quarta-feira, 24 de agosto de 2022

O desmantelamento do Estado brasileiro

Escrevo esta coluna em Atalaia do Norte, na Amazônia. Este é o local até onde Bruno Pereira e Dom Philips jamais conseguiram chegar. No caminho até aqui, o indigenista brasileiro e o jornalista britânico foram assassinados no rio Itaquaí. Seus corpos foram queimados, esquartejados e enterrados na floresta.

Desde então, a polícia prendeu vários suspeitos. Mas os indígenas que vivem em Atalaia do Norte e estão engajados na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) ainda vivem com medo. Quando nos encontramos, eles pediram que não tirássemos fotos e não citássemos os nomes deles. Eles não acreditam que o Estado seja capaz ou tenha a intenção de protegê-los.

Mesmo que os assassinos possam estar presos em Manaus, os indígenas sabem que a Terra Indígena do Vale do Javari continua sendo alvo de uma máfia de pescadores, caçadores e madeireiros ilegais. Garimpeiros também invadem o território.

Fomos alertados a ter muito cuidado navegando pela rota que Dom e Bruno percorreram em sua última viagem. Ela começa na base da Funai em Ituí-Itaquí, na entrada do Vale do Javari, a reserva com o maior número de povos indígenas isolados em todo o mundo. Depois de a base ter sido alvo de diversos ataques armados em 2019, quatro soldados da Força Nacional foram posicionados ali para proteger os funcionários da Funai, que não andam armados.

Ao chegarmos à base da Funai, notamos dois barcos em um hangar. Eles tinham motores de 40 e 15 hp, e nos perguntamos como a Funai pretende fazer o monitoramento e fiscalização efetiva da Terra Indígena com essas embarcações.

O barco dos assassinos de Dom e Bruno tinha um motor de 60 hp. Eles costumavam entrar no vale através de rotas secretas para pescar ilegalmente. O Estado brasileiro está, portanto, em desvantagem em relação aos criminosos já no que diz respeito a equipamentos.

Soubemos que também há uma escassez crônica de combustível na base. Pediram que levássemos um antropólogo da Funai, que trabalha com povos isolados e acabara de passar 60 dias na selva, de volta para Atalaia em nosso barco, numa viagem de duas horas e meia. Quando passamos pelos povoados onde moravam os assassinos de Dom e Bruno, o funcionário confessou que está com muito medo.

Ele também disse que dependia dessa carona – o que nos levou a pensar no que acontece com o Estado brasileiro, que subfinancia suas agências e abandona seus funcionários. Há, no entanto, algumas exceções: sob Bolsonaro, as Forças Armadas receberam Viagra e leite condensado.

Mas, por que estou contando tudo isso? Porque um dos resultados de quatro anos de Bolsonaro é a destruição de parte do Estado brasileiro. O presidente não somente reduziu os recursos financeiros, mas também o número de funcionários e as competências de algumas agências federais, construídas durante anos.


Cargos de gerenciamento foram ocupados por militares e bolsonaristas que, com frequência, possuem pouca competência, mas muito radicalismo. Muitas vezes, o que se viu foi uma deturpação da função dos respectivos órgãos, como foi o caso no Ibama, ICMbio e na Funai. Assim, em vez de proteger o meio ambiente, passaram a proteger os destruidores do meio ambiente, como fazia o ex-ministro Ricardo Salles.

Resultado: os criminosos foram encorajados, e as máfias, fortalecidas, enquanto o funcionalismo do governo foi enfraquecido. Não é coincidência que o funcionário da Funai Maxciel Pereira tenha sido morto a tiros em plena rua em Tabatinga, durante o governo Bolsonaro.

Quando Bruno Pereira foi assassinado, o azar dos assassinos foi que Dom Philips, um correspondente internacional, estava com ele. Se não estivesse, o crime contra Bruno teria, provavelmente, ficado sem solução, assim como o de Maxciel. Essa é a opinião unânime de todos com quem conversamos na região de Atalaia do Norte.

É notável como um presidente que se coloca como dedicado à lei e a ordem se tornou um aliado de criminosos: grileiros, incendiários, madeireiros, pescadores e caçadores ilegais.

Isso pode até ser menos perceptível no resto do Brasil, mas é um desdobramento claro na Amazônia. O governo Bolsonaro, que sempre ressalta que "a Amazônia é nossa", entregou a floresta à máfia ambiental, enfraquecendo deliberadamente o Estado.

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