domingo, 5 de junho de 2022

Brasil desigual

 


Novas astúcias para novos golpes

Interlocutor expressivo de filósofos europeus contemporâneos, o argentino-mexicano Enrique Dussel é um dos maiores pensadores vivos da América Latina.

Extensa para um resumo, sua obra poderia, porém, ser caracterizada como uma reinterpretação dos Evangelhos pelos pontos de vista do que chama genericamente de "pobres", isto é, não apenas os destituídos de bens, mas também os que foram postos à margem das decisões constitutivas da história. Dussel enuncia agora, em termos bem claros, uma hipótese politicamente delicada: os evangélicos seriam a nova arma dos EUA para golpes de Estado na América Latina.

Isso viria de um novo tipo de olhar para a periferia dependente latino-americana após o fracasso das tentativas de dominação americana no Oriente Médio. Exemplo da mudança teria sido dado na Bolívia com a derrubada de Evo Morales.

Apesar de ter superado índices históricos de pobreza por meio de governos progressistas, o país também despertou para outras aspirações, que, para Dussel, confluem para uma mudança na subjetividade: "Passa-se à subjetividade consumista, que acredita que certos projetos de direita poderiam solucionar suas novas aspirações".


Para certos setores emergentes, não se trata apenas de aumento de renda, mas de um rearranjo da consciência social, cujas linhas ideológicas mostram afinidade com as interpretações bíblico-evangélicas das seitas norte-americanas.

Assim, nos países andinos, as tradições ancestrais (aymaras, incas), que têm ainda enorme força popular entre indígenas e cholas, deveriam ser rigorosamente substituídas por uma espécie de reinterpretação neoliberal do cristianismo. O mesmo pode-se dizer naturalmente de tradições afros ou originárias presentes em quase todas as regiões latino-americanas.

Toda religião compõe-se de fé individual e de cultura, sua parte coletiva, que pode hipertrofiar-se, afetando ou neutralizando a primeira como se fosse mero protocolo de adesão a dogmas. Isso já aconteceu e acontece hoje no fenômeno de disseminação das seitas integristas, cujo pano de fundo é uma ecologia mental perpassada pela lógica financeira implícita na "teologia da prosperidade". Na prática, um agregado de estímulos oriundos de marketing empresarial, literatura de autoajuda e doutrinação pseudocientífica relativa tanto à aquisição de riquezas como à gerência da vida pessoal, tudo respaldado pelos protocolos do culto.

Nesse modelo se esboçam as variações de passagem para um novo sujeito histórico do capital, em que a pretensa religião (mais mobilização neural e conduta do que fé) assegura a previsão dos comportamentos nas classes populares. Em suma, um totalitarismo "soft”.

A república hipócrita

Por quase toda história da escravidão, o senhor podia, legalmente, matar ou torturar seu escravo, mas não se conhece manifestação favorável a estes gestos por parte de qualquer dos dois imperadores que governaram o Brasil naquele tempo. Depois de 133 anos de República, 37 de democracia cidadã, ainda vemos licença para maus ou incompetentes policiais assassinarem descendentes sociais dos escravos, quase todos descendentes também biológicos; e o Presidente, eleito por 56 milhões de cidadãos, manifestando simpatia pelos que matam, com o argumento de que estão defendendo a ordem, mesmo argumento dos escravocratas. A maldade do governante aumentou, apesar de eleito.

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Diferentemente, porém, dos brasileiros livres de antes, que aceitavam o direito de matar para alguns, agora a população se divide entre os que defendem este direito como parte da tarefa de policiais e muitos que se manifestam contra por considerá-los maus ou incompetentes para cumprirem suas obrigações. Incapazes de serem bons policiais, como seus colegas, sem atirar balas perdidas matando crianças, sem assassinar cidadãos decentes, cujo crime é o endereço em que mora ou passava, ou mesmo matar bandidos, em um país sem pena de morte.

Mas para os que se indignam com a maldade ou a incompetência de alguns policiais, a hipocrisia cresceu nestes 133 anos. Porque se indignam depois de cada violência física, tortura ou morte, mas toleram o sofrimento e a morte de milhões de brasileiros pela fome, a sobrevivência precária de muitos milhões na pobreza, a violência permanente sobre 12 a 14 milhões de adultos brasileiros analfabetos.

Genivaldo de Jesus foi asfixiado com uma bomba de gás dentro do camburão da polícia, e o Presidente justificou. Milhões de analfabetos estão permanentemente submetidos a asfixia intelectual ao longo de suas vidas, diante do silêncio dos governantes, dos oposicionistas, de juízes e procuradores e da população em geral. Que tampouco se manifesta diante das milhões de crianças que estão esperando para ampliar este exército de analfabetos, e os muitos milhões que frequentarão a escola, mas não serão alfabetizados para os desafios na vida contemporânea. E cairão na penúria, onde arrastarão a sobrevivência, candidatos a Genivaldo de Jesus.

Nos indignamos com as barbaridades de maus policiais e com declarações do presidente, mas aceitamos hipocritamente um sistema escolar que prepara candidatos a camburão e gás, pela pobreza que vem da falta de educação. Indignados, mas elegendo presidente que justifica a barbaridade.

Boca da morte


Não é a primeira vez que morre alguém com gás lacrimogêneo no Brasil
Jair.Bolsonaro

Bolsonaro e Juan Rulfo: comício ao pé da tragédia

Depois de mais um fim de semana de passeios de moto, provocações e inércia, diante do desastre das chuvas no Nordeste, o presidente Jair Bolsonaro chegou de avião em Recife, segunda-feira (30/5), quando os pernambucanos choravam seus mais de 100 mortos, e removiam escombros em busca de desaparecidos. Um ambiente de dor e desolação semelhante ao do conto famoso de “A Planície em Chamas” (Llanto en Llamas), do notável escritor Juan Rulfo, no México dos Anos 50.

Nosso mandatário – candidato à reeleição – desembarcou à semelhança do chefe político da narrativa de Rulfo: com ministros e seguranças, na cidade atingida por um terremoto. E, depois de um dia de discursos, promessas vãs, bebedeira, banquetes, tomam os carros oficiais de volta à capital, sem resolver nada. Alguns ainda levam o pouco que restara do desastre – galinhas e ovos recebidos “de presente” das vítimas do sismo.

Desgraças diferentes na forma e moldura (o tremor de terra na província mexicana e os temporais na capital pernambucana), cuja essência no conteúdo é a mesma: a arrogância do poder, a impiedade dos senhores do mando, a crença ingênua das vítimas. Além da insidiosa teia de enganos decorrentes da utilização política das tragédias, sobretudo se elas acontecem em períodos eleitorais.


Transmitida quase em tempo real pelas redes sociais, nos blogs e sites dos principais veículos de imprensa regionais e do país, o jogo de cena do “mito” e seus acompanhantes se deu desde o “sobrevôo nas áreas alagadas”, mas ganhou tons surreais na entrevista coletiva na cidade destroçada. Sem pisar na lama, na visita a título de “levar assistência e solidariedade” às vítimas, o “mito” fez da coletiva, um palanque de campanha.

Atacou o governador Paulo Câmara (PSB) que, sem ser avisado da visita presidencial ao estado, recebeu ofensas do mandatário. “Ele (o governador Câmara, aliado de Lula), preferiu ficar em casa, dormindo na cama, debaixo de lençol quentinho, em lugar de estar aqui, ouvindo as medidas e providências que estamos anunciando para o povo de seu estado”, disse, irritado, ao responder pergunta de uma repórter, ao lado dos ministros Marcelo Queiroga (Saúde) e Daniel Ferreira (Desenvolvimento Regional). “O momento não é de fazer política”, disse. E seguiu nas ofensas, tendo em sua companhia o prefeito de Jaboatão dos Guararapes , Luiz Medeiros, colega de partido, convidado ao ato. O prefeito de Recife, João Campos (PSB), a exemplo do governador, aliado e amigo do peito do presidenciável petista, também não participou do comício de Bolsonaro, no auge da maior tragédia em Recife, desde o desastre das cheias do Capibaribe, em 1975. “O prefeito de Jaboatão, meu amigo, conhece a região, e vai falar o que o governo federal tem feito, não só para seu município, independente da coloração partidária”, disse, antes do abrir o microfone às perguntas dos jornalistas. Depois pegou o avião de volta à Brasília.

No dia 31, antes de junho chegar, desceu no oeste da Bahia, a pretexto de participar da abertura da “Bahia Farm Show”, uma das mais importantes feiras do agronegócio no país. O presidente em campanha participou de motociata pela cidade, levando na garupa seu ex-ministro da Cidadania, João Roma, candidato a governador da Bahia, pernambucano de nascimento que não esteve na Recife devastada, na visita da véspera. Resta o pensamento do grande Juan Rulfo, antes do ponto final:”Vivemos em um terra onde tudo acontece graças à Providência, mas tudo acontece com acidez. Estamos condenados a isso”.Que venha então a Providência. E breve.

Pequeno canalha

O pior canalha é o pequeno canalha. O anão moral. Medíocre, dissimulado, frustrado, morre de inveja dos que têm atributos que lhe faltam, o que é muito comum. Perdedor em tudo e inconformado com a sua sina de perdedor faz-se canalha para purgar os pequenos demônios da inveja que corroem suas entranhas.

É capaz de cometer todas as pequenas perversidades que conhece para sublimar o sofrimento que o destino biológico lhe impõe. A falta de neurônios acompanhada da indigência cultural do meio são condições ideais para o surgimento do pequeno canalha.

Um homem sem atributos, fisicamente mal dotado, de inteligência mediana, desagradável no aspecto e na voz metálica, compreende a sua limitação e se rebela contra todos que lhe pareçam mais aquinhoados pela sorte.


Imaginem um professor de literatura que almeja a glória do grande escritor. Ele tenta realizar seu sonho, escreve contos e os transforma em livro. Espera aplausos e o máximo que colhe é a indiferença. Agastado com as críticas que lhe revelam a absoluta falta de talento, devolve na mesma moeda. Transforma-se em crítico e produz laxativas apreciações sobre a literatura alheia.

Tenta mais uma vez. Produz um romance. Vira motivo de chacota. Seus personagens são pífios, tão vazios e desinteressantes quanto ele. Vai à loucura e chega a pensar no suicídio. Mas o pequeno canalha não tem coragem nem dignidade para tanto. Logo atribui ao mundo as suas mazelas. Ou seria a síndrome de Adison a responsável pela sua falta de inspiração? Não. A síndrome de Adison só explica a impotência sexual e manchas na pele que parecem vitiligo.

Fracassado, aposta tudo em relatos sobre a vida doméstica e as agruras de sua mãe no segundo casamento. Quer provocar lágrimas, só consegue o riso dos poucos leitores que imaginam a pobre senhora em esforços para cumprir os deveres sexuais exigidos por um marido de hábitos toscos da vida rural. Há nobreza no sofrimento dessa mulher que se submete de todas as formas para garantir proteção ao filho.

À noite, insone, atormentado, pergunta-se porque é assim piegas e medíocre. Põe em dúvida sua convicção religiosa. Deus não pode ter sido tão cruel ao lhe dar menos em tudo, do tamanho do pênis aos neurônios da região frontal.

O pequeno canalha sofre. Gostaria de se diferenciar na multidão. Ser reconhecido por algo que só ele tenha produzido. Nada. Aos poucos só é notado pelas pequenas canalhices que cometeu. Resta-lhe a fuga. Covarde para encerrar sua grotesca participação de forma definitiva, procura um lugar onde possa parecer mais culto para satisfazer o pequeno ego com as glórias da província. E se distrai em exercícios para conceber um epitáfio que lhe louve na morte o que gostaria de ter realizado em vida.
Fábio Campana