo próprio governo, pois permitia que empresas mandassem os funcionários para casa por quatro meses sem salário. O ministro da Saúde tem que vir diariamente a público desmentir o presidente: a gripe é séria; não compareçam às igrejas; não tomem hidroxicloroquina.
Nada disso é por acaso. Uma característica do populismo é a negação tácita de que exista uma realidade objetiva. Não há fatos duros, há apenas diferentes narrativas e argumentos que podem ser usados para avançar ou atrapalhar um projeto de poder.
Vencendo a guerra de narrativas, isto é, conquistando os corações dos eleitores, tudo fica bem. Mesmo um vírus novo não é um problema que exija solução técnica; ele é fruto de alguma conspiração que precisa ser apontada e combatida no plano retórico. Deu no que deu.
O lado bom é que a inépcia presidencial está tendo o efeito ideológico contrário: a restauração da sanidade e do bom senso. As pessoas estão acreditando nas instituições novamente. O “sistema” —ciência, universidade, jornalismo profissional—, com todos os seus problemas, ainda é preferível aos palpites dos pilantras e charlatões que buscam substituí-lo.
No momento de necessidade, quando a vida está em jogo, a maioria do povo brasileiro quer informação confiável. Prefere as notícias de jornal ao youtuber histriônico. Dá ouvidos antes a um cientista do que à mensagem de um anônimo no WhatsApp ou ao papo furado de Bolsonaro no programa do Ratinho.
Isso não é pouca coisa. Uma pandemia como a da Covid-19 traz consigo enorme potencial para o nacionalismo. Por muito pouco não vimos uma guinada para a xenofobia, o ódio à China e à defesa do fechamento perpétuo das fronteiras. Se nossos populistas fossem um pouco mais competentes, esse seria o caminho natural.
A economia globalizada elevou o padrão de riqueza mundial a níveis inéditos. Ao mesmo tempo, globalizou também os riscos: desigualdade, aquecimento global, pandemias.
Há duas respostas possíveis: abandonar a globalização, o conhecimento e o progresso e se fechar no nacionalismo nostálgico e autoritário. Ou então aceitar que à globalização econômica precisa corresponder a cooperação política internacional.
O risco de uma pandemia global já era conhecido por cientistas, que alertaram as autoridades nacionais em vão por anos. Quando chegou, cada um olhou para seu próprio umbigo, demorou a agir e agora lidamos com as consequências.
O projeto bolsonarista de globalização (trocas econômicas internacionais) sem “globalismo” (acordos e órgãos internacionais de regras e cooperação) não para em pé. É preciso ter os dois ou nenhum.
A ciência, assim como o comércio, não conhece fronteiras e convida à cooperação universal. Coloca a realidade objetiva acima dos interesses de lideranças políticas. Essas ou se curvam à natureza para melhor governar, ou pagarão o preço por fingir que ela não existe. Eis que um pequeno vírus pode derrubar um projeto de tirano.Joel Pinheiro da Fonseca
Insignificância que empobrece o país
A estratégia de não gerar pânico para evitar a economia entrando em colapso é perdedora. Não tem como vencer. O presidente vai reconhecer isso. Mas ele não vai fazer uma reviravolta total. O cálculo do Palácio do Planalto é que Bolsonaro chegou lá sem apoio de ninguém e precisa alimentar a narrativa contra o establishment, para se sustentar politicamente. Quando entra em dificuldades, o instinto do presidente é redobrar a retórica polarizante (…).
Não sabemos ainda o preço que ele pagou pela minimização da crise, mas pode ser relativamente grande. O preço virá na frente. Num cenário de recessão, o presidente dificilmente manterá apoio. Enfraquecido politicamente, se ele insistir numa retórica anti-establishment, isso pode se tornar perigoso. Nós fizemos um downgrade do Brasil a longo prazo, porque a segunda derivada dessa crise nos preocupa muito mais do que o conflito institucional de curtíssimo prazoChristopher Garman, consultoria Eurasia
O alto custo da inércia política
As manifestações espontâneas se repetem, como em outros países. Trazem a mensagem do desejo comum de reinvenção do futuro sem repetir o passado enterrado no último carnaval, três semanas atrás.
O novo vírus zerou o mundo, expondo o espetacular fracasso na saúde, no saneamento e na distribuição da renda. Os prejuízos acumulados, certamente, já superam a soma de meio século de cortes nos orçamentos da higienização da vida em sociedade, desinvestimentos em ciência, tecnologia e inovação e transferências induzidas de renda dos pobres.
Prevalece o pavor pesaroso com o flagelo da doença, morte e desemprego, num cenário de paralisia de líderes como Jair Bolsonaro, Donald Trump e o mexicano Manuel López Obrador. Ególatras, falam demais, e, até agora, foram incapazes de mapear uma rota para o amanhã. Ocultam fiascos, como o de prover testes rápidos e abrangentes para limitar a pandemia. Vagueiam na irrelevância (Bolsonaro, abraçado a uma oposição sem alternativa até de liderança).
Sábado, a XP (R$ 409 bilhões em ativos) reuniu Rubens Menin (MRV), André Street (Stone), Benjamin Steinbruch (CSN), Wilson Ferreira Júnior (Eletrobras) e Pedro Guimarães (Caixa). Estavam perplexos com os riscos de colapso em saúde, internet, água e luz, e com a depressão — James Bullard (Fed St. Louis) fala em até 30% de desemprego nos EUA. Street, da Stone, contou que seus clientes, pequenas e médias empresas, só têm capital para 27 dias. Mas a burocracia segue, mostra a Receita no prazo do Imposto de Renda.
Líderes em Brasília e nos estados deveriam ouvir os confinados, sair da letargia e reconstruir tudo, rápido. Talvez, até entoando o mantra do cientista Alan Kay: “A melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo.”
O preço da pequenez
A insatisfação de parcela expressiva dos moradores de São Paulo com o governo de Jair Bolsonaro, que já era perceptível de forma empírica, foi quantificada por uma pesquisa realizada pelo Ibope, em parceria com o Estado e a Associação Comercial de São Paulo (ACSP). De acordo com a pesquisa, que ouviu 1.001 pessoas entre os dias 17 e 19 deste mês, quase a metade dos paulistanos (48%) considera o governo de Jair Bolsonaro “ruim ou péssimo”. Para 26% dos entrevistados, a administração federal é apenas “regular”. Por fim, 25% a consideram “boa ou ótima” (1% não soube ou não quis responder).
A atuação errática do presidente Jair Bolsonaro ao lidar com a crise, muitas vezes contrapondo seus atos e palavras às diretrizes definidas por membros de sua própria equipe, mostra que ao presidente importa mais o seu interesse imediato – a reeleição – do que a saúde e o bem-estar dos brasileiros. Ao proceder assim, Bolsonaro paga o preço de sua pequenez, de sua incorrigível incapacidade para liderar a Nação em meio a uma crise sanitária, social e econômica sem precedentes na história recente do País. Dos 48% de paulistanos que consideram o governo federal “ruim ou péssimo”, nada menos do que 40% estão no polo extremo que avalia a atuação do presidente da República como “péssima”.
O sentimento capturado pela pesquisa Ibope revela a erosão da confiança depositada pelos paulistanos na capacidade de gestão do presidente Jair Bolsonaro. Não há histórico de pesquisa semelhante realizada pelo instituto, vale dizer, com abrangência restrita à capital paulista, mas o resultado da eleição de 2018 pode servir como parâmetro de comparação. No primeiro turno daquele pleito, Jair Bolsonaro recebeu 2,8 milhões de votos na cidade de São Paulo, quase 1,5 milhão de votos a mais do que recebeu o seu adversário, o ex-prefeito Fernando Haddad (PT). No segundo turno, Bolsonaro foi eleito com 60,4% dos votos válidos na capital paulista. Ou seja, seis em cada dez paulistanos votaram no capitão reformado para a Presidência da República. O apoio ao presidente se esvai à medida que os paulistanos percebem que, no momento em que mais se faz necessária a presença de uma liderança nacional capaz, se vê que não há sequer liderança.
A reprovação ao presidente Jair Bolsonaro é maior entre as camadas mais pobres da população de São Paulo. Entre eleitores com renda familiar de até um salário mínimo, 56% consideram o governo federal “ruim ou péssimo” e apenas 15% o veem como “bom ou ótimo”. Mas mesmo entre o eleitorado mais abastado da cidade de São Paulo, um bastião do bolsonarismo, a avaliação negativa do presidente da República já supera a positiva. Dos eleitores com renda superior a cinco salários mínimos (20% dos paulistanos), 39% consideram o governo de Jair Bolsonaro “ruim ou péssimo”, enquanto para 32% ele é “bom ou ótimo”.
Mais do que revelar o esfacelamento da aprovação do presidente Jair Bolsonaro na cidade de São Paulo, onde obteve esmagadora votação em 2018, a pesquisa Ibope indica um saudável processo de reavaliação que é próprio das democracias. Um voto dado na urna não é um pacto de sangue entre o eleitor e o candidato escolhido. Uma vez eleito, este estará sujeito ao escrutínio público até o último dia de seu mandato e será julgado por suas palavras, ações e omissões. A eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República foi surpreendente por uma série de fatores, o antipetismo entre os mais fortes. Caso resolva começar a governar para todos, ainda que tardiamente, Jair Bolsonaro poderá ter a chance de mostrar que sua vitória não foi apenas um acidente histórico.
O lixo nas urnas
Como o país não conhecia muito bem as peças, elegeu, com Bolsonaro, três meninos mal comportados, ignorantes e desastrados. E mais um predador mal intencionado de péssima educação, especializado em engrossar com as moças, fingindo que é filosofia. Os brasileiros queriam se livrar dos políticos que não suportavam mais. Tinham pressa e não pensaram em examinar melhor quem estava à disposição, com chance de acabar com o passado.
O mais moço criou um caso com a China, o país com quem temos as relações comerciais mais positivas, o único que já nos havia oferecido ajuda para a crise da Covid-19. Eduardo Bolsonaro não deve ter lido nada sobre Chernobyl e tratou o erro gravíssimo de um socialismo real fracassado, como se fosse estratégia. O coronavírus, ao contrário, é uma reação da Natureza aos nossos erros, reação que nos acostumamos a chamar de acaso.
Com outros nomes (Peste Negra, influenza, Gripe Espanhola, dengue etc.), a humanidade já viveu, em outros tempos, crises de saúde semelhantes a essa, com diferentes graus de gravidade. Mas, hoje, ela se torna objeto de um movimento de defesa internacional, como se o mundo estivesse finalmente acordando para o que ele é de fato: a soma indiferente de seres de várias nacionalidades, raças, cores, gêneros, religiões, opções sexuais, costumes, o que for. Li outro dia, num jornal estrangeiro, que, na Itália, o coronavírus está impedindo o uso de água benta de pias batismais. Como, na mesma Itália, pessoas estão dormindo com o cadáver de seus cônjuges, porque o Exército não está conseguindo retirar a tempo todos os corpos das vítimas da Covid-19.
Charles Darwin já havia nos preparado para essas frustrações, nos ensinando que a Evolução não privilegia os mais fortes ou os mais espertos, mas aqueles que se adaptam melhor às novas circunstâncias. A questão não é mais apenas de saúde, mas também de política e administração pública, no que Mandetta também havia se destacado. Como me disse um amigo, pelo lado oposto: “O problema das enchentes no Rio é que os cariocas jogaram muito lixo nas urnas”.
Temos o vício cientificista de considerar a humanidade como o único elemento no planeta que reflete sobre o que está acontecendo e, por consequência, sobre o que acontecerá como consequência do que está acontecendo. Mas o planeta tem uma longa história de quatro bilhões de anos, e não temos nenhum registro moral e intelectual de tudo o que lhe aconteceu, ao longo desse tempo. Se tivéssemos tal registro, saberíamos mais e melhor de tudo que está à nossa volta, poderíamos viver melhor e esperar melhores dias para nossa espécie. Poderíamos, acima de tudo, criar uma relação mais rica e mais pacífica com a própria Natureza, para que ela não se amofine conosco, como me parece acontecer de vez em quando, como agora.
Nossos cientistas conhecem as ruínas do que já existiu e têm acesso aos restos dos seres que já habitaram o planeta. Mas consultam essas pistas como quem sabe de antemão o que vão descobrir, um passado morto e enterrado, que não traz nenhuma esperança para a humanidade. Eles pesquisam e consultam apenas os eventos e os seres que servem para explicar nossa existência até aqui, o que somos e necessitamos ser, dentro de condição imutável suportada por religiões e ideologias. Não se importam com o que poderia ter sido, com qualquer utopia do passado. Se interessam apenas pelo que for curioso do ponto de vista da humanidade, sem nenhuma modéstia em relação a nós mesmos. Com profundo desinteresse pelos que conviveram conosco, o resto do planeta a que podemos chamar de Natureza.
O SNS nosso de cada dia nos dai hoje
Dia 10.
Tenho acompanhado de perto a evolução do Covid-19 nos Estados Unidos. Estão ali reunidas todas as condições para uma tragédia histórica: um sistema saúde que assenta em seguros privados e deixa de fora a fatia da população mais pobre, um sistema federal com muitos intervenientes ao nível estadual, e um Presidente profundamente ignorante e descrente na ciência, mais preocupado com a sua própria imagem, a economia e a reeleição do que em combater a ameaça para a nação que durante semanas negligenciou. (Vai ficar tristemente para a história a vil explicação que deu perante as câmaras para não querer deixar atracar o barco de cruzeiro em São Francisco: não lhe estragar os números)34th St, Nova Iorque |
Duas capas icónicas que retratam o controlo, ou a falta dele, da Covid-19 nos Estados Unidos
Nada me espanta que seja, agora, um dos focos de maior crescimento no mundo: no último dia registaram mais 7309 casos, e estão hoje em mais de 40 mil pessoas contaminadas. Dentro de uma semana, provavelmente passarão a China e ultrapassarão os 80 mil casos. Os EUA de Trump acordaram demasiado tarde para a pandemia que contamina o mundo, e deparam-se agora com o maior dos obstáculos: um sistema de saúde público demasiado liberal, que é como quem diz, praticamente inexistente. Exatamente aquilo que não queremos para Portugal (a não ser, porventura, partidos como a Iniciativa Liberal, que ainda assim defende o modelo holandês e não o americano).
É nestas alturas – e em todas as outras – que devemos bendizer o SNS que temos. Um instrumento de justiça social, além de saúde pública. Morria-se, de facto, em Portugal por falta de médicos e de medicamentos, morria-se em Portugal por se nascer fora das classes privilegiadas. Foi isso que o SNS trouxe: o direito a todos terem os mesmos direitos e oportunidades de saúde, independentemente das suas condições pessoais e sociais. Foi, e é hoje, um enorme fator de promoção da justiça e da igualdade social. Na Saúde, e sobretudo, na pior das doenças como é uma pandemia.
Sim, o SNS está no limite, com uma suborçamentação crónica dos últimos anos que o tem deixado à beira da rutura. Tem muitas falhas na organização, ineficiências, faltas graves de equipamentos de proteção, debilidades várias. Provavelmente, vai passar nas próximas semanas pelo maior desafio que alguma vez teve de enfrentar desde a sua fundação, há 40 anos. Serão dias mesmo muito difíceis, como se tem visto em Itália e em Espanha. Mas Portugal tem o essencial: os valores certos que todos partilham, a vontade férrea e profissionais que vestem a camisola, arriscando tantas vezes a própria vida, com uma abnegação comovente e um sentido de missão. Com o diabo à solta (agora sim!), é um conforto sabê-lo. Tratemos de lhes dar condições para fazerem o seu melhor.
'Lentidão e descaso com os pobres': como governos brasileiros reagiram a epidemias
Desde que foi "descoberto", o Brasil enfrentou várias epidemias, como as de varíola, febre amarela, gripe espanhola, poliomielite, meningite, só para citar as mais devastadoras.
O que quase não mudou em pouco mais de cinco séculos, segundo especialistas consultados pela BBC News Brasil, foi o comportamento das autoridades públicas frente a elas.
Suas respostas e ações sempre foram um tanto tardias, depois que a doença já havia se espalhado, havendo certo número de mortos e sob a pressão da opinião pública, repercutida nos meios de comunicação de cada época.
Segundo a doutora em História das Ciências e da Saúde, Christiane Maria Cruz de Souza, do Núcleo de Tecnologia em Saúde do Instituto Federal da Bahia (NTS/IFBA), foram muitos os surtos enfrentados pelo país desde 1500.
"No início da colonização, a derrubada da Mata Atlântica para a plantação de canaviais propiciou a proliferação de mosquitos e disseminação das 'febres'", explica ela, autora de uma tese que deu origem ao livro Gripe Espanhola na Bahia - Saúde, Política e Medicina em Tempos de Epidemia.
A circulação de povos de origens diversas, europeus e africanos, e a introdução de animais como vacas, galinhas e porcos, por exemplo, também contribuíram para disseminar doenças desconhecidas no Novo Mundo, dizimando povos nativos, assim como enfermidades locais adoeceram os que vieram de fora.
"Durante séculos, tivemos que lidar com o assédio de doenças transmissíveis como a varíola, a peste bubônica, a malária, a febre amarela, a cólera, a gripe e as disenterias", diz Souza.
Mortes evitáveis
O que há em comum aos casos é o comportamento e ações das autoridades públicas durante todo este tempo.
"Os governos sempre temeram que o reconhecimento público de uma epidemia atrapalhasse os negócios, prejudicando a economia", explica Christiane.
"A eficiência e o comprometimento das autoridades públicas eram colocados em xeque, na medida em que a crise se agravava e os adversários políticos se aproveitavam para tentar desestabilizar os que se encontravam no poder."
O doutor em Saúde Pública Paulo Frazão, do Departamento de Política, Gestão e Saúde, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), vai além.
"A lentidão, a insuficiência na resposta e o descaso das autoridades para com as populações de trabalhadores, as famílias de baixa renda e moradores da periferia e das favelas têm levado a um número elevado de mortes evitáveis", diz.
De acordo com ele, contribui para isso "o descaso para a necessidade de dotar o sistema público de saúde dos recursos necessários, especialmente os órgãos de vigilância ambiental, epidemiológica e sanitária, que se ressentem da campanha permanente de desvalorização do servidor público e do processo de precarização das estruturas de planejamento estratégico e tático-operacional".
O especialista em história da saúde coletiva brasileira André Mota, do Departamento de Medicina Preventiva e coordenador do Museu Histórico, ambos da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), a ação dos governos frente às epidemias será sempre uma complexa relação política, social e de tecnologia médica e de saúde pública, o que sempre resultará em uma resposta também complexa.
No entanto, acrescenta ele, há um fato que merece ser pensado sobre esse tema e que pode servir de aprendizado.
"Na República, tivemos epidemias que foram debeladas, quase sempre sem articulação entre serviços e hospitais e com limites evidentes, já que não havia cobertura de saúde para todas as pessoas, resultando, nesses casos, em muitas vítimas", explica.
"O Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988, teve como primeiro desafio epidêmico a Aids e conseguiu demonstrar resultados importantes na prevenção e cuidado, justamente, por ter como objetivo essa integração: serviços, cuidados e direito ao acesso."
De todas as epidemias que assolaram o Brasil ao longo dos tempos, as de varíola - foram mais de uma - estão entre as mais devastadoras.
Dificuldades na vacinação
O médico epidemiologista João Baptista Risi Junior, especialista em poliomielite e em vigilância epidemiológica e ex-secretário nacional de Ações Básicas de Saúde do Ministério da Saúde, lembra que a doença foi introduzida no Brasil logo após o descobrimento, tendo causado enorme mortalidade entre as populações nativas.
Epidemias muito graves dela ocorreram nos séculos seguintes, até as primeiras décadas do 20. "De 1902 a 1926, a doença causou 21 mil mortes somente no Rio de Janeiro, então capital da República", diz Risi.
"A vacinação contra a varíola foi introduzida no Brasil no início do século 19 e oficializada três anos após a chegada da corte portuguesa, em 1811. Mas havia imensas dificuldades técnicas e operacionais para realizá-la de modo efetivo."
Com a criação do Instituto Vacínico no Rio de Janeiro, em 1887, a vacina pôde ser produzida em escala e aplicada mais amplamente. Mas a população também não contribuía muito.
"Em 1904, Oswaldo Cruz tomou medidas para impor a vacinação obrigatória, o que provocou forte reação popular, conhecida como a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro", conta Risi.
A doença continuou endêmica no Brasil, apesar de vacinação rotineira nos serviços de saúde do país. "O problema somente veio a ser solucionado com a criação da Campanha de Erradicação da Varíola, em 1966, como parte de um esforço internacional coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)", lembra Risi.
"O último caso no Brasil ocorreu em 1971, no Rio de Janeiro. Em 1980 a vacina deixou de ser aplicada no país."
Em 1918, foi a vez da pandemia de gripe espanhola, que atingiu duramente o Brasil. "Há relatos terríveis do sofrimento que causou à população em várias cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, com enorme mortalidade", diz Risi.
"Houve dificuldade até para recolher e sepultar os cadáveres, mas a crise desapareceu da mesma forma que havia surgido."
De acordo com ele, os problemas ocorreram, porque o sistema de saúde estava inteiramente despreparado para enfrentar a epidemia, e os dados disponíveis são muito precários.
"Uma das vítimas foi o presidente Rodrigues Alves, que iria iniciar o seu segundo mandato e nem chegou a tomar posse, sendo substituído provisoriamente pelo vice Delfim Moreira, até o resultado de nova eleição", lembra. Ele morreu em 16 de janeiro de 1919.
Segundo o médico Eliseu Alves Waldman, do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP, a década de 1940 marcou o surgimentos das epidemias de poliomielite no Brasil.
"Mas somente na década seguinte (as contaminações) são incluídas entre as prioridades de saúde pública, à medida que os surtos se tornam mais severos e frequentes", diz ele, que é especialista em Medicina Tropical e em Saúde Pública e doutor em Epidemiologia.
Antes disso, no dia 2 de fevereiro de 1943, o filho do então presidente Getúlio Vargas, que tinha o mesmo nome do pai, morreu da doença.
"Sua morte, no entanto, não chamou a atenção dos governantes ou mesmo da sociedade civil, pouco mobilizada a época, pois estávamos em plena ditadura do Estado Novo", diz Waldman.
"A maior epidemia de poliomielite ocorreu, entretanto, em 1959/60. O controle da doença começou nos anos 1960, com a introdução das vacinas de vírus vivo atenuado (vacina Sabin) e de vírus inativado (vacina Salk). Ela finalmente foi eliminada em 1989."
A meningite foi outra doença que causou um número elevado de mortes e muito sofrimento. "Houve uma epidemia que durou de 1945 e 1957, que não foi reconhecida, mas omitida pelas autoridades de saúde", conta Mota.
"Fosse como tragédia ou como farsa, ela voltou a se alastrar na década de 1970, ganhando mais força, mesmo com o silêncio das autoridades e a proibição do regime militar sobre os números assombrosos que, aos poucos, foram criando pânico entre a população."
Waldman lembra que essa epidemia ocorreu em pleno período autoritário, quando o governo tentou negá-la, somente a confirmando quando haviam sido esgotados os leitos hospitalares para atendimento dos pacientes.
"Para termos uma ideia, nos períodos de pico da epidemia, que durou cinco anos, chegamos a ter, somente no município de São Paulo, 200 casos por dia com uma letalidade de 10%, ou seja, de cerca de 20 mortes diárias", diz. "Isso foi nos meses de abril e maio de 1974."
Segundo Mota, conforme estudos realizados posteriormente, no caso paulista "a epidemia pôs a descoberto a anarquia na organização dos serviços de saúde no município de São Paulo, revelando a inoperância da rede hospitalar e a total falta de integração entre os serviços locais, destinados ao primeiro atendimento, e os hospitais". "Centenas de pessoas morreram até seu controle", acrescenta. "Muitas sem saber o que tinham."
Depois veio a Aids, mas que teve uma forte reação governamental, porque já existia o SUS. Mais recentemente surgiram as epidemias sazonais de dengue, chikungunya e zika, todas transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti.
A história deste inseto é antiga no Brasil. Em 1900, ele foi identificado como o transmissor da febre amarela urbana, da qual houve várias epidemias. "No Rio de Janeiro, foram registradas 58 mil mortes pela doença entre 1850 e 1902", informa Risi.
Depois da identificação do transmissor, tiveram início as ações de combate a ele, em São Paulo e no Rio de Janeiro. "Oswaldo Cruz foi reconhecido internacionalmente por sua luta contra a febre amarela, mas ela continuou um grande problema em vários estados litorâneos", diz Risi.
"Em 1928, voltou a causar uma importante epidemia no Rio de Janeiro. Por isso, na década de 1930, a Fundação Rockefeller cooperou com o governo brasileiro para organizar um programa de combate à doença em todo o país."
Desse trabalho resultou o desenvolvimento da vacina contra a febre amarela, em 1937, e o início da sua produção no Instituto Oswaldo Cruz.
"Em 1955, o mosquito Aedes aegypti foi considerado erradicado no Brasil", conta Risi. "Em 1966, no entanto, ele foi reintroduzido nas cidades de São Luiz e Belém, e novamente erradicado. Mas na década de 1970, a presença desse vetor foi mais uma vez detectada, agora no litoral da Bahia, e rapidamente se propagou a todo o país, tornando-se impossível voltar a erradicá-lo."
As epidemias que atingiram o Brasil nesses mais de cinco séculos de História não trouxeram apenas desgraças, mortes e sofrimentos, no entanto.
"Com erros e acertos, podemos dizer que a saúde pública brasileira amadureceu e se consolidou como um dos setores que influenciaram e contribuíram para o desenvolvimento do país", diz Waldman.
O que quase não mudou em pouco mais de cinco séculos, segundo especialistas consultados pela BBC News Brasil, foi o comportamento das autoridades públicas frente a elas.
Suas respostas e ações sempre foram um tanto tardias, depois que a doença já havia se espalhado, havendo certo número de mortos e sob a pressão da opinião pública, repercutida nos meios de comunicação de cada época.
Segundo a doutora em História das Ciências e da Saúde, Christiane Maria Cruz de Souza, do Núcleo de Tecnologia em Saúde do Instituto Federal da Bahia (NTS/IFBA), foram muitos os surtos enfrentados pelo país desde 1500.
"No início da colonização, a derrubada da Mata Atlântica para a plantação de canaviais propiciou a proliferação de mosquitos e disseminação das 'febres'", explica ela, autora de uma tese que deu origem ao livro Gripe Espanhola na Bahia - Saúde, Política e Medicina em Tempos de Epidemia.
A circulação de povos de origens diversas, europeus e africanos, e a introdução de animais como vacas, galinhas e porcos, por exemplo, também contribuíram para disseminar doenças desconhecidas no Novo Mundo, dizimando povos nativos, assim como enfermidades locais adoeceram os que vieram de fora.
"Durante séculos, tivemos que lidar com o assédio de doenças transmissíveis como a varíola, a peste bubônica, a malária, a febre amarela, a cólera, a gripe e as disenterias", diz Souza.
Mortes evitáveis
O que há em comum aos casos é o comportamento e ações das autoridades públicas durante todo este tempo.
"Os governos sempre temeram que o reconhecimento público de uma epidemia atrapalhasse os negócios, prejudicando a economia", explica Christiane.
"A eficiência e o comprometimento das autoridades públicas eram colocados em xeque, na medida em que a crise se agravava e os adversários políticos se aproveitavam para tentar desestabilizar os que se encontravam no poder."
O doutor em Saúde Pública Paulo Frazão, do Departamento de Política, Gestão e Saúde, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), vai além.
"A lentidão, a insuficiência na resposta e o descaso das autoridades para com as populações de trabalhadores, as famílias de baixa renda e moradores da periferia e das favelas têm levado a um número elevado de mortes evitáveis", diz.
De acordo com ele, contribui para isso "o descaso para a necessidade de dotar o sistema público de saúde dos recursos necessários, especialmente os órgãos de vigilância ambiental, epidemiológica e sanitária, que se ressentem da campanha permanente de desvalorização do servidor público e do processo de precarização das estruturas de planejamento estratégico e tático-operacional".
O especialista em história da saúde coletiva brasileira André Mota, do Departamento de Medicina Preventiva e coordenador do Museu Histórico, ambos da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), a ação dos governos frente às epidemias será sempre uma complexa relação política, social e de tecnologia médica e de saúde pública, o que sempre resultará em uma resposta também complexa.
No entanto, acrescenta ele, há um fato que merece ser pensado sobre esse tema e que pode servir de aprendizado.
"Na República, tivemos epidemias que foram debeladas, quase sempre sem articulação entre serviços e hospitais e com limites evidentes, já que não havia cobertura de saúde para todas as pessoas, resultando, nesses casos, em muitas vítimas", explica.
"O Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988, teve como primeiro desafio epidêmico a Aids e conseguiu demonstrar resultados importantes na prevenção e cuidado, justamente, por ter como objetivo essa integração: serviços, cuidados e direito ao acesso."
De todas as epidemias que assolaram o Brasil ao longo dos tempos, as de varíola - foram mais de uma - estão entre as mais devastadoras.
Dificuldades na vacinação
O médico epidemiologista João Baptista Risi Junior, especialista em poliomielite e em vigilância epidemiológica e ex-secretário nacional de Ações Básicas de Saúde do Ministério da Saúde, lembra que a doença foi introduzida no Brasil logo após o descobrimento, tendo causado enorme mortalidade entre as populações nativas.
Epidemias muito graves dela ocorreram nos séculos seguintes, até as primeiras décadas do 20. "De 1902 a 1926, a doença causou 21 mil mortes somente no Rio de Janeiro, então capital da República", diz Risi.
"A vacinação contra a varíola foi introduzida no Brasil no início do século 19 e oficializada três anos após a chegada da corte portuguesa, em 1811. Mas havia imensas dificuldades técnicas e operacionais para realizá-la de modo efetivo."
Com a criação do Instituto Vacínico no Rio de Janeiro, em 1887, a vacina pôde ser produzida em escala e aplicada mais amplamente. Mas a população também não contribuía muito.
"Em 1904, Oswaldo Cruz tomou medidas para impor a vacinação obrigatória, o que provocou forte reação popular, conhecida como a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro", conta Risi.
A doença continuou endêmica no Brasil, apesar de vacinação rotineira nos serviços de saúde do país. "O problema somente veio a ser solucionado com a criação da Campanha de Erradicação da Varíola, em 1966, como parte de um esforço internacional coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)", lembra Risi.
"O último caso no Brasil ocorreu em 1971, no Rio de Janeiro. Em 1980 a vacina deixou de ser aplicada no país."
Em 1918, foi a vez da pandemia de gripe espanhola, que atingiu duramente o Brasil. "Há relatos terríveis do sofrimento que causou à população em várias cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, com enorme mortalidade", diz Risi.
"Houve dificuldade até para recolher e sepultar os cadáveres, mas a crise desapareceu da mesma forma que havia surgido."
De acordo com ele, os problemas ocorreram, porque o sistema de saúde estava inteiramente despreparado para enfrentar a epidemia, e os dados disponíveis são muito precários.
"Uma das vítimas foi o presidente Rodrigues Alves, que iria iniciar o seu segundo mandato e nem chegou a tomar posse, sendo substituído provisoriamente pelo vice Delfim Moreira, até o resultado de nova eleição", lembra. Ele morreu em 16 de janeiro de 1919.
Segundo o médico Eliseu Alves Waldman, do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP, a década de 1940 marcou o surgimentos das epidemias de poliomielite no Brasil.
"Mas somente na década seguinte (as contaminações) são incluídas entre as prioridades de saúde pública, à medida que os surtos se tornam mais severos e frequentes", diz ele, que é especialista em Medicina Tropical e em Saúde Pública e doutor em Epidemiologia.
Antes disso, no dia 2 de fevereiro de 1943, o filho do então presidente Getúlio Vargas, que tinha o mesmo nome do pai, morreu da doença.
"Sua morte, no entanto, não chamou a atenção dos governantes ou mesmo da sociedade civil, pouco mobilizada a época, pois estávamos em plena ditadura do Estado Novo", diz Waldman.
"A maior epidemia de poliomielite ocorreu, entretanto, em 1959/60. O controle da doença começou nos anos 1960, com a introdução das vacinas de vírus vivo atenuado (vacina Sabin) e de vírus inativado (vacina Salk). Ela finalmente foi eliminada em 1989."
A meningite foi outra doença que causou um número elevado de mortes e muito sofrimento. "Houve uma epidemia que durou de 1945 e 1957, que não foi reconhecida, mas omitida pelas autoridades de saúde", conta Mota.
"Fosse como tragédia ou como farsa, ela voltou a se alastrar na década de 1970, ganhando mais força, mesmo com o silêncio das autoridades e a proibição do regime militar sobre os números assombrosos que, aos poucos, foram criando pânico entre a população."
Waldman lembra que essa epidemia ocorreu em pleno período autoritário, quando o governo tentou negá-la, somente a confirmando quando haviam sido esgotados os leitos hospitalares para atendimento dos pacientes.
"Para termos uma ideia, nos períodos de pico da epidemia, que durou cinco anos, chegamos a ter, somente no município de São Paulo, 200 casos por dia com uma letalidade de 10%, ou seja, de cerca de 20 mortes diárias", diz. "Isso foi nos meses de abril e maio de 1974."
Segundo Mota, conforme estudos realizados posteriormente, no caso paulista "a epidemia pôs a descoberto a anarquia na organização dos serviços de saúde no município de São Paulo, revelando a inoperância da rede hospitalar e a total falta de integração entre os serviços locais, destinados ao primeiro atendimento, e os hospitais". "Centenas de pessoas morreram até seu controle", acrescenta. "Muitas sem saber o que tinham."
Depois veio a Aids, mas que teve uma forte reação governamental, porque já existia o SUS. Mais recentemente surgiram as epidemias sazonais de dengue, chikungunya e zika, todas transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti.
A história deste inseto é antiga no Brasil. Em 1900, ele foi identificado como o transmissor da febre amarela urbana, da qual houve várias epidemias. "No Rio de Janeiro, foram registradas 58 mil mortes pela doença entre 1850 e 1902", informa Risi.
Depois da identificação do transmissor, tiveram início as ações de combate a ele, em São Paulo e no Rio de Janeiro. "Oswaldo Cruz foi reconhecido internacionalmente por sua luta contra a febre amarela, mas ela continuou um grande problema em vários estados litorâneos", diz Risi.
"Em 1928, voltou a causar uma importante epidemia no Rio de Janeiro. Por isso, na década de 1930, a Fundação Rockefeller cooperou com o governo brasileiro para organizar um programa de combate à doença em todo o país."
Desse trabalho resultou o desenvolvimento da vacina contra a febre amarela, em 1937, e o início da sua produção no Instituto Oswaldo Cruz.
"Em 1955, o mosquito Aedes aegypti foi considerado erradicado no Brasil", conta Risi. "Em 1966, no entanto, ele foi reintroduzido nas cidades de São Luiz e Belém, e novamente erradicado. Mas na década de 1970, a presença desse vetor foi mais uma vez detectada, agora no litoral da Bahia, e rapidamente se propagou a todo o país, tornando-se impossível voltar a erradicá-lo."
As epidemias que atingiram o Brasil nesses mais de cinco séculos de História não trouxeram apenas desgraças, mortes e sofrimentos, no entanto.
"Com erros e acertos, podemos dizer que a saúde pública brasileira amadureceu e se consolidou como um dos setores que influenciaram e contribuíram para o desenvolvimento do país", diz Waldman.
No vazio
A única certeza de que não estou vivendo em uma cidade fantasma é a obra na quadra seguinte, onde trabalhadores da Prefeitura rasgam as ruas para trocar as manilhas por maiores, que absorvam a demanda de água e esgoto dos prédios gigantes que não param de brotar por aqui. Homens e máquinas labutam desde cedo até o final do dia, parecendo indiferentes à ameaça do corona vírus. Ouvir seus barulhos, de certa forma, me consola. Vêm à memória Saramago e seu Ensaio sobre a Cegueira, quando assisto à corrida aos supermercados, em desesperadas tentativas de estocar alimentos e produtos de higiene. Na volta, pelas ruas desertas, lembro de antigos seriados, como Além da Imaginação, ou filmes de faroeste com o vento fazendo rolar o mato seco. Nossa vida de agora não é muito diferente. E é real.
A manchete do principal jornal da cidade grita: Fique em casa! No celular, mensagens alarmantes dão o tom da desesperança, felizmente intercaladas por (raras) boas notícias, contando de curas e da diminuição do contágio, em outros países. Enquanto isso, cientistas se dedicam a encontrar vacinas e remédios para dar fim ao ciclo que aterroriza o planeta. Especialistas de diversas áreas divulgam recomendações preventivas, prefeitos baixam decretos proibindo situações de risco e nasce uma nova indústria de lazer, para que não enlouqueçamos na prisão domiciliar.
A esteira elétrica de anos atrás agora faz falta. Seria um bom jeito de me mexer, em vez de ficar tantas horas no sofá, dialogando com o celular ou a tevê. Ler está difícil, porque o estado de alerta me deixa dispersa, com o coração acelerado à espera do pior: cair doente ou saber que alguém da família foi contaminado.
A saudade do filho, da nora e do neto é uma roupa apertada que só afrouxa quando durmo. Mas durmo mal, acordo de madrugada, tenho pesadelos. Quando desço a escadaria para apanhar o jornal na caixa postal, sorvo o ar livre e retardo os passos, para permanecer mais tempo em contato com a natureza, especialmente se o jardim está florido e brilha o sol.
Para combater os efeitos do jejum social, providencio mimos, além de cozinhar intensamente e escrever haicais a qualquer hora, preenchendo o bloquinho quase lotado. No supermercado, comprei um molesquine (aquelas cadernetas com elástico) estampado com borboletas, para deixar ali os próximos poemas. Também trouxe uma caixa, pequena e de cores alegres, onde guardarei os haicais-postais que o correio (ainda) traz de perto e de longe, porque o quadro de avisos onde os prendia já não comporta mais nenhum.
Fiz, ainda, uma visita à seção de “alimentos saudáveis”. Dela, trouxe biscoito de polvilho com sabor de maçã e canela e um chocolate sem leite e sem açúcar (como conseguem?) Ando com muita fome de doce, e imagino que seja para compensar a solidão. Passo os dias sem pronunciar palavra, na casa deserta. Canto com o rádio, mas não é a mesma coisa que uma boa conversa…
Tento fugir do bombardeio alarmista dos noticiários e evito escutar comentários alienados ou persecutórios. Mas, nas compras, no táxi, na calçada, nos corredores do prédio, é real o risco de toparmos com palpites infelizes e o tema é sempre o mesmo, sem trégua. Recentemente, li que um grupo de psicólogos está oferecendo consultas gratuitas para quem estiver sofrendo com o isolamento forçado e busca alívio. Vou voltar à publicação e anotar o site…
Madô Martins
A manchete do principal jornal da cidade grita: Fique em casa! No celular, mensagens alarmantes dão o tom da desesperança, felizmente intercaladas por (raras) boas notícias, contando de curas e da diminuição do contágio, em outros países. Enquanto isso, cientistas se dedicam a encontrar vacinas e remédios para dar fim ao ciclo que aterroriza o planeta. Especialistas de diversas áreas divulgam recomendações preventivas, prefeitos baixam decretos proibindo situações de risco e nasce uma nova indústria de lazer, para que não enlouqueçamos na prisão domiciliar.
A esteira elétrica de anos atrás agora faz falta. Seria um bom jeito de me mexer, em vez de ficar tantas horas no sofá, dialogando com o celular ou a tevê. Ler está difícil, porque o estado de alerta me deixa dispersa, com o coração acelerado à espera do pior: cair doente ou saber que alguém da família foi contaminado.
A saudade do filho, da nora e do neto é uma roupa apertada que só afrouxa quando durmo. Mas durmo mal, acordo de madrugada, tenho pesadelos. Quando desço a escadaria para apanhar o jornal na caixa postal, sorvo o ar livre e retardo os passos, para permanecer mais tempo em contato com a natureza, especialmente se o jardim está florido e brilha o sol.
Para combater os efeitos do jejum social, providencio mimos, além de cozinhar intensamente e escrever haicais a qualquer hora, preenchendo o bloquinho quase lotado. No supermercado, comprei um molesquine (aquelas cadernetas com elástico) estampado com borboletas, para deixar ali os próximos poemas. Também trouxe uma caixa, pequena e de cores alegres, onde guardarei os haicais-postais que o correio (ainda) traz de perto e de longe, porque o quadro de avisos onde os prendia já não comporta mais nenhum.
Fiz, ainda, uma visita à seção de “alimentos saudáveis”. Dela, trouxe biscoito de polvilho com sabor de maçã e canela e um chocolate sem leite e sem açúcar (como conseguem?) Ando com muita fome de doce, e imagino que seja para compensar a solidão. Passo os dias sem pronunciar palavra, na casa deserta. Canto com o rádio, mas não é a mesma coisa que uma boa conversa…
Tento fugir do bombardeio alarmista dos noticiários e evito escutar comentários alienados ou persecutórios. Mas, nas compras, no táxi, na calçada, nos corredores do prédio, é real o risco de toparmos com palpites infelizes e o tema é sempre o mesmo, sem trégua. Recentemente, li que um grupo de psicólogos está oferecendo consultas gratuitas para quem estiver sofrendo com o isolamento forçado e busca alívio. Vou voltar à publicação e anotar o site…
Madô Martins
Renda Básica de Emergência, uma proposta de solidariedade para enfrentar o caos
A proposta, muito mais generosa e sensata do que a apresentada anteriormente pelo Ministério da Economia, prevê uma renda de 300 reais por indivíduo por ao menos 6 meses, com um período de transição posterior. Uma família de cinco pessoas, portanto, poderia receber até 1.500 reais por mês. É cerca de metade do valor mais alto recebido pelas famílias cadastradas. Ou seja: para muitos, ainda será insuficiente diante da extraordinária perda de renda imposta pelas restrições de movimento que são imprescindíveis para controlar a epidemia. Mas é um excelente começo. A proposta já angariou apoios importantes, desde economistas e sociólogos de peso até uma rede de mais de 2.000 influenciadores, entre artistas, youtubers e comentaristas políticos. Uma petição pedindo sua implementação teve mais de 250.000 assinaturas nas primeiras 48 horas.
À primeira vista, a proposta pode ser interpretada como um extraordinário ato de solidariedade com os mais pobres, que sofrerão as consequências mais imediatas tanto da epidemia quando da crise econômica que se agrava. E isso não deixa de ser verdade. Ao focar nos mais vulneráveis e exigir do governo uma injeção de recursos importante, com viés redistributivo ―ainda que numa cifra relativamente baixa em termos de porcentagem do PIB― a Renda Básica de Emergência resgata o papel do Estado como mediador da solidariedade. Mas os verdadeiros destinatários da solidariedade, nesse caso, não são os potenciais recipientes da Renda, e sim, em medida muito mais importante, os profissionais da saúde.
Nosso país não tem, nesse momento, material suficiente para aplicar testes de Covid-19 em todos os casos suspeitos. Os testes estão sendo reservados para os casos mais graves. Com isso, fica impossível isolar apenas aqueles que de fato podem ter a doença ―daí a necessidade imediata de impor restrições de movimento ao conjunto da sociedade, com exceções apenas para aqueles que prestam serviços essenciais, como forma de conter a epidemia. Essa é, como já foi afirmado por inúmeros especialistas, a única forma de “achatar a curva” de contágio. E “achatar a curva” é, antes de mais nada, um ato de solidariedade com os profissionais que estão na linha de frente, cuidando de nossos doentes, e que não terão nenhuma chance de sucesso caso o pico de contágio fuja completamente de controle.
Nossos médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e outros profissionais que trabalham em nossos hospitais públicos e privados estão diante daquele que será certamente o maior desafio de suas vidas. Para esses profissionais, não haverá nem descanso nem paz. Muitos serão contagiados, inúmeros morrerão. É o que aconteceu na China, o que está acontecendo na Europa, em especial na Itália, e o que já começa a acontecer no Brasil. Aqui, temos a enorme vantagem de contar com o SUS, um sistema único no mundo, com capilaridade nacional e universalidade real. Mas esse sistema vem sendo sucateado, seus profissionais desvalorizados, e o Ministério da Saúde pouco fez para protegê-los e prepará-los nos 3 meses que tivemos de aviso prévio até que a epidemia de Covid-19 chegasse ao Brasil. Para piorar, vivemos num país violento, temos um presidente que estimula a população a adquirir armas, e em tempos normais já existe brutalidade dentro dos hospitais. Agora imagine essa população, armada e assustada, diante da escassez de recursos que inevitavelmente teremos ―falta de respiradores, de leitos e de medicamentos― e fica nítido que nossos profissionais de saúde terão que enfrentar desafios que vão além daqueles já encarados pelos chineses e italianos.
Como ativista, economista, e filha de dois médicos do SUS, faço um apelo a vocês que me leem: vamos usar nossa capacidade de investimento para estimular de fato as pessoas a ficarem em casa, dando a elas um caminho de sobrevivência em meio ao caos e aos médicos e enfermeiros um fio de esperança. A Renda Básica de Emergência não deveria sequer causar grande debate. É a medida óbvia, necessária e urgente. Uma vez que ela seja aprovada, nosso Congresso terá que se debruçar sobre outras tantas iniciativas que também são necessárias nesse contexto, sobretudo medidas de fortalecimento do sistema de saúde. Mas sem ela, boa parte da batalha já estará perdida.
Muito tem se falado sobre social distancing, o tal do distanciamento social, como medida básica e necessária ao controle do contágio e combate ao coronavírus. Mas é chegada a hora de aceitarmos que a distância física, na verdade, só é possível com mais proximidade social. Precisamos ficar a dois metros de distância um do outro, porém mais unidos do que nunca. Precisamos usar todos os instrumentos ao nosso alcance para diminuir o fosso da desigualdade que só se aprofunda em tempos de crise, causando outras inúmeras consequências sociais com as quais simplesmente não estamos preparados para lidar. Precisamos cuidar de quem vai cuidar da gente: por respeito aos nossos médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde, devemos ser maiores e melhores que o presidente, mais eficazes que o ministro da Economia, mais precavidos que o ministro da Saúde. Precisamos de solidariedade entre nós, e para nós, sem mais espera.
Os próximos meses mostrarão a cada um de nós o peso de nossas responsabilidades históricas. Os próximos dias definirão em quais condições atravessaremos esses meses. Não nos furtemos às boas batalhas, porque não haverá tempo nem espaço para arrependimento depois.
Alessandra Orofino
Coronavírus, a batalha da comunicação
Imagens de praças, ruas e avenidas fantasmas e de um mundo vestido de vazio reforça o pavor que boatos e notícias alarmantes na era das redes sociais amplificam barbaramente. Vídeos e informações irresponsáveis podem matar. A luta contra o coronavírus depende da competência, da capacidade estratégica e da seriedade das autoridades sanitárias. Mas a guerra – e estamos mergulhados num campo de batalha sem precedentes- só será ganha na trincheira da comunicação.
A informação é sempre fundamental. E ela precisa ser confiável, clara e segura. Não é hora de grotescos campeonatos de egos e vaidades. Não é o momento de subir na passarela da mídia para desfilar currículos vistosos. Não mesmo.
A doença é desafiante. Pode ter um brutal impacto na saúde pública. Do ponto de vista sanitário (as quarentenas, os cancelamentos de eventos, suspensão de aulas, planos de contingência) fazem todo sentido. São medidas que visam diminuir a velocidade com que a epidemia se alastra, de modo que os serviços de saúde não sejam colapsados por uma over demanda. Como bem salientou Alexandre Cunha, infectologista do Hospital Sírio Libanês, a lotação dos serviços de saúde, agigantada pela epidemia do medo, pode ser o grande risco dessa pandemia: “com serviços superlotados, portadores da minoria de casos graves e mesmo portadores de outras doenças, crônicas inclusive, podem ter seu prognóstico piorado pela lotação dos serviço de saúde.”
Os idosos devem ter cuidados especiais. Dos 10 aos 49 anos, a taxa de letalidade varia entre 0,2% e 0,4%, com salto para 1,3% nos pacientes entre 50 e 59 anos. Na faixa etária entre 60 e 69 anos, o índice é de 3,6%. O número sobe para 8% em infectados de 70 a 79 anos e chega a 15% entre os que têm mais de 80 anos. Os dados são do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da China.
A taxa de mortalidade é até nove vezes maior entre pessoas com alguma doença crônica quando comparada à de pacientes sem patologia preexistente. Segundo dados do governo chinês, no grupo de infectados que não tinham nenhuma comorbidade, apenas 1,4% morreu. Já entre os pacientes com alguma doença cardiovascular, por exemplo, o índice chegou a 13,2%.
Estamos diante de um dos maiores desafios de comunicação da história. E o jornalismo de qualidade exerce um papel decisivo. Transparência informativa, rigor sem alarmismo e didatismo compõem a chave do sucesso. Por isso, registro com entusiasmo recente iniciativa do Grupo Estado ao criar um núcleo e uma newsletter especialmente dedicados à cobertura do coronavírus.
O núcleo conta com cerca de 30 profissionais de São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, sem contar os correspondentes pelo País. “Nossa prioridade é a busca por informações que orientem as pessoas nessa crise e a cobrança das autoridades para que cumpram seu papel”, diz David Friedlander, editor executivo do jornal. O Estado está intensificando a produção de reportagens especiais para as edições digital e impressa.
As equipes do Broadcast e do BRPolítico, dois serviços de informação exclusiva do Grupo Estado, estarão dedicadas aos impactos na economia e na política. Foi lançada uma vibrante newsletter, diária, que aborda todos os acontecimentos que o leitor precisa saber sobre a crise. Essa ferramenta é gratuita e estará ao alcance de todos os leitores do Estado – não só os assinantes.
A reação do Estadão, e de outros veículos da mídia tradicional, é uma lufada de ar fresco num mundo dominado por tanta desinformação. É preciso avançar e apostar em boas pautas. É melhor cobrir magnificamente alguns temas do que atirar em todas as direções. O leitor pede reportagem. O bom repórter sabe encontrar histórias que merecem ser contadas. É capaz de garimpar a informação, prestar serviço, ajudar a vida das pessoas e apontar caminhos. A cobertura do coronavírus tem mostrado uma imprensa ética e sensível. Informação clara e objetiva, sem alarmismo e sensacionalismo, está promovendo um forte sentido de responsabilidade e de solidariedade em todos os setores da sociedade.
Antes os periódicos cumpriam muitas funções. Hoje não cumprem algumas delas. Não servem mais para contar o imediato. E as empresas jornalísticas precisam assimilar isso e se converter em marcas multiplataformas, com produtos adequadas a cada uma delas.
Quando se escrever a história deste momento da humanidade – único, dramático e transformador – brilhará com força a chama da imprensa de qualidade. Muitos jornalistas estão dedicando a vida e correndo riscos para que você, amigo leitor, possa resguardar sua família com a força da informação correta e bem apurada. Que Deus proteja a todos nós!Carlos Alberto Di Franco
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