quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Sobre urnas e votos

Uma poderosa reflexão sobre as urnas como um instrumento de escolha de governantes foi feita por Machado de Assis no conto A Sereníssima República, publicado em 1882. É Richard Moneygrand, meu velho mentor harvardiano, indignado com a tentativa de ilegitimar a urna eletrônica feita por Bolsonaro, quem fala num e-mail.

Você analisou esse conto, diz meu amigo, que tem um pouco de Kipling e antecede Kafka, porque o seu centro é a comunicação de um erudito Cônego com aranhas. Tendo aprendido o idioma das aranhas, o pesquisador - a pedido delas - sugere a adoção do regime republicano no qual o poder passa por meio de urnas e votos. É obvio, portanto, que a urna e o voto sejam envoltos numa atmosfera peculiar, porque são substituídos da velha sucessão por sangue, feita nas casas reais.


Mas, aponta Moneygrand, no Brasil, o sistema republicano enfrenta os costumes de uma sociedade aristocrática. Vocês ficam como as aranhas de Machado, acusando as urnas, em vez de enxergar os vossos reais problemas.

O Brasil não muda como sociedade, diz, com exagero, o velho mestre, sem abandonar sua preocupação com o conspirador e arrogante “trumpismo”. O Brasil não muda e não é porque há uma “direita muito forte ou resiliente”, como se diz. Não anda, porque o mesmo modelo de governar foi também adotado pela esquerda. Em ambos os casos, há um secular legalismo que garante privilégios: a lei privada protege cargos e segmentos.

A diferença dos discursos impressionava, mas as práticas (que distorcem as leis em favor de pessoas) são idênticas. A direita usava os elos de família ligada à velha aristocracia; a esquerda entronizou os partidários e aristocratizou o seu líder. A direita aristocrática era dona absoluta do Brasil, a esquerda recuperou o tempo perdido aristocratizando-se no poder e tentando o mesmo absolutismo com o coletivismo populista.

Não se pode esquecer, reitera Moneygrand, que tanto um lado como outro é hierarquizado. Têm seus intocáveis e têm suas castas. “Ambos criaram suas fidalguias que imobilizam o todo e impedem a modernização igualitária do sistema, que segue miseravelmente injusto. Ademais, o sonho de todo brasileiro mais ou menos oportunista é usar a malandragem a qual, conforme você disse faz tempo no seu Carnavais, Malandros e Heróis, é um modo estabelecido de navegação social. O alvo da malandragem é o costumeiro ‘arrumar-se’ ou ‘arranjar-se’, uma figura que consiste em enganar os ingênuos.”

No mundo civilizado, primeiro se arruma o país; no Brasil, primeiro nós, os vencedores, nos arrumamos. Os outros que se danem...

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