A proposta, muito mais generosa e sensata do que a apresentada anteriormente pelo Ministério da Economia, prevê uma renda de 300 reais por indivíduo por ao menos 6 meses, com um período de transição posterior. Uma família de cinco pessoas, portanto, poderia receber até 1.500 reais por mês. É cerca de metade do valor mais alto recebido pelas famílias cadastradas. Ou seja: para muitos, ainda será insuficiente diante da extraordinária perda de renda imposta pelas restrições de movimento que são imprescindíveis para controlar a epidemia. Mas é um excelente começo. A proposta já angariou apoios importantes, desde economistas e sociólogos de peso até uma rede de mais de 2.000 influenciadores, entre artistas, youtubers e comentaristas políticos. Uma petição pedindo sua implementação teve mais de 250.000 assinaturas nas primeiras 48 horas.
À primeira vista, a proposta pode ser interpretada como um extraordinário ato de solidariedade com os mais pobres, que sofrerão as consequências mais imediatas tanto da epidemia quando da crise econômica que se agrava. E isso não deixa de ser verdade. Ao focar nos mais vulneráveis e exigir do governo uma injeção de recursos importante, com viés redistributivo ―ainda que numa cifra relativamente baixa em termos de porcentagem do PIB― a Renda Básica de Emergência resgata o papel do Estado como mediador da solidariedade. Mas os verdadeiros destinatários da solidariedade, nesse caso, não são os potenciais recipientes da Renda, e sim, em medida muito mais importante, os profissionais da saúde.
Nosso país não tem, nesse momento, material suficiente para aplicar testes de Covid-19 em todos os casos suspeitos. Os testes estão sendo reservados para os casos mais graves. Com isso, fica impossível isolar apenas aqueles que de fato podem ter a doença ―daí a necessidade imediata de impor restrições de movimento ao conjunto da sociedade, com exceções apenas para aqueles que prestam serviços essenciais, como forma de conter a epidemia. Essa é, como já foi afirmado por inúmeros especialistas, a única forma de “achatar a curva” de contágio. E “achatar a curva” é, antes de mais nada, um ato de solidariedade com os profissionais que estão na linha de frente, cuidando de nossos doentes, e que não terão nenhuma chance de sucesso caso o pico de contágio fuja completamente de controle.
Nossos médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e outros profissionais que trabalham em nossos hospitais públicos e privados estão diante daquele que será certamente o maior desafio de suas vidas. Para esses profissionais, não haverá nem descanso nem paz. Muitos serão contagiados, inúmeros morrerão. É o que aconteceu na China, o que está acontecendo na Europa, em especial na Itália, e o que já começa a acontecer no Brasil. Aqui, temos a enorme vantagem de contar com o SUS, um sistema único no mundo, com capilaridade nacional e universalidade real. Mas esse sistema vem sendo sucateado, seus profissionais desvalorizados, e o Ministério da Saúde pouco fez para protegê-los e prepará-los nos 3 meses que tivemos de aviso prévio até que a epidemia de Covid-19 chegasse ao Brasil. Para piorar, vivemos num país violento, temos um presidente que estimula a população a adquirir armas, e em tempos normais já existe brutalidade dentro dos hospitais. Agora imagine essa população, armada e assustada, diante da escassez de recursos que inevitavelmente teremos ―falta de respiradores, de leitos e de medicamentos― e fica nítido que nossos profissionais de saúde terão que enfrentar desafios que vão além daqueles já encarados pelos chineses e italianos.
Como ativista, economista, e filha de dois médicos do SUS, faço um apelo a vocês que me leem: vamos usar nossa capacidade de investimento para estimular de fato as pessoas a ficarem em casa, dando a elas um caminho de sobrevivência em meio ao caos e aos médicos e enfermeiros um fio de esperança. A Renda Básica de Emergência não deveria sequer causar grande debate. É a medida óbvia, necessária e urgente. Uma vez que ela seja aprovada, nosso Congresso terá que se debruçar sobre outras tantas iniciativas que também são necessárias nesse contexto, sobretudo medidas de fortalecimento do sistema de saúde. Mas sem ela, boa parte da batalha já estará perdida.
Muito tem se falado sobre social distancing, o tal do distanciamento social, como medida básica e necessária ao controle do contágio e combate ao coronavírus. Mas é chegada a hora de aceitarmos que a distância física, na verdade, só é possível com mais proximidade social. Precisamos ficar a dois metros de distância um do outro, porém mais unidos do que nunca. Precisamos usar todos os instrumentos ao nosso alcance para diminuir o fosso da desigualdade que só se aprofunda em tempos de crise, causando outras inúmeras consequências sociais com as quais simplesmente não estamos preparados para lidar. Precisamos cuidar de quem vai cuidar da gente: por respeito aos nossos médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde, devemos ser maiores e melhores que o presidente, mais eficazes que o ministro da Economia, mais precavidos que o ministro da Saúde. Precisamos de solidariedade entre nós, e para nós, sem mais espera.
Os próximos meses mostrarão a cada um de nós o peso de nossas responsabilidades históricas. Os próximos dias definirão em quais condições atravessaremos esses meses. Não nos furtemos às boas batalhas, porque não haverá tempo nem espaço para arrependimento depois.
Alessandra Orofino
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