terça-feira, 12 de maio de 2020

Brincando de ser presidente

O Brasil decente e solidário está de luto. O Congresso e o Supremo Tribunal Federal decretaram no sábado passado luto oficial de três dias, depois que o Brasil superou a triste marca de 10 mil mortos pela covid-19. O governador de São Paulo, João Doria, já havia feito o mesmo na quinta-feira, dia 7, e o luto paulista será mantido até o fim da pandemia. Como lembrou o Supremo, em nota oficial, “precisamos, mais do que nunca, unir esforços, em solidariedade e fraternidade, em prol da preservação da vida e da saúde”. E a mensagem da Corte arrematou: “A saída para esta crise está na união, no diálogo e na ação coordenada, amparada na ciência, entre os Poderes, as instituições, públicas e privadas, e todas as esferas da Federação deste vasto país”.

No mesmo dia em que as principais autoridades do Judiciário e do Legislativo manifestavam pesar pelos milhares de concidadãos mortos e rogavam aos brasileiros que se unissem na luta contra a pandemia, circularam pelas redes sociais imagens do presidente Jair Bolsonaro a passear de moto aquática pelo Lago Paranoá, em Brasília, divertindo-se à beça. A este senhor, que brinca de ser presidente, não basta incitar seus camisas pardas vestidos de verde e amarelo a desafiar as instituições republicanas e a intimidar jornalistas; é preciso tripudiar sobre o sofrimento dos milhares de brasileiros que morreram e dos milhões que ora se encontram em quarentena, abrindo mão de sua vida social e enfrentando as agruras do desemprego e da redução de renda.


E mais: enquanto os governadores e prefeitos lutam para convencer seus governados a ficar em casa, única forma de retardar o colapso do sistema público de saúde – que já se verificou em diversos Estados –, o presidente avisa que vai ampliar, por decreto, o número de atividades consideradas essenciais e, portanto, livres de restrições durante a pandemia. “Vou abrir, já que eles (governadores) não querem abrir, a gente vai abrindo aí”, declarou Bolsonaro, como se a quarentena fosse uma escolha, e não um imperativo. Respeitados especialistas dizem, aliás, que o ideal seria impor desde já o chamado “lockdown”, isto é, a radicalização do isolamento social – o exato oposto do que Bolsonaro defende.

Compreende-se a dificuldade de fazer com que os cidadãos aceitem o isolamento social, o que inclui pôr em risco a própria sobrevivência e a da família em muitos casos. A situação fica ainda mais dramática à medida que a quarentena se estende no tempo. Portanto, é razoável esperar uma progressiva queda na adesão ao esforço coletivo para reduzir o contágio, mas está claro que essa queda tende a se acentuar quando a mensagem das autoridades a respeito da pandemia é confusa e fragmentada.

Se o presidente usa sua destacada posição de principal dirigente da República para, além de debochar dos mortos e dos que estão sofrendo, incitar os cidadãos a ignorar a quarentena imposta por governadores e prefeitos como se fosse desnecessária, não surpreende que muitos o façam. Em vez de inspirar os cidadãos a aceitar a responsabilidade de cada um no enfrentamento da pandemia, o presidente estimula o fracionamento da autoridade – o que, no limite, leva à desobediência e ao caos. Para complicar, o Ministério Público ainda colabora para minar a credibilidade dos governos estaduais e das prefeituras ao criar caso com compras emergenciais de equipamentos médicos, ignorando que, neste momento, eventuais irregularidades, previsíveis numa operação dessa magnitude, são o menor dos problemas diante da urgência urgentíssima.

O enfrentamento desta crise, que caminha para ser a maior da história do Brasil, depende, fundamentalmente, de harmonia entre as diversas autoridades, em todas as esferas, resguardadas as prerrogativas de cada uma, conforme o espírito da Federação. E depende de articulação dedicada entre o presidente, seus ministros, os governadores e os prefeitos, além do Congresso, do Judiciário e do Ministério Público. Obviamente não é fácil, como ficou claro na maior parte dos países do mundo, às voltas com atropelos no combate à covid-19. Mas é muitíssimo mais difícil, quase impossível, quando se tem um presidente que, tal como um adolescente birrento e mandão, é absolutamente incapaz de ver o mundo além do próprio umbigo.

Goebbels, de novo

Há quatro meses, o então Secretário de Cultura do Capitão Bolsonaro, Roberto Alvim, chocou o Brasil com um video em que repetia frases e cenários do satânico ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels. Caiu. Não porque imitou Goebbels. Porque o Capitão não gostava dele. Para o seu lugar, Bolsonaro acertou a mão de novo. Nomeou outra ardente defensora de suas idéias fascistas.

Em lunática e reveladora entrevista à CNN Brasil, Regina Duarte mostrou sua face nefanda, de terror, de deboche pelas vitimas da ditadura, de desprezo por mortos pela pandemia. Não superou o chefe. Chegou perto. Bolsonaro, na intrinseca maldade de sua alma (se é que tem uma) nem defendeu a secretária.

A atriz mergulhou sozinha no mar pútrido de declarações ofensivas à humanidade. O Brasil, onde mais de 12 mil pessoas sucumbiram ao vírus maldito, ouviu a atriz dizer que "a Covid está trazendo uma morbidez insuportável". Regina não é idiota, embora pareça. Como não trazer sombra se todos os dias carregamos córdeis de caixões?


Deslumbradíssima pelo cargo sem poder, sem recursos, sem caneta, sem prestigio, a que se diz Secretária de Cultura contou que não conhecia Aldir Blanc. Não mereceu conhecer. Merece a função que tem. Marchar ao lado de um mentor da ditadura e da tortura cai bem no papel de quem foi a "namoradinha do Brasil" no período mais sangrento de nossa história.

Alienada? Não. Regina sabe o que diz e diz o que pensa. Burra. Fraca. Despreparada. Medíocre. Incompetente. Não faltaram adjetivos nas redes sociais, na reação de artistas renomados. Apontaram nela o "sorriso falso e jocoso, de fantoche e escrava de Bolsonaro", escreveu Fábio Assunção. Mais de 500 artistas lançaram abaixo-assinado repudiando as declarações de cunho nazista.

Não à toa, Goebbels, de novo. Não à toa, lembrei de Lida Baarova, talentosa atriz, de beleza estonteante (não é o caso de Regina, por favor). Aos 20 anos, em 1934, trocou Praga, onde nasceu, por Berlim, e foi sucesso de público e critica logo no primeiro longa alemão. Casou-se com seu parceiro de tela, o ator Gustav Fröhlich, e mudou-se com ele para os arredores de Berlim.

E quem era um dos vizinhos de Lida? Goebbels. O super poderoso ministro nazista, que controlava com mão de ferro toda o setor cultural alemão. Cinema, inclusive. Lida apaixonou-se por aquele homem feio, grosseiro, mas poderoso. O caso se tornou público.

A mulher traida de Goebbels foi a Hitler. Furioso, o ditador genocida exigiu o fim do relacionamento. Acabou ali a carreira de Lida Baarova na Alemanha. Com o fim do regime nazista, foi presa pelos aliados sob acusação de traição. Sua mãe morreu durante interrogatório, sua irmã suicidou-se. Lida morreu na pobreza e no ostracismo, aos 86 anos em Salzburg, em 2000.

A história de Lida é emblemática, arquétipo dos dias de hoje. É prudente que essa gente desprezível que habita "por enquanto" os palácios de Brasilia, na companhia indigna de Regina Duarte, nunca se esqueça: entre o céu e o inferno, a distância é muito curta.

Estado frenético de tagarelice

Assola o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensembles, coros. Desde os píncaros de Castro Laboreiro ao Ilhéu de Monchique fervem rumorejos, conversas, vozeios, brados que abafam e escamoteiam a paciência de alguns, os vagares de muitos e o bom senso de todos. O falatório é causa de inúmeros despautérios, frouxas produtividades e más-criações.

Fala-se, fala-se, fala-se, em todos os sotaques, em todos os tons e decibeis, em todos os azimutes. O país fala, fala, desunha-se a falar, e pouco do que diz tem o menor interesse. O país não tem nada a dizer, a ensinar, a comunicar. O país quer é aturdir-se. E a tagarelice é o meio de aturdimento mais à mão.

(...) Telefones móveis! Soturna apoquentação! Um país tagarela tem, de um momento para o outro, dez milhões de íncolas a querer saber onde é que os outros param, e a transmitir pensamentos à distância.

Afortunados ventos que batem todas as altitudes e pontos cardeais e levam as mais das palavras, às vezes frases inteiras, parágrafos, grosas deleas, para as afogar no mar, embeber nos lameiros de Espanha, gelar nos confins da Sibéria, perder nas imensidades do éter. É um favor de Deus único e verdadeiro. O país pereceria num sufoco, aflito de rouquidões, atafulhado de vocábulos, envenenado de sandices, se a Providência caridosa lhos não disseminasse por desatinadas paragens.
Mário de Carvalho, "Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina"

Luzes da escuridão

As estrelas nas ombreiras, novamente, voltaram a brilhar mais nos céus do Brasil. Acima de tudo e de todos 

Como Bolsonaro pagará a conta do mal provocado pelo Covid-19

A maior demonstração de pesar do presidente Jair Bolsonaro pela morte até aqui de mais de 10 mil brasileiros vítimas do coronavírus limitou-se a duas frases ditadas, ontem, por ele à entrada do Palácio da Alvorada: “Lamento cada morte que ocorre a cada hora. Lamento”.

Em seguida, explicou o que lhe caberia fazer a respeito: “Agora, o que podemos fazer, nós todos, é tratar com o devido zelo os recursos públicos. Está tendo denúncia em todo lugar. Gente presa. Em vez de fazer notinha de pesar, tem que dar exemplo. Gastar menos”.

Engana-se quem pensa que ele se referia à denúncia de que gastou só este ano com cartão de crédito corporativo R$ 3,76 milhões, segundo o Portal da Transparência. O valor representa um aumento de 98% em relação à média dos últimos cinco anos no mesmo período.


Também não se referia à fraude descoberta pelo Ministério da Defesa: militares de todas as patentes, da reserva e da ativa, se cadastraram no aplicativo da Caixa Econômica para receber o auxílio emergencial de R$ 600. A lei que criou o benefício não lhes deu tal direito.

Bolsonaro referia-se a denúncias de superfaturamento na compra por Estados e municípios de equipamentos médicos para enfrentar a pandemia. Há que se apurar se houve superfaturamento ou se o preço pago se deveu à procura bem maior do que a oferta.

Se tivesse mais preocupado com vidas perdidas do que com economia, Bolsonaro não teria assinado mais um ato de sabotagem às medidas de isolamento adotadas por governadores e prefeitos. Mas foi o que ele fez ontem, de resto como prometera fazer há um mês.

Baixou outro decreto, desta vez para incluir academias de ginástica e barbearias entre as chamadas “atividades essenciais”, não obrigadas a permanecerem fechadas. Com isso, ele incentiva a reabertura de negócios que podem provocar a circulação de muita gente.

Bolsonaro quer mais é que as pessoas se exponham. No último sábado, ele só suspendeu o churrasco que ofereceria a amigos e parentes no Palácio da Alvorada quando soube que o Congresso e o Supremo Tribunal Federal haviam decretado luto pela morte de tantas pessoas.

Agora, são 11.519 mortos. E o número de casos confirmados de coronavírus no país está próximo de 170 mil. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que valem para Estados e municípios as medidas de confinamento impostas por seus governantes, não pelo presidente da República.

Pouco importa. Bolsonaro continuará a assinar decretos sem validade. Estimular a desobediência civil é o seu propósito, mas não só. Mesmo com decretos inválidos, ele agrada parcela de sua base de eleitores de olho na reeleição em 2022. É candidato antes de ser presidente.

Em tempo: tão logo foram informados sobre o decreto assinado por Bolsonaro, os governadores do Pará, Maranhão, Ceará e Bahia se apressaram a dizer que academias e barbearias permanecerão fechadas em seus Estados. Outros, hoje, deverão dizer o mesmo.

Bolsonaro, queira ou não, pagará grande parte da fatura pelo mal do século que poderia ter combatido. Fugiu à luta. E não será com cartão de crédito corporativo da presidência da República que saldará o débito. Será com a hemorragia de votos que o desidratará.

Imagem do Dia


'Mais que palavras'

Esse é o título em português de um artigo em fase de elaboração que começou a circular na última semana nos grupos de economistas brasileiros (More than Words: Leaders’ Speech and Risky Behavior During a Pandemic). Nele, dois economistas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, Nicolas Ajzenman e Daniel da Mata, além de Tiago Cavalcanti, da Universidade de Cambridge, analisam o impacto das palavras e ações do líder político de uma nação sobre o comportamento das pessoas.

Os autores buscam responder a essa questão dentro do contexto brasileiro atual. Com base em uma análise que combina informações eleitorais com dados de telefones celulares, os autores concluem que houve uma redução do isolamento social nas localidades onde a presença de cidadãos pró-governo é mais relevante, relativamente às localidades onde o apoio é menor, após as manifestações do presidente Jair Bolsonaro minimizando publicamente os riscos da pandemia da covid-19 no Brasil. Ou seja, os resultados do trabalho sugerem que as palavras e ações do presidente da República têm impacto negativo no nível de obediência dos seus apoiadores às medidas de isolamento social.


Vale lembrar que na ausência de uma vacina ou de um medicamento, o isolamento social é a única medida comprovadamente eficaz para conter a disseminação da pandemia. Essa disseminação é determinada pela taxa de contágio que, por sua vez, está vinculada ao número de contatos que uma pessoa contaminada venha a ter e portanto à sua capacidade de passar o vírus adiante. Em particular, pessoas que estejam contaminadas e não apresentem sintomas são aquelas com maior potencial de contaminação.

Ao mesmo tempo que reduz a taxa de propagação do vírus, o isolamento social (obrigatório ou voluntário) também reduz a atividade econômica. Nesse contexto, além da proibição legal de funcionamento de algumas atividades, questões comportamentais também se impõem pelo receio da contaminação, nesse caso reforçando os impactos do isolamento sobre a curva de contaminação, mas também alavancando os efeitos sobre a atividade. O resultado dessa combinação é, por um lado, o desejável achatamento da curva e, por outro, os choques de oferta e de demanda que estamos observando no Brasil e no mundo.

Isso se reflete nos indicadores econômicos: pedidos recordes de seguro-desemprego nos Estados Unidos, que superaram os 33 milhões em abril ou quedas significativas no PIB dos diversos países afetados, como os 6,8% de contração do primeiro trimestre na China. Junte-se a isso os pedidos de recuperação judicial de empresas afetadas diretamente pela pandemia e uma perspectiva sombria para o mercado de crédito de varejo nos próximos meses e temos alguns exemplos dos impactos da crise de saúde na economia real.

Não há quem esteja insensível a esses números. O grande desafio está, contudo, na compatibilização dessa preocupação com a necessidade de se garantir que a contaminação não vai superar a capacidade instalada de atendimento de saúde. Infelizmente, não será impossível evitar que muitas mortes ocorram. Mas é sim possível reduzir os número delas desde que haja atendimento adequado e tempestivo. Essa é a restrição que precisa ser considerada e que condiciona todas as outras ações.

A decisão de quando e como flexibilizar depende, portanto, desse delicado equilíbrio entre o formato da curva de contaminação, a capacidade hospitalar – em particular de leitos de UTIs – e uma retomada organizada e gradual das atividades. Nessa última parte, o foco especial em setores mais afetados pela crise e com maior potencial de geração de emprego e informalidade pode ajudar a organizar a retomada. Aqui, a definição de protocolos de saúde que visem à redução dos riscos de contaminação é fundamental.

Adicionalmente, o Brasil precisa ampliar substancialmente sua capacidade de testagem. Atividade que dependerá de pactuação com o setor privado, cuja capacidade de execução é a única forma de garantir a necessária velocidade. Nessa equação com tantas variáveis, o esforço conjunto é o que fará a diferença.

Mas enquanto o presidente da República for na direção contrária das ações de conscientização e planejamento de governadores como João Dória, em São Paulo, ou Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul, esforços estarão sendo desperdiçados.

Como mostra o estudo dos meus colegas economistas, as palavras do presidente não têm se perdido no tempo. Ao contrário, elas têm contribuído para atrasar o controle da curva de contaminação e, portanto, da possibilidade de retomada das atividades. Ou seja, ao contrário do que querem dizer as palavras de ordem dos seus apoiadores, o principal responsável pelo atraso na retomada da atividade econômica é o presidente da República.

Soneto da falha lembrança

Willy Zumblick
Que fizemos dos dias que passaram
(E foram tantos, minha velha amiga),
Que fizemos de todos eles, diga,
Que tão pouco de si em nós deixaram?

As lembranças que deles nos ficaram
Perdem-se como os sons de uma cantiga
Muito bela, mas também tão já antiga
Que até seus versos todos se apagaram.

Passaram todos, e a incapacidade
Que tivemos de inteiros conservá-los
Nos faz, com a alma de pejo e culpa cheia,

Juntá-los em um termo só, saudade,
E assim, sem brilho e sem calor, lembrá-los

Como se fossem de memória alheia.

Por um teto de pobreza

Três de cada 5 mães solo vivem abaixo da linha da pobreza. Esta trágica estatística se manteve estável nos últimos anos, como informa anualmente o IBGE na pesquisa Síntese de Indicadores Sociais. Embora o Dia da Mães possa ter sido de menos escassez este ano por conta do auxílio emergencial – que alcança mais mães e paga valores maiores que o Bolsa Família –, o benefício tem prazo para acabar. Mães e seus filhos cairão de novo na pobreza, e até na extrema pobreza. Uma PEC pretende erradicar essa situação intolerável: imitando o teto de gastos, cria um teto de pobreza infantil.

Metas de pobreza foram instituídas na década passada no Canadá, na Nova Zelândia e no Reino Unido (nestes dois últimos, especificamente, para a pobreza entre crianças). Se o teto de gastos estabelece limites para a despesa, o teto da PEC 11 estabelece anualmente limites para a pobreza infantil. Se o descumprimento do teto de gastos aciona gatilhos para controlar a despesa (como proibição de aumentos salariais), o descumprimento do teto de pobreza igualmente acionaria gatilhos para que metas fossem cumpridas.


No Brasil, cerca de 40% das crianças de até 14 anos vive abaixo da linha de pobreza do Banco Mundial. É a faixa etária mais afetada pela pobreza no País, de forma desproporcional. A situação é pior para as crianças negras na primeira infância: cerca 60% vive na pobreza, e 20% na pobreza extrema. As estimativas são do pesquisador Daniel Duque (Ibre-FGV), usando os dados recém-divulgados de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE.

Na PEC 11, há dois tetos para a taxa de pobreza infantil. Enquanto ela estiver acima de 10%, aciona-se o gatilho para que mais crianças sejam acolhidas no Bolsa Família. Hoje, somente podem receber benefícios aquelas de famílias que vivem com menos de R$ 6 por dia para cada pessoa. E enquanto a taxa de pobreza entre as crianças estiver acima de 30%, aciona-se o gatilho para que o valor do Bolsa seja maior: hoje ele é inferior a R$ 1,50 por dia. Como ocorre com as regras orçamentárias, a desobediência levaria a crime de responsabilidade.

Não haveria elevação de déficit ou dívida. Na PEC, de iniciativa de 27 senadores – Alessandro Vieira o primeiro autor –, um fundo anticíclico custearia a elevação de gasto, e sua principal receita seria uma tributação progressiva sobre os ganhos de grandes instituições financeiras. Os lucros passariam a ser reinvestidos na infância. A PEC faculta ainda que qualquer despesa da União seja revertida para o combate à pobreza infantil, concretizando uma previsão que já consta da própria Constituição de 88: a de que o direito à vida, à alimentação e à saúde das crianças é prioridade absoluta. A lógica é intuitiva: enquanto houver criança na pobreza, outras despesas podem esperar. O ajuste fiscal ganha sentido.

A ênfase de variados governos em anos recentes na infância, e em particular na primeira infância, vem de uma florescente literatura científica evidenciando o retorno para sociedade do investimento nesta fase da vida. Evitar que crianças vivam em um ambiente de estresse e privações em uma época-chave para o seu desenvolvimento levaria a cidadãos mais prósperos e aptos a contribuir para a sociedade no futuro – combatendo a pobreza e a desigualdade de forma mais estrutural.

É evidente, porém, que transferências de renda não bastam. É essencial facilitar a inclusão no mercado de trabalho dos pais, especialmente das mães – frequentemente muito jovens (uma agenda que, infelizmente, ainda é encarada no Brasil como “perda de direitos”). São igualmente fundamentais o investimento na educação infantil e em práticas de desenvolvimento infantil – uma bela referência é o Mais Infância Ceará. O próprio fundo a ser criado pela PEC 11 (Fundo Anticíclico de Combate à Pobreza) se destina à premiação de Estados e municípios com avanços na área social.

Mesmo o teto inferior de pobreza infantil, de 10%, é conservador: ainda implicaria 4 milhões de crianças vivendo abaixo da linha da pobreza. O número talvez impressione porque naturalizamos por tempo demais nossa situação. Ter 40% de crianças na pobreza significa 17 milhões de pessoas. Negligenciamos uma Holanda inteira. O que vamos fazer até o próximo Dia das Mães?

O novo normal

Na expectativa de voltar àquele cotidiano a que estávamos acostumados, todo mundo fala a mesma coisa, pensando no futuro próximo: “Quando tudo voltar ao normal eu vou me reunir com amigos, vou realizar antigos projetos” e por aí vai. Pensamos no “normal” achando que a vida lá fora ficou congelada quando nos recolhemos por causa da pandemia.

Também é comum repetirmos que nada será como antes. O que parece ser uma contradição para com o primeiro pensamento. Se nada será igual, como voltaremos ao que ficou? Quem assim pensa, afirma que haverá grandes mudanças porque a humanidade jamais enfrentou tanta tribulação com o medo do vírus. Ou com o trauma das restrições de liberdade devido ao confinamento.

Como será o novo normal? Pela televisão e mídias sociais vemos os países onde as regras de convivência começaram a ser flexibilizadas. A doença saiu da fase aguda e as pessoas voltaram às ruas e aos parques. Todas, de máscara. Seria essa a primeira imagem do novo normal? A máscara persistirá feito cicatriz de uma ferida mal curada?

A outra mudança, com certeza, repercutirá nos hábitos de higiene. Aprendemos a lavar as mãos. Ah, também descobrimos para que serve álcool em gel e álcool 70. Essa coisa de aprender a lavar as mãos, como herança de um momento tão doloroso, faz lembrar a epidemia de cólera nos anos 1990. O brasileiro se conscientizou da necessidade de se lavar frutas e legumes e ficou sabendo da utilidade do hipoclorito de sódio.

Mas, as nossas transformações seriam, assim, tão prosaicas?

Nem tão prosaicas, nem tão apocalípticas. Não seremos estrangeiros na nossa cidade e nem encontraremos um mundo em ruínas. Nada tanto assim. Hoje, quando falamos de novo normal no Brasil é apenas uma projeção para mudanças podem ocorrer, mas que também podem demorar a se processar.

Talvez seja mais útil viver o sentimento do aqui e agora, aprendendo com esse instante tão rico. Posso dizer que, no meu caso pessoal, está havendo uma mudança interna. Uma mudança do olhar. Definitivamente, não vejo mais o mundo e a vida como os via quando tivemos que abreviar o cotidiano.

Muitas pessoas devem estar em processos semelhantes a mim. Mas, cada um, chegando à própria conclusão. O sentimento para com esse momento é individual. O vírus traz um recado para cada pessoa em particular.

Esta, portanto, talvez seja a mudança que vai ditar o novo normal. Se todos mudarmos um pouco, para mais ou para menos, seremos outros quando nos reencontrarmos no novo normal. Nesse caso o universo, é claro, também será outro.

Cícero Belmar

E lá vai o Brasil...


'Weak strongman'

A resposta canônica de líderes iliberais frente à pandemia é apontar a magnitude da ameaça como justificativa para a concentração de poder. O caso exemplar é o de Viktor Orbán na Hungria, que governa virtualmente por decreto.

Bolsonaro, Trump, e Johnson (este mais bufão que iliberal), no entanto, fizeram pouco caso dela.

Este paradoxo pode ser explicado pelo fato de que os dois últimos depararam-se com ameaças —impeachment e Brexit— que precediam a pandemia. Contavam com maiorias parlamentares disciplinadas: Trump foi inocentado no Senado, onde tem maioria; apenas um senador de seu partido (Mitt Romney) votou a favor. Contudo deparavam-se com checks and balances robustos e opinião pública ativa.


Bolsonaro é liderança iliberal hiperminoritária, o que é um oxímoro. Mas a contradição desfaz-se quando se examina as condições excepcionais de sua ascensão: a formação de uma maioria negativa que o rejeitava menos que o rival. Sua crescente vulnerabilidade explica a aliança com o centrão. Ela fortalece seu escudo legislativo (em equilíbrio instável), mas piora a popularidade. Ele também se depara com instituições de controle que adquiriram densidade.

Bolsonaro fez pouco caso da pandemia porque é weak strongman e também por esperar não ser responsabilizado pelo caos sanitário —afinal os serviços de saúde estão a cargo de governadores e prefeitos, que arcarão com seus custos políticos.

Mas importa-lhe o caos econômico —daí ter se antecipado em transferir responsabilidade para governadores. Aqui a jogada é radical: dos 12 governadores que o apoiaram, apenas 3 o fazem agora (ante 26 em 50, nos EUA, que são co-partidários de Trump).

Sua declinante popularidade eleva a probabilidade de derrocada. Mas a emergência sanitária e o afastamento do presidente são mega questões que tendem a ser mutuamente excludentes na agenda pública.

Disputa semelhante —mas de sinal contrário— ocorreu nos EUA, onde o impeachment ocupou a agenda congressual, deslocando a questão da pandemia.

O pedido de impeachment foi aprovado em 18/12/2019 pela Câmara dos Representantes, e o voto no Senado ocorreu em 5 de fevereiro. Já no Reino Unido, a disputa de agenda envolvendo o Brexit teve desenlace após as eleições gerais de 13/12/2019 e rodada de três votações entre 19/12/19 e 23/01/20, quando recebeu o Royal Assent. A pandemia só entra na agenda de Reino Unido e EUA em março e abril.

Se o afastamento e o horror sanitário mantiverem-se separados na agenda, Bolsonaro dificilmente será afastado. Mas, se suas ações cotidianas são vistas como ameaça, abrem-se possibilidades para fazê-lo.
Marcus André Melo

Isto é civilidade!

Considera-se tanto mais civilizado um país quanto mais sábias e eficientes são suas leis que impedem ao miserável ser miserável demais, e aos poderosos ser poderosos demaisPrimo Levi, "É isto um homem?"

Brasil perde status de democracia liberal perante o mundo

Nesta semana, o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, apresentou um dado revelador: no mundo, 40% das postagens numa grande plataforma social sobre a covid-19 eram realizadas por robôs. Se o dado em si é surpreendente, a pergunta que precisa ser feita é óbvia: a quem serve tal esforço? Por qual motivo um movimento disfarçado de indivíduos anônimos ― e portanto de massa ― buscaria influenciar a opinião pública sobre uma pandemia que matou nos EUA mais que a Guerra do Vietnã?

E por qual motivo líderes de nações supostamente democráticas se lançam, ao mesmo tempo, em ataques explícitos ou camuflados de “espontâneos” contra a imprensa, um eventual antídoto à proliferação de desinformação? No domingo, em pleno dia internacional da liberdade de expressão, jornalistas foram atacados em Brasília. A opção da presidência foi por minimizar os eventos. Dias depois, foi a vez do próprio presidente Jair Bolsonaro revelar sua índole mais íntima ao mandar um repórter “calar a boca” e ofender a imprensa.

Os jornalistas são apenas parte de uma nova rotina do poder. Nesta terça, Bolsonaro gritou duas vezes com jornalistas mandando um “cala a boca”, algo que só a ditadura viu no Brasil. Mas os relatos se espalham pelo país sobre como enfermeiras e médicos estão sendo alvos de ataques de apoiadores do Governo. Não faltam agressões morais contra professores, artistas, intelectuais ou cientistas, todos eles vistos como potenciais ameaças. Enquanto isso, nas redes sociais, milhares de robôs e apoiadores autênticos de um movimento violento transformam plataformas em trincheiras da mentira.

Nos discursos, quase nunca de improviso, Deus e ódio se misturam nas mesmas frases. Judas é evocado para atacar antigos pilares do movimento. A religião passa a legitimar abusos de direitos humanos. Pede-se orações para que um líder cuja promessa era a de exterminar o contraditório. Todos se apresentam como pessoas de bem. Todos se apresentam como patriotas, únicos autorizados a vestir as cores nacionais.

Nas ruas, nas praças, no mundo virtual ou na violência diária, todos esses personagens têm algo em comum: o desprezo pela democracia. O ruído causado por esse grupo, instigado por seus líderes, certamente é maior que seu número real de apoiadores. Mas ainda assim tal massa é relevante no cenário em que vivemos. Uma massa que mistura classes sociais sob uma única ideologia, com um comportamento fanático capaz criar uma surdez crônica.

Instrumentalizada, ela cumpre justamente um objetivo, online e offline: o de dar pinceladas de legitimidade popular a um movimento claramente autoritário. “Foi uma demonstração espontânea da democracia”, afirmou o presidente, numa referência aos recentes atos. Nada disso é novo. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade.

Hannah Arendt aponta como, anos antes da chegada ao poder de tais forças na Europa, sociedades de classes foram dissolvidas em massas. Já os partidos foram destruídos e substituídos apenas por ideologias. Em Brasília neste fim de semana, as caravanas do autoritarismo eram a distopia de um sonho de uma cidade erguida para ser a capital de um novo século, democrático. Nas sombras dos traços do arquiteto estavam os reflexos de uma parcela da sociedade que jamais viu a democracia com entusiasmo, que sempre desconfiou da ideia do pluralismo, que jamais entendeu a noção do público e que, com seu egoísmo insultante, nutre a convicção de que as instituições são uma fraude.

Ameaçado pelo vírus e por uma recessão brutal, o Governo mobiliza suas tropas cegas pela ignorância para se defender, aprofundar seu desprezo pela verdade e levar um país ao limite de sua coesão nacional. Todos os sinais apontam na mesma direção: a democracia brasileira está ameaçada e seu desmonte ocorre em plena luz do dia. Em cada desafio disparado a um dos poderes, em cada gesto de violência, em cada mentira disseminada e em cada caixão enterrado.

O Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, um dos maiores bancos de dados sobre democracias no mundo, já deixou de classificar o Brasil desde o começo do ano como uma “democracia liberal”. Agora, o país é uma mera democracia eleitoral.

O instituto produz e coleta informações sobre países entre 1789 a 2019 e conclui que, nos últimos dez anos, a deterioração da democracia no Brasil só não foi maior que a realidade verificada na Hungria, Turquia, Polônia e Sérvia. Segundo Staffan Lindberg, um dos autores do informe e diretor do instituto, tal tendência ganhou uma nova dimensão mais recentemente. “O Brasil foi um dos países no mundo que registrou a maior queda nos índices de democracia nos últimos três anos”, alertou.

Na ONU, gabinetes da alta cúpula da entidade são tomados por preocupações em terno do discurso anti-democrático e o encolhimento real do espaço civil. Pela primeira vez em décadas, o país é denunciado nas instâncias internacionais, inclusive por flertar com o risco de genocídio.

Em outras palavras: o direito inalienável de viver numa democracia plena não está garantido. O Centro para o Futuro das Democracias da Universidade de Cambridge foi categórico num recente informe sobre a situação das democracias no mundo: “Para o Brasil, ao que parece, o futuro foi adiado mais uma vez”.

Enquanto essa eterna promessa é uma vez mais torturada, a fronteira entre massa hipnotizada e dos robôs programados para disseminar desinformação parece se desfazer à medida que a crise institucional e de valores se aprofunda. No mundo virtual ou numa praça ensolarada, ambos tem a missão de disseminar um vírus mortal: a pandemia do ódio, capaz de aleijar uma democracia. Como troféu, seu mito governará sobre esqueletos, mordaças e carcaças. Ainda assim, com a fumaça negra desonrando o horizonte do Planalto Central, irá declarar solenemente: “e daí?”.

Esboço do sonho do líder

O sono do líder é agitado. A mulher sacode-o até acordá-lo do pesadelo. Estremunhado, ele se levanta, bebe um pouco de água, vai ao banheiro onde se vê diante do espelho. O que ele vê ? Um homem de meia-idade. Ele alisa os cabelos das têmporas, volta a deitar-se . Adormece e a agitação do mesmo sonho recomeça. "Não! Não!" , debate-se com a garganta seca.

É que o líder assusta-se enquanto dorme. O povo ameaça o líder ? Não, se foi o povo que o elegeu como líder do povo. O povo ameaça o líder ? Não, pois escolheu-o em meio de lutas quase sangrentas. O povo ameaça o líder ? Não, porque o líder cuida do povo. Cuida do povo?

Sim, o povo ameaça o líder do povo. O líder revolve-se na cama. De noite ele tem medo. Mesmo que seja um pesadelo sem história. De noite vê caras quietas, uma atrás da outra. E nenhuma expressão nas caras. é só este o pesadelo, apenas isso. Mas cada noite, mal adormece, mais caras quietas vão-se reunindo às outras como na fotografia em branco e preto de uma multidão em silêncio. Por quem é este silêncio ? Pelo líder. É uma sucessão de caras iguais como numa repetição monótona de um rosto só. Parece uma terrível fotomontagem onde a inexpressão das caras dá-lhe medo. Nesse painel monstruoso, caras sem expressão. Mas o líder se cobre de suores porque os milhares de olhos vazios não pestanejavam. Eles o haviam escolhido . E antes que eles enfim se aproximassem definitivamente, ele gritou : sim, eu menti

Clarice Lispector, "A Descoberta do Mundo"

Pensamento do Dia


Bolsonarizamo-nos!

Tá feia a coisa!

O Brasil Oficial bolsonarizou-se. Agora é golpe contra golpe suposto. Fato não vale mais nada…

Porque foi mesmo que essa coisa começou? Alguém se lembra? É capaz de precisar? Qual o inquérito que queriam parar? Qual a lei que foi violada? E essa urgência toda, desenfreada, sumária, é pela gravidade do crime? É para livrar o povo brasileiro de algum desastre iminente? Ou é só função da agenda biográfica do ministro Celso de Mello? Ele nós sabemos que tem pressa. Sua história acaba em novembro e sua eminência reverendíssima quer, declaradamente, um “fecho de ouro”.

Alexandre de Moraes?

Bolsonarizou-se. Teve um repente de emoção e deixou rolar queném presidente na cerca. Nem a lei, nem a razão. Fez lei do que sente. Ele com ele. Sozinho.

O colegiado?

Bolsominionizou-se. Respondeu como patota. Nenhum argumento. Nada sobre a constituição. Amiguismo só. Agora é guerra! Com ou sem Celso de Mello! Delenda Bolsonaro! Devassem-se as reuniões do ministério! O banheiro do presidente! Tem plano B e tem plano C, seja quem for que ele ponha no STF…

A imprensa?

Vai de arrasto esse rabo do Brasil Oficial. A mais doente virou personagem de si mesma. As manchetes são cada vez mais auto-referentes. Onde já houve informação e demonstração hoje ha dois ou três caroços de raciocínio boiando em enxurradas de adjetivos. É um bolsominion pelo avesso igualzinho ao STF. Ou pior! Atira aos cães a própria instituição do jornalismo. Os ostras do bolsonarismo agradecem empenhados. Deixariam de existir se não tivessem essa imprensa que pede pedradas.


É esse o dom divino do “Mito”. Tudo que ele toca bolsonariza-se ou bolsominioniza-se. Não é homem de ação, é homem de falação. Suas palavras partem do e são recebidas pelo cérebro reptiliano que ainda pulsa por baixo do nosso. Mal batem no ouvinte trancam-lhe o raciocínio e desatam tempestades de reflexos violentos. Não ha explicação científica. A conflagração sobrevem incontrolável, nevrálgica.

Fez da pandemia um instrumento inegociável de confronto. O STF instalou-o no mais covarde dos “eu não disses”. Se estivesse querendo vender caro a quarentena, que é o que dá em sã consciência pra fazer num país onde a saúde pública sempre esteve à beira do colapso, estava colhendo dados, desenhando parâmetros para balizar a saída para a quarentena inteligente. Em vez disso saiu por aí cuspindo e tragando perdigotos. “E daí”? Dez mil vidas e estamos na estaca zero. Meia quarentena pára a economia inteira mas o vírus continua a mil. É a festa da morte.

Para comprar ou para vender Bolsonaro só dá saída pelo que não é. Que golpe, que nada! Os milicos estão cevados na privilegiatura. Não querem mudar nada. Ele é louco mas não rasga dinheiro. Nem mostra seu exame de Covid. Paulo Guedes é o rótulo atras do qual esconde-se o sindicalista de fardado que sabota todas as reformas que foi eleito para fazer. Nem no meio da pandemia admite que toquem na privilegiatura. Prometeu um veto à punhalada que ele mesmo deu nas costas esburacadas do seu ministro quixote porque não está dando pra perder mais um “pilar” debaixo desse tiroteio. Mas é só se reequilibrar que crava de novo.

E o dólar voa e a ladroagem ruge…

Falta governo na pandemia

Falta governo na saúde. A evidência está na devastação provocada pelo vírus em menos de vinte semanas.

Em dezembro, quando a China confirmava a disseminação, 11 estados brasileiros fechavam 17 hospitais e 30 postos do SUS. Faltou dinheiro, alegaram aos repórteres André de Souza, Marlen Couto e Sérgio Roxo. 

Jair Bolsonaro repetia Dilma Rousseff, que presidiu a desativação de 11,5 mil leitos hospitalares — um a cada duas horas —, nos primeiros dois anos e meio. A redução da rede e as greves aumentaram a fila do SUS, única opção para três em cada quatro brasileiros. A imprevidência fez nascer outra fila, a das aposentadorias.


Antes do carnaval, no 28 de janeiro, deputados cobraram um plano federal para a Covid-19. Fez-se silêncio no Palácio do Planalto e na Esplanada dos Ministérios. A prioridade era o corte linear nos gastos. 

Quando a “gripezinha” ameaçou o SUS de colapso, em abril, houve uma miríade de promessas: 2 mil novos leitos de UTI, 40 mil respiradores, 44 milhões de testes para Covid-19, entre outras coisas. Até sexta haviam sido entregues 400 leitos de UTI (20% do prometido), 487 respiradores (1,2% ) e, com sorte, maio acaba com 2 milhões de testes (4,5%). 

Com menos 17 hospitais no país, o governo resolveu erguer 48 unidades de campanha ao custo de R$ 10 milhões cada. Bolsonaro posou para imagens num deles (220 leitos), em Águas Lindas (GO). Está pronto há semanas, mas continua fechado, assim como o de Boa Vista (88 leitos). 

O desgoverno na saúde levou a um apagão de informações. O país sabe o ritmo da inflação a cada dia, mas desconhece a realidade sanitária nas cidades, de pessoal, leitos e equipamentos na rede hospitalar. ising-format=superbanner>

Com fila de mais de mil doentes, o Rio vive a agonia da anarquia na pandemia. Possui oito instituições federais de saúde em extrema precariedade. Elas consomem R$ 3,5 bilhões por ano, o equivalente ao custo anual da rede de 66 hospitais estaduais.

Cala a boca o senhor, presidente!

Desde que o senhor veio com o “golden shower” — tem mais de um ano — já deveria ter sido advertido nos mesmos termos que fez o rei da Espanha, Juan Carlos, ao boquirroto e inconveniente caudilho venezuelano Hugo Chávez, tempos atrás. Caberia adequadamente, ontem e hoje, a bronca no seu caso: “Por que não te calas?”. A destemperança verbal na condição de inquilino do Planalto, as ignomínias nos ataques sem propósito, a valentia fora de hora, a tentativa de intimidação e constrangimento, hostilizando quem apenas faz o seu trabalho, causam, no todo, repulsa. E vergonha alheia. Indistintamente. Quem presencia ou toma conhecimento do espetáculo horroroso fica desconfortável. Automaticamente. Sem necessidade. Vossa excelência, repetindo um bordão conhecido do seu mais novo aliado da tropa de choque do Centrão, Roberto Jefferson, desperta na maioria os instintos mais primitivos. Combine com ele, Jefferson, o toma lá, dá cá, mas nos poupe de mais impropérios. Para quem já falou em executar 30 mil pessoas, ameaçou mulheres de estupro, saudou torturadores e se disse a própria Constituição, deveria bastar. O vatapá de vitupérios da sua lavra passou da conta. Feche a matraca, evitando tantas barbaridades e constrangimento público. Não dê mais um pio. Para o seu próprio bem. Cala a boca o senhor, presidente! Coloque-se devidamente no papel de chefe de Estado. Um líder que só fala besteira, difunde asneira, agride e desinforma, não honra a faixa que recebeu. Veste a pitoresca fantasia de um arlequim. Está fadado à condição de bedel do entretenimento e shows de Ópera-Bufa, perdendo o respeito dia a dia. Cala a boca o senhor, presidente! A imagem de déspota autoritário, arrogante, de quem almeja governar como rei absoluto, não cai bem nos dias de hoje. Como funcionário público, alçado ao Palácio pelo voto popular, vossa excelência deve mesmo, a cada um dos brasileiros eleitores, satisfação. Respostas que evita dar. Não recebeu cheque em branco para fazer da presidência o que bem entende. Muito menos para usar o poder de Estado como se fosse uma propriedade privada. Não é assim. Ao contrário. Se não nos representa, se não sabe respeitar aqueles que lhe deram a condição de mando e o posto, deveria abandonar a cadeira e ir cuidar das milícias digitais, com as quais o senhor se sente tão à vontade e onde a sua decantada escatologia verbal é bem-vinda. Poupe-nos dos desaforos. Cala a boca o senhor, presidente! Nós não vamos nos calar, apesar do desejo incontido que manifesta nesse sentido. Como já disse a antiga cantilena, reprisada com propriedade numa sentença da ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, “cala a boca já morreu”. Se existem anseios mal velados nas suas reminiscências dos tempos da ditadura e dos podres porões da tortura, vingados no regime de exceção, fique com eles para si. Não encontram, pode ter certeza, mais espaço no nosso Brasil de hoje. Intimidar o livre exercício da liberdade de expressão é crime previsto na Lei. E a lei, presidente, rege todos nós. Paira acima, inclusive, do senhor. Muito embora as suas tentativas de desobediência a ela sejam corriqueiras.

A extravasada ira contra aqueles que apenas lhe dirigiam perguntas, postados num cercadinho miserável como gado a ter de aguardar as profanações do feitor, dão conta de um mandatário que não possui o mínimo senso de compreensão da atividade jornalística — cujo fundamento, precípuo, é o de retratar fatos de interesse público, transmitindo-os à população, que tem o direito de ser informada. Jair Messias Bolsonaro, que não se cala nunca e busca fazer encenação politiqueira de qualquer circunstância, mesmo das tragédias como a da Covid-19, tenta “moldar” os fatos a sua maneira. A verdade não se pauta por subterfúgios recorrentes. Quando mandou os entrevistadores calarem a boca, o capitão repetiu uma cena marcante dos momentos mais insidiosos da ditadura militar, na qual o então general Newton Cruz, nos idos de 1983, questionado sobre os retrocessos democráticos, quis silenciar o repórter Honório Dantas, com um “cala a boca” que descambou para a agressão física. A prepotência bolsonarista — vendida também por intermédio das falanges de veneradores e do gabinete do ódio — foi às vias de fato contra enfermeiros e jornalistas em dois episódios, na véspera e anti-véspera da admoestação presidencial.

Diferentes na forma, semelhantes no método. Inaceitável, indecoroso, repulsivo. Cala a boca o senhor, presidente! Ninguém aguenta mais tanto descomedimento. Vá com a sua incitação à desordem pública para lá. Reserve o descaso do “e daí?” para a sua tribo. Quem está pensando que é? As respostas que na ocasião não vieram à altura de suas agressões dão sinal da cordialidade e educação do povo que o senhor não sabe conduzir. Deveria aprender ao menos noções preliminares dessa natureza cordata. Não o provoque muito. Tudo tem limite e o da paciência de seus eleitores, como mostram as pesquisas, já transbordou. Esbanjar braveza para quem não lhe oferece resistência é o máximo da covardia. Cala a boca por que, presidente? O que aqueles jornalistas estavam lhe questionando que tanto o incomodava? Por acaso as notórias interferências na Polícia Federal, admitidas em seus próprios posts, eram fábulas da carochinha? Não parece. Ofender pessoalmente é o recurso dos pobres de argumento. Dos rasos de ideia. Dos sem noção. É o senhor dá demonstrações incessantes de agir segundo esse manual. Cala a boca o senhor, presidente! Para nos poupar desse ódio avassalador que faz tanto mal, das diatribes fora de propósito, das sugestões irresponsáveis e inconsequentes sobre desobediência à quarentena. O senhor vocaliza que a “gripezinha” não mataria nem 800 e quando ela mostra um número dez vezes maior vem com o seu debochado “E daí?”. E daí, lhe diria presidente, que milhares de famílias estão agora chorando seus mortos, desoladas no luto, sem qualquer amparo ou palavra de consolo daquele que deveria se apresentar como comandante e não passa de um bufão de palanque. Se quer silenciar o diálogo, cala a boca o senhor, presidente! Por que nós não vamos nos calar. A comunicação está nas nossas veias, na natureza da atividade, no nosso conceito de vida e democracia. E isso não se cala na marra. Nem com mordaças, como tentaram lá atrás. Cala a boca o senhor, presidente! Que precisa aprender o que é civilidade, princípios republicanos, decência e liturgia do cargo. Cala a boca já morreu, mas esses aqui servem apenas para mostrá-lo como eles machucam os ouvidos. Como atinge e dói fundo na alma. Não vamos nos calar.