quarta-feira, 24 de agosto de 2022
Tempo de virtudes cívicas
Quando a História acelera e a política toma rumos imprevisíveis, é comum que se sucedam os instantes que, segundo o espanhol Javier Cercas, merecem os cuidados de uma aula clássica de anatomia. No seu país, com as feridas ainda mal curadas décadas depois do flagelo da guerra civil, a irrupção de um vulgar militar golpista no Parlamento, no inverno de 1981, pôs em questão a transição pós-franquista, intimidando os deputados e colocando a Espanha mais uma vez na encruzilhada. De pé, inscrevendo corajosamente seus nomes na “religião civil” que nem a mais secular das democracias dispensa, só o primeiro-ministro Adolfo Suárez, o vice, general Gutiérrez Mellado, e o eurocomunista Santiago Carrillo. A democracia seguiria adiante, como sabemos.
Poucos anos antes, do lado de cá do Atlântico, outra transição também inspirava gestos de alto valor cívico, como a cerimônia ecumênica por Vladimir Herzog ou, dois anos mais tarde, a carta lida por Goffredo Telles nas arcadas da Faculdade de Direito da USP. Ao mesmo tempo, assimilávamos um vocabulário inédito, no qual se destacava um conceito-chave da teoria moderna, o de “sociedade civil”. Tal conceito podia ser declinado de variadas formas, mas o certo é que ele afastava a ideia da política seja como expressão passiva da economia, seja como mero disfarce da força bruta. Estávamos literalmente obrigados a ir além dos modos e costumes do autoritarismo.
O aprendizado coletivo consistia no fato de que, na democracia que se entrevia, seria preciso vencer e convencer – e também perder, como é próprio da rotina de qualquer comunidade civilizada. E todo este movimento desaguaria mais adiante na Constituinte, em cujo ponto mais solene o herói-fundador diria, de modo lapidar, que “traidor da Constituição é traidor da Pátria”. Os contornos da nossa religião cívica estavam assim delineados por muitas décadas afora.
Pondo entre parênteses a diversidade de contextos, vivemos agora uma inesperada repetição. Há pouco, Dom Pedro Stringhini, em comovente ato inter-religioso na Sé paulista, evocou o grande cardeal de 1975, ali sepultado, ao celebrar Dom Phillips e Bruno Araújo Pereira, assassinados numa Amazônia dolosamente convertida em terra sem lei. E a “sociedade civil” se reergueu nas mesmas arcadas do Largo de São Francisco, com documentos – um dos próprios juristas, outro das “classes produtoras” reunidas na Fiesp – que recolheram centenas de milhares de assinaturas e, por esta e outras razões, têm como alma a ampla frente democrática que possibilitou a saída pacífica do regime militar.
Nos últimos anos, antes do pacto entre Executivo e Centrão tramado nos desvãos do “orçamento secreto”, tivemos muitos chamados ao fechamento do Congresso e, ainda, continuados lances de agressão ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ensaios de golpe ao velho estilo, ora provavelmente arquivados, eles foram substituídos por tentativas reiteradas de sabotar as “instituições invisíveis” da República (Pierre Rosanvallon), como a confiança nas eleições e na sua legitimidade. Isso, que é do conhecimento geral, prefigura os perigos de um eventual segundo mandato do governante autocrata, de resto abundantemente escrutinados na literatura internacional sobre as recorrentes e diversificadas manifestações da extrema-direita populista.
O espírito da frente democrática vai muito além das fronteiras de qualquer partido, mesmo daquele mais organicamente estruturado e que, por isso, apresenta a candidatura mais forte entre as que se opõem à reeleição do autocrata. Em tese, parece não haver tempo para uma alternativa viável no campo oposicionista, ainda que tal circunstância não vá cancelar a pluralidade de programas e visões de futuro. A observância dessa pluralidade é que avalizará a indispensável “ida ao centro” pela esquerda, e não, naturalmente, a escolha de um “vice decorativo” ou a cooptação de políticos avulsos, acima e além do diálogo entre partidos e suas direções regularmente constituídas. E isso para não falar da aguda compreensão, mais do que nunca necessária, das múltiplas faces da “sociedade civil”, irredutível a pretensões de mando ou controle faccioso, sejam quais forem.
Sem menosprezar o desafio eleitoral, que anuncia sobressaltos de montanha-russa, o embate mais árduo virá depois, quando se tratar de reconstruir pouco a pouco as instituições e promover o resgate das promessas da civilização brasileira. Num cenário de terra arrasada, virtudes cívicas diferentes, como a paciência e a vontade permanente de diálogo, deverão, então, ser continuamente mobilizadas. Caso se confirme nas urnas – o que não está dado de antemão! –, um novo governo capitaneado pela esquerda terá de recorrer às artes de um heroísmo cotidiano, nada retórico, ultrapassando o círculo do interesse próprio e pondo-se decididamente a serviço da República. Há quem diga que, até hoje, nos governos anteriores esta travessia corajosa rumo ao interesse comum nem sempre se realizou com a maestria esperada. Outra razão forte para começar a empreendê-la desde agora.
Poucos anos antes, do lado de cá do Atlântico, outra transição também inspirava gestos de alto valor cívico, como a cerimônia ecumênica por Vladimir Herzog ou, dois anos mais tarde, a carta lida por Goffredo Telles nas arcadas da Faculdade de Direito da USP. Ao mesmo tempo, assimilávamos um vocabulário inédito, no qual se destacava um conceito-chave da teoria moderna, o de “sociedade civil”. Tal conceito podia ser declinado de variadas formas, mas o certo é que ele afastava a ideia da política seja como expressão passiva da economia, seja como mero disfarce da força bruta. Estávamos literalmente obrigados a ir além dos modos e costumes do autoritarismo.
O aprendizado coletivo consistia no fato de que, na democracia que se entrevia, seria preciso vencer e convencer – e também perder, como é próprio da rotina de qualquer comunidade civilizada. E todo este movimento desaguaria mais adiante na Constituinte, em cujo ponto mais solene o herói-fundador diria, de modo lapidar, que “traidor da Constituição é traidor da Pátria”. Os contornos da nossa religião cívica estavam assim delineados por muitas décadas afora.
Pondo entre parênteses a diversidade de contextos, vivemos agora uma inesperada repetição. Há pouco, Dom Pedro Stringhini, em comovente ato inter-religioso na Sé paulista, evocou o grande cardeal de 1975, ali sepultado, ao celebrar Dom Phillips e Bruno Araújo Pereira, assassinados numa Amazônia dolosamente convertida em terra sem lei. E a “sociedade civil” se reergueu nas mesmas arcadas do Largo de São Francisco, com documentos – um dos próprios juristas, outro das “classes produtoras” reunidas na Fiesp – que recolheram centenas de milhares de assinaturas e, por esta e outras razões, têm como alma a ampla frente democrática que possibilitou a saída pacífica do regime militar.
Nos últimos anos, antes do pacto entre Executivo e Centrão tramado nos desvãos do “orçamento secreto”, tivemos muitos chamados ao fechamento do Congresso e, ainda, continuados lances de agressão ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ensaios de golpe ao velho estilo, ora provavelmente arquivados, eles foram substituídos por tentativas reiteradas de sabotar as “instituições invisíveis” da República (Pierre Rosanvallon), como a confiança nas eleições e na sua legitimidade. Isso, que é do conhecimento geral, prefigura os perigos de um eventual segundo mandato do governante autocrata, de resto abundantemente escrutinados na literatura internacional sobre as recorrentes e diversificadas manifestações da extrema-direita populista.
O espírito da frente democrática vai muito além das fronteiras de qualquer partido, mesmo daquele mais organicamente estruturado e que, por isso, apresenta a candidatura mais forte entre as que se opõem à reeleição do autocrata. Em tese, parece não haver tempo para uma alternativa viável no campo oposicionista, ainda que tal circunstância não vá cancelar a pluralidade de programas e visões de futuro. A observância dessa pluralidade é que avalizará a indispensável “ida ao centro” pela esquerda, e não, naturalmente, a escolha de um “vice decorativo” ou a cooptação de políticos avulsos, acima e além do diálogo entre partidos e suas direções regularmente constituídas. E isso para não falar da aguda compreensão, mais do que nunca necessária, das múltiplas faces da “sociedade civil”, irredutível a pretensões de mando ou controle faccioso, sejam quais forem.
Sem menosprezar o desafio eleitoral, que anuncia sobressaltos de montanha-russa, o embate mais árduo virá depois, quando se tratar de reconstruir pouco a pouco as instituições e promover o resgate das promessas da civilização brasileira. Num cenário de terra arrasada, virtudes cívicas diferentes, como a paciência e a vontade permanente de diálogo, deverão, então, ser continuamente mobilizadas. Caso se confirme nas urnas – o que não está dado de antemão! –, um novo governo capitaneado pela esquerda terá de recorrer às artes de um heroísmo cotidiano, nada retórico, ultrapassando o círculo do interesse próprio e pondo-se decididamente a serviço da República. Há quem diga que, até hoje, nos governos anteriores esta travessia corajosa rumo ao interesse comum nem sempre se realizou com a maestria esperada. Outra razão forte para começar a empreendê-la desde agora.
O desmantelamento do Estado brasileiro
Escrevo esta coluna em Atalaia do Norte, na Amazônia. Este é o local até onde Bruno Pereira e Dom Philips jamais conseguiram chegar. No caminho até aqui, o indigenista brasileiro e o jornalista britânico foram assassinados no rio Itaquaí. Seus corpos foram queimados, esquartejados e enterrados na floresta.
Desde então, a polícia prendeu vários suspeitos. Mas os indígenas que vivem em Atalaia do Norte e estão engajados na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) ainda vivem com medo. Quando nos encontramos, eles pediram que não tirássemos fotos e não citássemos os nomes deles. Eles não acreditam que o Estado seja capaz ou tenha a intenção de protegê-los.
Mesmo que os assassinos possam estar presos em Manaus, os indígenas sabem que a Terra Indígena do Vale do Javari continua sendo alvo de uma máfia de pescadores, caçadores e madeireiros ilegais. Garimpeiros também invadem o território.
Fomos alertados a ter muito cuidado navegando pela rota que Dom e Bruno percorreram em sua última viagem. Ela começa na base da Funai em Ituí-Itaquí, na entrada do Vale do Javari, a reserva com o maior número de povos indígenas isolados em todo o mundo. Depois de a base ter sido alvo de diversos ataques armados em 2019, quatro soldados da Força Nacional foram posicionados ali para proteger os funcionários da Funai, que não andam armados.
Ao chegarmos à base da Funai, notamos dois barcos em um hangar. Eles tinham motores de 40 e 15 hp, e nos perguntamos como a Funai pretende fazer o monitoramento e fiscalização efetiva da Terra Indígena com essas embarcações.
O barco dos assassinos de Dom e Bruno tinha um motor de 60 hp. Eles costumavam entrar no vale através de rotas secretas para pescar ilegalmente. O Estado brasileiro está, portanto, em desvantagem em relação aos criminosos já no que diz respeito a equipamentos.
Soubemos que também há uma escassez crônica de combustível na base. Pediram que levássemos um antropólogo da Funai, que trabalha com povos isolados e acabara de passar 60 dias na selva, de volta para Atalaia em nosso barco, numa viagem de duas horas e meia. Quando passamos pelos povoados onde moravam os assassinos de Dom e Bruno, o funcionário confessou que está com muito medo.
Ele também disse que dependia dessa carona – o que nos levou a pensar no que acontece com o Estado brasileiro, que subfinancia suas agências e abandona seus funcionários. Há, no entanto, algumas exceções: sob Bolsonaro, as Forças Armadas receberam Viagra e leite condensado.
Mas, por que estou contando tudo isso? Porque um dos resultados de quatro anos de Bolsonaro é a destruição de parte do Estado brasileiro. O presidente não somente reduziu os recursos financeiros, mas também o número de funcionários e as competências de algumas agências federais, construídas durante anos.
Cargos de gerenciamento foram ocupados por militares e bolsonaristas que, com frequência, possuem pouca competência, mas muito radicalismo. Muitas vezes, o que se viu foi uma deturpação da função dos respectivos órgãos, como foi o caso no Ibama, ICMbio e na Funai. Assim, em vez de proteger o meio ambiente, passaram a proteger os destruidores do meio ambiente, como fazia o ex-ministro Ricardo Salles.
Resultado: os criminosos foram encorajados, e as máfias, fortalecidas, enquanto o funcionalismo do governo foi enfraquecido. Não é coincidência que o funcionário da Funai Maxciel Pereira tenha sido morto a tiros em plena rua em Tabatinga, durante o governo Bolsonaro.
Quando Bruno Pereira foi assassinado, o azar dos assassinos foi que Dom Philips, um correspondente internacional, estava com ele. Se não estivesse, o crime contra Bruno teria, provavelmente, ficado sem solução, assim como o de Maxciel. Essa é a opinião unânime de todos com quem conversamos na região de Atalaia do Norte.
É notável como um presidente que se coloca como dedicado à lei e a ordem se tornou um aliado de criminosos: grileiros, incendiários, madeireiros, pescadores e caçadores ilegais.
Isso pode até ser menos perceptível no resto do Brasil, mas é um desdobramento claro na Amazônia. O governo Bolsonaro, que sempre ressalta que "a Amazônia é nossa", entregou a floresta à máfia ambiental, enfraquecendo deliberadamente o Estado.
Desde então, a polícia prendeu vários suspeitos. Mas os indígenas que vivem em Atalaia do Norte e estão engajados na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) ainda vivem com medo. Quando nos encontramos, eles pediram que não tirássemos fotos e não citássemos os nomes deles. Eles não acreditam que o Estado seja capaz ou tenha a intenção de protegê-los.
Mesmo que os assassinos possam estar presos em Manaus, os indígenas sabem que a Terra Indígena do Vale do Javari continua sendo alvo de uma máfia de pescadores, caçadores e madeireiros ilegais. Garimpeiros também invadem o território.
Fomos alertados a ter muito cuidado navegando pela rota que Dom e Bruno percorreram em sua última viagem. Ela começa na base da Funai em Ituí-Itaquí, na entrada do Vale do Javari, a reserva com o maior número de povos indígenas isolados em todo o mundo. Depois de a base ter sido alvo de diversos ataques armados em 2019, quatro soldados da Força Nacional foram posicionados ali para proteger os funcionários da Funai, que não andam armados.
Ao chegarmos à base da Funai, notamos dois barcos em um hangar. Eles tinham motores de 40 e 15 hp, e nos perguntamos como a Funai pretende fazer o monitoramento e fiscalização efetiva da Terra Indígena com essas embarcações.
O barco dos assassinos de Dom e Bruno tinha um motor de 60 hp. Eles costumavam entrar no vale através de rotas secretas para pescar ilegalmente. O Estado brasileiro está, portanto, em desvantagem em relação aos criminosos já no que diz respeito a equipamentos.
Soubemos que também há uma escassez crônica de combustível na base. Pediram que levássemos um antropólogo da Funai, que trabalha com povos isolados e acabara de passar 60 dias na selva, de volta para Atalaia em nosso barco, numa viagem de duas horas e meia. Quando passamos pelos povoados onde moravam os assassinos de Dom e Bruno, o funcionário confessou que está com muito medo.
Ele também disse que dependia dessa carona – o que nos levou a pensar no que acontece com o Estado brasileiro, que subfinancia suas agências e abandona seus funcionários. Há, no entanto, algumas exceções: sob Bolsonaro, as Forças Armadas receberam Viagra e leite condensado.
Mas, por que estou contando tudo isso? Porque um dos resultados de quatro anos de Bolsonaro é a destruição de parte do Estado brasileiro. O presidente não somente reduziu os recursos financeiros, mas também o número de funcionários e as competências de algumas agências federais, construídas durante anos.
Cargos de gerenciamento foram ocupados por militares e bolsonaristas que, com frequência, possuem pouca competência, mas muito radicalismo. Muitas vezes, o que se viu foi uma deturpação da função dos respectivos órgãos, como foi o caso no Ibama, ICMbio e na Funai. Assim, em vez de proteger o meio ambiente, passaram a proteger os destruidores do meio ambiente, como fazia o ex-ministro Ricardo Salles.
Resultado: os criminosos foram encorajados, e as máfias, fortalecidas, enquanto o funcionalismo do governo foi enfraquecido. Não é coincidência que o funcionário da Funai Maxciel Pereira tenha sido morto a tiros em plena rua em Tabatinga, durante o governo Bolsonaro.
Quando Bruno Pereira foi assassinado, o azar dos assassinos foi que Dom Philips, um correspondente internacional, estava com ele. Se não estivesse, o crime contra Bruno teria, provavelmente, ficado sem solução, assim como o de Maxciel. Essa é a opinião unânime de todos com quem conversamos na região de Atalaia do Norte.
É notável como um presidente que se coloca como dedicado à lei e a ordem se tornou um aliado de criminosos: grileiros, incendiários, madeireiros, pescadores e caçadores ilegais.
Isso pode até ser menos perceptível no resto do Brasil, mas é um desdobramento claro na Amazônia. O governo Bolsonaro, que sempre ressalta que "a Amazônia é nossa", entregou a floresta à máfia ambiental, enfraquecendo deliberadamente o Estado.
Raiz dos males
A crença de que existe apenas uma verdade, e de que você próprio está em posse dela, é a raiz de todos os males do mundoMax Born
Sobre urnas e votos
Uma poderosa reflexão sobre as urnas como um instrumento de escolha de governantes foi feita por Machado de Assis no conto A Sereníssima República, publicado em 1882. É Richard Moneygrand, meu velho mentor harvardiano, indignado com a tentativa de ilegitimar a urna eletrônica feita por Bolsonaro, quem fala num e-mail.
Você analisou esse conto, diz meu amigo, que tem um pouco de Kipling e antecede Kafka, porque o seu centro é a comunicação de um erudito Cônego com aranhas. Tendo aprendido o idioma das aranhas, o pesquisador - a pedido delas - sugere a adoção do regime republicano no qual o poder passa por meio de urnas e votos. É obvio, portanto, que a urna e o voto sejam envoltos numa atmosfera peculiar, porque são substituídos da velha sucessão por sangue, feita nas casas reais.
Mas, aponta Moneygrand, no Brasil, o sistema republicano enfrenta os costumes de uma sociedade aristocrática. Vocês ficam como as aranhas de Machado, acusando as urnas, em vez de enxergar os vossos reais problemas.
O Brasil não muda como sociedade, diz, com exagero, o velho mestre, sem abandonar sua preocupação com o conspirador e arrogante “trumpismo”. O Brasil não muda e não é porque há uma “direita muito forte ou resiliente”, como se diz. Não anda, porque o mesmo modelo de governar foi também adotado pela esquerda. Em ambos os casos, há um secular legalismo que garante privilégios: a lei privada protege cargos e segmentos.
A diferença dos discursos impressionava, mas as práticas (que distorcem as leis em favor de pessoas) são idênticas. A direita usava os elos de família ligada à velha aristocracia; a esquerda entronizou os partidários e aristocratizou o seu líder. A direita aristocrática era dona absoluta do Brasil, a esquerda recuperou o tempo perdido aristocratizando-se no poder e tentando o mesmo absolutismo com o coletivismo populista.
Não se pode esquecer, reitera Moneygrand, que tanto um lado como outro é hierarquizado. Têm seus intocáveis e têm suas castas. “Ambos criaram suas fidalguias que imobilizam o todo e impedem a modernização igualitária do sistema, que segue miseravelmente injusto. Ademais, o sonho de todo brasileiro mais ou menos oportunista é usar a malandragem a qual, conforme você disse faz tempo no seu Carnavais, Malandros e Heróis, é um modo estabelecido de navegação social. O alvo da malandragem é o costumeiro ‘arrumar-se’ ou ‘arranjar-se’, uma figura que consiste em enganar os ingênuos.”
No mundo civilizado, primeiro se arruma o país; no Brasil, primeiro nós, os vencedores, nos arrumamos. Os outros que se danem...
Você analisou esse conto, diz meu amigo, que tem um pouco de Kipling e antecede Kafka, porque o seu centro é a comunicação de um erudito Cônego com aranhas. Tendo aprendido o idioma das aranhas, o pesquisador - a pedido delas - sugere a adoção do regime republicano no qual o poder passa por meio de urnas e votos. É obvio, portanto, que a urna e o voto sejam envoltos numa atmosfera peculiar, porque são substituídos da velha sucessão por sangue, feita nas casas reais.
Mas, aponta Moneygrand, no Brasil, o sistema republicano enfrenta os costumes de uma sociedade aristocrática. Vocês ficam como as aranhas de Machado, acusando as urnas, em vez de enxergar os vossos reais problemas.
O Brasil não muda como sociedade, diz, com exagero, o velho mestre, sem abandonar sua preocupação com o conspirador e arrogante “trumpismo”. O Brasil não muda e não é porque há uma “direita muito forte ou resiliente”, como se diz. Não anda, porque o mesmo modelo de governar foi também adotado pela esquerda. Em ambos os casos, há um secular legalismo que garante privilégios: a lei privada protege cargos e segmentos.
A diferença dos discursos impressionava, mas as práticas (que distorcem as leis em favor de pessoas) são idênticas. A direita usava os elos de família ligada à velha aristocracia; a esquerda entronizou os partidários e aristocratizou o seu líder. A direita aristocrática era dona absoluta do Brasil, a esquerda recuperou o tempo perdido aristocratizando-se no poder e tentando o mesmo absolutismo com o coletivismo populista.
Não se pode esquecer, reitera Moneygrand, que tanto um lado como outro é hierarquizado. Têm seus intocáveis e têm suas castas. “Ambos criaram suas fidalguias que imobilizam o todo e impedem a modernização igualitária do sistema, que segue miseravelmente injusto. Ademais, o sonho de todo brasileiro mais ou menos oportunista é usar a malandragem a qual, conforme você disse faz tempo no seu Carnavais, Malandros e Heróis, é um modo estabelecido de navegação social. O alvo da malandragem é o costumeiro ‘arrumar-se’ ou ‘arranjar-se’, uma figura que consiste em enganar os ingênuos.”
No mundo civilizado, primeiro se arruma o país; no Brasil, primeiro nós, os vencedores, nos arrumamos. Os outros que se danem...
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