sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Pensamento do Dia

 


Que fase!!!!

Por falar nisso, uma fase de energia da minha casa acabou de cair. Televisão funciona, mas ar-condicionado, não. Internet não entra, nem geladeira. Me viro com o que resta no freezer e o celular como modem. Esta é a fase que estamos vivendo no verão brasileiro, calor e muita chuva e essa é a constante dos moradores do Rio de Janeiro. E olha que eu moro na Zona Sul num bairro de classe média alta, onde também moram classes mais baixas. Outra característica do Rio. Minha casa já encheu de água algumas vezes, inclusive agora, nessas chuvas recentes e acabei tendo um prejuízo enorme com um notebook que molhou.


Desastres naturais fazem parte das nossas vidas, mas quando a gravidade deles depende da atuação do poder público aí eu fico passado. Não é a primeira vez. Quem vive nesses doces trópicos deveria estar habituado a bolsões, enchentes, deslizamentos, desabamentos e mortes. Só que nunca nos habituamos, é claro.

Há um ano da tragédia de Petrópolis aqui no estado do Rio nos perguntamos o que foi feito? Podemos responder que assim como os outros desastres, nada. Em Brumadinho também, nada, em Angra dos Reis, nada, no estado de São Paulo, nada. É assim, nada é feito. A prevenção de desastres não gera votos. O desastre é visto como uma decisão divina inquestionável que só nos resta festejar e agradecer a Deus se escapamos, e lamentar os mortos se este for o destino dos nossos próximos. Deus também quis chama-los mais cedo. Ou seja, vemos choros, lamentações, orações e não vemos nada sendo feito para evitar essas tragédias.

A ocupação irregular das encostas, das margens dos rios fazem desta população, que ali constroe suas casas, um grupo de alto risco. Quem morre não vota e quem fica lamenta mais a perda do que transforma a raiva em atitude politica. As tragédias passam eas autoridades responsáveis por isso continuam nas suas posições. Verbas para obras de contenção, de transformação das áreas para evitar desastres são pulverizadas em outras finalidades.

Desde que me conheço por gente que o Rio de Janeiro alaga. Em 1966 uma famosa tempestade matou gente, provocou deslizamentos e virou um escândalo. Deste eu ainda me lembro. Dai pra frente foram vários aqui no Rio e arredores. Faltar luz é uma consequência quase que natural. Poderia até ser desde que conseguíssemos falar com a concessionária. A privatizada Light que revela não ter condições de cumprir o que prometeu confirma seu mau atendimento. Fica difícil ser contribuinte assim.

Os guardas de trânsito já tão difíceis de se achar numa situação legal, quando chove desaparecem de vez. O cidadão fica alagado e desorientado. Uma vez, trabalhando no antigo Teatro Fênix aqui entre a Lagoa e a rua Jardim Botânico, local de históricas enchentes, me vi na rua, com água pelas canelas orientando o trânsito para manter um mínimo de ordem e evitar o caos maior. Não sou nem nunca fui guarda de trânsito ou agente da defesa civil, mas como cidadão senti e continuo sentindo esse impulso. Já não tenho mais tanta energia e depois de tanto tempo achava que as autoridades podiam fazer esse serviço pra mim. Vou adorar e aplaudir.

Onde mora o perigo

Quase dois meses da defenestração do fascismo tabajara do Estado já se respira melhor e o alento da esperança se faz sentir mesmo no caminho de pedras que temos pela frente. Verdade que o governo democrático tem agido com tino, reforçando e ampliando suas alianças, além de perseguir pautas de larga aceitação como as da consolidação das nossas instituições e, principalmente, na sua opção pelos temas ambientais, hoje quase consensuais. Contudo, o cenário, na aparência inofensivo, mal esconde as ameaças que nos rondam. Estropiado como está, depois do insucesso da trama golpista de 8 de janeiro, o bolsonarismo ainda é um movimento político com forte representação no poder legislativo e conseguiu atrair segmentos da população curtidos pelo ressentimento, homens e mulheres, boa parte de meia idade, que encontraram nele um sentido para suas vidas obscuras e solitárias e deve persistir como força eleitoral, ao menos a curto prazo.


Seu movimento não se expressou na forma partido, provavelmente porque Bolsonaro, formado na cultura política do AI-5, dominante nos desvãos da caserna dos anos 1970, sempre se orientou tendo em vista um golpe militar, refratário à política e aos movimentos de massa, apenas mobilizados para fins de agitação e de valorização do seu papel de condottieri. O resultado desastrado da intentona do infausto dia 8, segundo recente declaração sua, parece que lhe abriu os olhos para a política. Daí para a forma partido falta um passo.

O fascismo como ideologia política não nos é estranho, conhecemos, nos anos 1930, o partido Integralista, com forte presença entre militares e intelectuais, influente na criação do Estado Novo, em 1937, e na promulgação autocrática da Constituição fascista que lhe seguiu. A tentativa malograda do golpe dos integralistas contra o governo Vargas, em 1938, resultou na dissolução do integralismo como movimento social, mas não da Carta fascista de 1937, vigente até a democratização de 1945.

Como registra a melhor bibliografia, a nova Carta de 1946 de índole liberal em suas linhas principais garantiu sobrevida a muitas das normas contidas na anterior, em particular as que disciplinavam o mundo do trabalho, preservando a fórmula corporativa e a tutela dos sindicatos pelo Estado e a legislação sobre segurança nacional, além da manutenção do estatuto do exclusivo agrário com que garantiu a coalizão reacionária entre as elites. Com essa construção, sob forma encapuzada o fascismo se manteve em estado latente na ordem liberal entre 1946 e 1964, até que, após o golpe militar, nos fins de 1968, com o AI-5, rompe com ela numa ressurgência do fascismo dos anos 1930.

Com a ascensão de Bolsonaro, um rebento nostálgico do regime do AI-5, à presidência, contando com o beneplácito de setores importantes das elites econômicas, os rumos do seu governo se fixam obsessivamente em solapar as instituições e os fundamentos da Carta de 88 que tinha guarnecido com um sistema defensivo a ordem democrático-liberal que criara. Infrutíferas todas as tentativas, recorreu a uma meticulosa preparação de um golpe de Estado, a que lhe faltou, como sabido, respaldo suficiente na hora decisiva nos altos comandos militares.

Do fiasco, sobrou-lhe sua armata brancaleone, boa parte ainda fiel a ele, e que lhe deve ter serventia para uma eventual organização partidária. Derrotadas pela via da conspiração, as hostes bolsonaristas se orientam, reiterando o movimento da extrema direita em vários países, para o caminho das disputas eleitorais, quando o seu principal objetivo se define pela conquista de posições na chamada direita civilizada, no suposto de que a reação às políticas democratizadoras do novo governo afetando seus interesses, venham a facultar suas pretensões.

Aí é que mora o perigo. Diversa é uma arregimentação para sustentar uma pregação fascista limitada aos porões dos ressentidos da que se encontra escorada em setores das elites dominantes. Franz Neumann, em Behemoth, obra clássica de sociologia política sobre a ascensão do nazismo na Alemanha, e Luchino Visconti, em os Deuses Malditos, filme também clássico, são exemplares narrativas das letais ameaças frutos dessa associação entre as elites e os partidos de ideologias totalitárias.

Nesse sentido, é motivo de preocupação o teor de algumas manifestações publicadas na grande imprensa favoráveis a que se passe um pano no envolvimento do ex-presidente na intentona antidemocrática de 8 de janeiro, na intenção de preservá-lo eleitoralmente, e, principalmente, o fato do presidente do Banco Central, filho excelso da elite econômica brasileira, ter feito profissão de fé na candidatura Bolsonaro e se expor publicamente com vestimenta usual a seus seguidores.

Daí ser imperativo que as lideranças democráticas dos partidos ora responsáveis pelas políticas governamentais estarem atentas a esse processo, ainda larvar, a fim de obstar sua propagação, considerando em cada passo as suas consequências, para as quais estão credenciadas pelos bons resultados até aqui conquistados, por que ainda falta muito para que cheguemos a um porto seguro.

Mercúrio e o rastro de morte

Esses rios onde garimpeiros despejam mercúrio são afluentes de outros rios maiores, e em algum momento isso também pode chegar ao mar. Esse mercúrio vai para rios maiores, caudalosos, e deixa um rastro de poluição pelo caminho. O resultado é devastador, e o grau de contaminação, gravíssimo
Rodrigo Castro, doutor em ecologia e recursos naturais, diretor da Fundação Solidaridad no Brasil

Nós demos à luz esta terra

A mãe do Brasil é indígena. Foi uma de nós quem deu à luz esta terra. Nossa ligação com ela é verdadeiramente ancestral. O mundo inteiro se comoveu com o martírio dos Yanomami e correu para ajudá-los. Sou mãe: consigo imaginar, como se fosse minha, a dor de quem perde o filho ou que não pode amamentá-lo; ou das mulheres que sofreram violência sexual e abortaram por espancamento. Infelizmente, os Yanomami não são os únicos que correm o risco de ser dizimados por causa da cobiça alheia: eu, por exemplo, vivo num estado tão ou mais ameaçado pelo garimpo ilegal que Roraima. Por isso dediquei minha vida à luta pela defesa de nossas terras.

Puyr Tembé

Nasci há 44 anos na aldeia São Pedro, na Terra Indígena Alto Rio Guamá, no sudoeste do Pará. Sou mãe de três filhas, avó e milito desde muito jovem; só que nos últimos quatro anos, nós, mulheres e lideranças indígenas, tivemos que decidir entre lutar para viver, ou esperar pela morte. A forma como fomos (des)tratadas durante a pandemia acendeu definitivamente o alerta. Hoje, presido a Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (Fepipa) e fui convidada para assumir a recém-criada Secretaria dos Povos Indígenas do Pará. Além disso, faço parte da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira e sou cofundadora da Associação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).

Mais da metade das áreas de garimpo do país ficam no Pará, muitas delas em unidades de conservação e em nossos territórios. Estima-se que 60 mil garimpeiros atuam só na Bacia do Rio Tapajós. Na mesma região, vivem 13 mil Munduruku; ou seja, eles estão em minoria em suas próprias terras. Os efeitos já podem ser sentidos: a Polícia Federal calcula que foram despejados cerca de 7 milhões de toneladas de rejeitos tóxicos na bacia hidrográfica, enquanto um estudo da Fundação Oswaldo Cruz revelou que mais da metade da população de três aldeias (Sawré Muybu, Sawré Aboy e Poxo Muybu) tem mercúrio no organismo acima do recomendado.

É por isso que temos muitas frentes de batalha, mas a maior delas é lutar pela vida. E quando dizemos isso, falamos de demarcação e desintrusão de terras indígenas. Protegendo nossas terras, preservamos sua biodiversidade e nossas próprias vidas, e ajudamos a proteger a própria Humanidade. Os povos indígenas agora falam de igual para igual com a sociedade como um todo. Hoje estamos no governo, devemos executar em vez de solicitar. Mas eu continuo sendo Tembé.

Estamos lutando pelas que já não estão mais aqui, levadas pela pandemia ou pelo mercúrio, por nossa ancestralidade; e pelas nossas que ainda estão por vir, o nosso futuro. Só que nós, mulheres do movimento indígena, não vamos conseguir fazer isso sozinhas. Ainda precisamos do Estado, dos parceiros, dos aliados, das entidades que sempre nos deram apoio, colaboradores e simpatizantes. Toda a população brasileira deve assumir conosco a maternidade/paternidade deste país.

É preciso agarrar a oportunidade pelos cabelos mas não esquecer que ela é careca

Não somos um país, somos um enorme convento de carmelitas autistas em silenciosa comunicação com o seu écranzinho que os põe em contacto com um estranho universo inexistente, cheio de palavras e imagens irreais. Os humanos já não falam: dialogam em silêncio com o nada, isto é com o que pensam ser os outros e o mundo.

Andei agora uma série de dias no estrangeiro e o que mais me surpreendeu foi não ter visto uma única pessoa de iphone na mão, a carregar nas teclas, alheada do mundo. Eu como todos os dias fora, num restaurante aqui perto, vou e venho a pé, cruzo-me com gente na rua, passo por uma paragem de autocarro e é extraordinário o que Portugal mudou. Por exemplo o que mais me aborrecia, nos sítios onde almoçava e jantava, eram os guinchos de meninas e meninos a correrem entre as mesas, enlouquecendo todo o mundo sob o olhar desvelado ou ausente dos pais. Não é que as crianças se tenham tornado bem educadas, isso seria pedir demais aos lusitanos, é que em lugar de gritarem, incomodarem e empurrarem os vizinhos estão caladinhas ao lado dos adultos, cada uma com o seu iphone, a carregarem nas teclas num autismo absoluto, concentradas num jogo qualquer. Como os pais não conversam com elas ou entre si, ocupados a comerem, de olhos no prato

(se calhar existem iphones escondidos no puré)

completamente sozinhos, tenho a sensação de estar, com o bacalhau à Brás em frente, num silêncio de capela. A mesma coisa nos transportes, a mesma coisa nas esplanadas, a mesma coisa nas paragens de autocarro


(há semanas, ao passar por uma delas, vi sete pessoas sete à espera, todas de olhos baixos, a picarem o seu quadradinho de plástico com o indicador, alheadas do universo.)



Não somos um país, somos um enorme convento de carmelitas autistas em silenciosa comunicação com o seu écranzinho que os põe em contacto com um estranho universo inexistente, cheio de palavras e imagens irreais. Os humanos já não falam: dialogam em silêncio com o nada, isto é com o que pensam ser os outros e o mundo, trocando banalidades arrasadoras com criaturas e acontecimentos tão fantasmáticos quanto elas. Não se relacionam entre si: relacionam-se com silhuetas vazias, interessam-se por acontecimentos ocos, os afectos transformam-se em siglas, a ternura em bjs sem carne, meia dúzia de consoantes e de k estratégicos substituem os sentimentos e as emoções. Os corpos transformam-se em silhuetas, a partilha em frases feitas, o amor no supermercado do facebook onde as pessoas se apaixonam por criaturas irreais, ou seja fotografias minúsculas e ideias sem carne, encharcando os iphones de lugares comuns patetas nos quais se sente o enorme peso de uma solidão irremediável. Tenho muito dó desses infelizes fantasmas procurando desesperadamente outros infelizes fantasmas na esperança de uma relação fantasmática que, ao fim e ao cabo, não é possível porque não se pode amar uma ausência sem espessura de gente. O poeta Fernando Pessoa, por exemplo, parece-me não uma criatura mas um nada falante. Não é ao artista que me refiro agora, é ao homem que tentava existir através da bebida na esperança de obter, por intermédio de um substituto do leite materno, a densidade carnal que não tinha e, portanto, os seus escritos não respiram. Fingem que respiram, num sofrimento imenso. As criaturas dos iphones não pensam, não lhes interessa pensar, interessa-lhes existir no vazio, relacionando-se com vazios tão brancos quanto os deles, procurando desesperadamente bjs sem substância. Conversam com ninguéns em diálogos de uma pobreza afectiva absoluta que é o único anteparo de que são capazes para tentarem lutar contra a depressão, porque ao princípio não era o Verbo, era a Depressão, e as nossas almas tão sozinhas, tão pobres. O que queremos de facto, o que esperamos ainda é encontrar um modo de nos acharmos menos desamparados, menos indefesos, menos perdidos, e esperamos, como crianças que esqueceram o caminho para casa, que um bj nos aponte o caminho. E não aponta porque nenhum bj se transforma em beijo, é uma metamorfose impossível. Toma o meu bj, dá-me o teu bj em troca. E ficamos cada um com o bj do outro na palma a pensar

– O que faço eu com isto?

enquanto as duas letras se dissolvem ou se evaporam num écranzinho que não responde. Na fila dos automóveis de regresso a casa ao fim do dia vemos as pessoas sentadas no carro, olhando fixamente em frente, imóveis e sérias. Se repararmos nos olhos delas estão todas mortas atrás dos olhos. Não faz mal: o iphone está aqui no bolso; em chegando a casa ligo-o e encontro outros desgraçados, tão defuntos quanto eu, à espera de um colo que não existe. Há uma ausência apenas e lá ao fundo, na cozinha, uma torneira que não veda bem a pingar no lava-loiças o ritmo angustiado do nosso desespero. Talvez um bj ajude um bocadinho a torná-lo suportável: é que somos tão pobres que nos contentamos com uma côdeazita de nada. E amanhã encontraremos na fronha algumas migalhas que sobraram. Se as metermos na boca têm um gosto a lágrimas.
António Lobo Antunes